domingo, 10 de janeiro de 2016

Paraiso perdido - J. R. GUZZO


REVISTA VEJA

Onde foi parar neste começo de 2016 o "carrinho novo" que, segundo o ex-presidente Lula, o operário brasileiro finalmente teve dinheiro e crédito para comprar, por conta das virtudes de seu governo? Onde andariam todos os trabalhadores humildes que deixaram "a elite inconformada" por começarem a viajar de avião, pela primeira vez na história deste país? Onde poderia estar circulando neste momento o "Trem-Bala" que, segundo Lula garantiu mais de uma vez, seria inaugurado dali a pouquinho e calaria a boca dos que "torcem contra" o governo? Alguém já conseguiu tirar uma caneca de água da transposição do Rio São Francisco? O que aconteceu com a conta de luz barata e com a lição de economia que a presidente Dilma Rousseff deu ao planeta em 2013? O Brasil, assegurou ela, acabava de provar que era possível, sim, crescer, distribuir renda, baratear a vida para os pobres e ter finanças sadias, tudo ao mesmo tempo, "em meio a um mundo cheio de dificuldades". Não só isso. Seu governo acabava de colocar o Brasil numa "situação privilegiada" perante a comunidade das nações, com "energia cada vez melhor e mais barata, mais que suficiente para o presente e o futuro". Os "pessimistas" tinham sido derrotados, informou Dilma.

E os juros? Na mesma ocasião, a presidente comunicou que "os juros estão caindo como nunca" — e hoje? Outra coisa: sabe-se da existência de algum posto onde seria possível comprar gasolina barata, feito de que o governo tanto se orgulhava até o encerramento da eleição presidencial de 2014? O Brasil entrou, afinal, na Opep, como Lula previa diante da nossa transformação em potência na produção de petróleo? Aliás, por falar" nisso, quando foi a última festa para comemorar mais uma descoberta do "pré-sal", com Lula e Dilma fazendo aquelas marcas pretas de óleo nos uniformes cor de laranja com que eram fantasiados? Procuram-se notícias, também, do real forte — tão forte que iria dispensar o dólar nas transações internacionais do Brasil, pelas altas análises do Itamaraty. Seria interessante saber onde foi parar o investment grade que as grandes agências mundiais de avaliação de risco deram ao Brasil pouco tempo atrás — prova definitiva, segundo o governo, de que o mundo capitalista enfim se curvava diante da gestão econômica de Lula, Dilma, PT e de suas "políticas sociais". O mesmo se pode perguntar em relação ao "gostinho" declarado pelo ex-presidente em ver o Primeiro Mundo em "crise" e o Brasil correndo para o abraço. Onde está "o pleno emprego"? Onde está a "Pátria Educadora"? Onde está o maior programa de distribuição de renda já visto na história da humanidade?

Nada disso se encontra disponível no presente momento. Carrinho novo? A indústria automobilística acaba de ter, em 2015, o pior desempenho em quase trinta anos — isso mesmo, desde 1987, nas remotas profundezas do governo José Sarney. As companhias de aviação estão de joelhos; se estão perdendo até os passageiros ricos, imagine-se os pobres. A energia barata virou uma piada: as contas de luz subiram 50% em 2015, e vão subir de novo neste ano. Os juros andam perto de 15% — um paraíso mundial para os "rentistas" com os quais a esquerda brasileira tanto se horroriza nos discursos e a quem tanto favorece na vida real. No assunto petróleo, o que se tem, acima de tudo, é uma Petrobras que o governo quebrou, por ladroagem e incompetência, e hoje não tem dinheiro para investir nada; na verdade, ela jamais deveu tanto. O real perdeu 50% do seu valor no ano passado, e voltou, após mais de vinte anos, à sua condição de moeda bananeira. O governo presidiu uma recessão de 3,5% em 2015 — isso em cima de crescimento zero em 2014 — e prepara-se para socar na economia outro recuo neste ano, de 2,5% ou mais. Há 10 milhões de desempregados neste país, no corrente mês de janeiro. O último IDH, uma das medidas mundiais mais respeitadas para avaliar o bem-estar dos países, deixou o Brasil em 75º lugar—e quem pode achar que está bem, em qualquer coisa, se fica no 75º lugar? O investment grade sumiu: como o Senhor, na Bíblia, a Moody"s, a S&P e a Fitch dão, a Moody"s, a S&P e a Fitch tiram.

É este o país que resultou, na prática, dos treze anos de Lula, Dilma e PT. Ninguém no governo tem a menor ideia de como sair disso — nem poderia ter, quando o seu único objetivo, hoje em dia, é ficar de bem com o senador Renan Calheiros e traficar no Congresso um jeito para escapar do impeachment. Daí só se pode esperar que as coisas continuem piorando, piorando, piorando — até que chega um dia em que continuam a piorar.

Por Matheus Pichonelli- A empregada anda de avião..., do GGN


O condômino é, antes de tudo, um especialista no tempo. Quando se encontra com seus pares, desanda a falar do calor, da seca, da chuva, do ano que passou voando e da semana que parece não ter fim. À primeira vista, é um sujeito civilizado e cordato em sua batalha contra os segundos insuportáveis de uma viagem sem assunto no elevador. Mas tente levantar qualquer questão que não seja a temperatura e você entende o que moveu todas as guerras de todas as sociedades em todos os períodos históricos. Experimente. Reúna dois ou mais condôminos diante de uma mesma questão e faça o teste. Pode ser sobre um vazamento. Uma goteira. Uma reforma inesperada. Uma festa. E sua reunião de condomínio será a prova de que a humanidade não deu certo.
Dia desses, um amigo voltou desolado de uma reunião do gênero e resolveu desabafar no Facebook: “Ontem, na assembleia de condomínio, tinha gente ‘revoltada’ porque a lavadeira comprou um carro. ‘Ganha muito’ e ‘pra quê eu fiz faculdade’ foram alguns dos comentários. Um dos condôminos queria proibir que ela estacionasse o carro dentro do prédio, mesmo informado que a funcionária paga aluguel da vaga a um dos proprietários”.
A cena parecia saída do filme O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, no qual a demissão de um veterano porteiro é discutida em uma espécie de “paredão” organizado pelos condôminos. No caso do prédio do meu amigo, a moça havia se transformado na peça central de um esforço fiscal. Seu carro-ostentação era a prova de que havia margem para cortar custos pela folha de pagamento, a começar por seu emprego. A ideia era baratear a taxa de condomínio em 20 reais por apartamento.
Sem que se perceba, reuniões como esta dizem mais sobre nossa tragédia humana do que se imagina. A do Brasil é enraizada, incolor e ofuscada por um senso comum segundo o qual tudo o que acontece de ruim no mundo está em Brasília, em seus políticos, em seus acordos e seus arranjos. Sentados neste discurso, de que a fonte do mal é sempre a figura distante, quase desmaterializada, reproduzimos uma indigência humana e moral da qual fazemos parte e nem nos damos conta.
Dias atrás, outro amigo, nascido na Colômbia, me contava um fato que lhe chamava a atenção ao chegar ao Brasil. Aqui, dizia ele, as pessoas fazem festa pelo fato de entrarem em uma faculdade. O que seria o começo da caminhada, em condições normais de pressão e temperatura, é tratado muitas vezes como fim da linha pela cultura local da distinção. O ritual de passagem, da festa dos bixos aos carros presenteados como prêmios aos filhos campeões, há uma mensagem quase cifrada: “você conseguiu: venceu a corrida principal, o funil social chamado vestibular, e não tem mais nada a provar para ninguém. Pode morrer em paz”.
Não importa se, muitas e tantas vezes, o curso é ruim. Se o professor é picareta. Se não há critério pedagógico. Se não é preciso ler duas linhas de texto para passar na prova. Ou se a prova é mera formalidade.
O sujeito tem motivos para comemorar quando entra em uma faculdade no Brasil porque, com um diploma debaixo do braço, passará automaticamente a pertencer a uma casta superior. Uma casta com privilégios inclusive se for preso. Por isso comemora, mesmo que saia do curso com a mesma bagagem que entrou e com a mesma condição que nasceu, a de indigente intelectual, insensível socialmente, sem uma visão minimamente crítica ou sofisticada sobre a sua realidade e seus conflitos. É por isso que existe tanto babeta com ensino superior e especialização. Tanto médico que não sabe operar. Tanto advogado que não sabe escrever. Tanto psicólogo que não conhece Freud. Tanto jornalista que não lê jornal.
Função social? Vocação? Autoconhecimento? Extensão? Responsabilidade sobre o meio? Conta outra. Com raras e honrosas exceções, o ensino superior no Brasil cumpre uma função social invisível: garantir um selo de distinção.
Por isso comemora-se também ao sair da faculdade. Já vi, por exemplo, coordenador de curso gritar, em dia de formatura, como líder de torcida em dia de jogo: “vocês, formandos, são privilegiados. Venceram na vida. Fazem parte de uma parcela minoritária e privilegiada da população”; em tempo: a formatura era de um curso de odontologia, e ninguém ali sequer levantou a possibilidade de que a batalha só seria vencida quando deixássemos de ser um país em que ter dente era (e é), por si, um privilégio.
Por trás desse discurso está uma lógica perversa de dominação. Uma lógica que permite colocar os trabalhadores braçais em seu devido lugar. Por aqui, não nos satisfazemos em contratar serviços que não queremos fazer, como lavar, passar, enxugar o chão, lavar a privada, pintar as unhas ou trocar a fralda e dar banho em nossos filhos: aproveitamos até a última ponta o gosto de dizer “estou te pagando e enquanto estou pagando eu mando e você obedece”. Para que chamar a atenção do garçom com discrição se eu posso fazer um escarcéu se pedi batata-fria e ele me entregou mandioca? Ao lembrá-lo de que é ele quem serve, me lembro, e lembro a todos, que estudei e trabalhei para sentar em uma mesa de restaurante e, portanto, MEREÇO ser servido. Não é só uma prestação de serviço: é um teatro sobre posições de domínio. Pobre o país cujo diploma serve, na maioria dos casos, para corroborar estas posições.
Por isso o discurso ouvido por meu amigo em seu condomínio é ainda uma praga: a praga da ignorância instruída. Por isso as pessoas se incomodam quando a lavadeira, ou o porteiro, ou o garçom, “invade” espaços antes cativos. Como uma vaga na garagem de prédio. Ou a universidade. Ou os aeroportos.
Neste caldo cultural, nada pode ser mais sintomático da nossa falência do que o episódio da professora que postou fotos de um “popular” no saguão do aeroporto e lançou no Facebook: “Viramos uma rodoviária? Cadê o glamour?”. (Sim, porque voar, no Brasil, também é, ou era, mais do que o ato de se deslocar ao ar de um local a outro: é lembrar os que rastejam por rodovias quem pode e quem não pode pagar para andar de avião).
Esses exemplos mostram que, por aqui, pobre pode até ocupar espaços cativos da elite (não sem nossos protestos), mas nosso diploma e nosso senso de distinção nos autorizam a galhofa: “lembre-se, você não é um de nós”. Triste que este discurso tenha sido absorvido por quem deveria ter como missão a detonação, pela base e pela educação, dos resquícios de uma tragédia histórica construída com o caldo da ignorância, do privilégio e da exclusão.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Não é por vontade - CARLOS ALBERTO SARDENBERG


O GLOBO - 07/01

Chineses não estão parando porque querem. É porque não conseguem mais crescer antes de eliminar as distorções



A China é a grande preocupação na economia mundial. O país vem desacelerando forte desde 2012, quando a expansão de seu Produto Interno Bruto caiu de uma média superior a 9% ao ano para a casa dos 7%. Do ano passado em diante, o governo está tentando salvar uns 6%, mas fica cada vez mais difícil.

Questão: terá o Partido Comunista tomado a decisão de não crescer mais? E por que faria isso?

Não faz sentido. Nenhum governo, nenhuma sociedade, democrática ou autoritária, gosta de recessão. No capitalismo, que já é o regime dominante na China, todos querem o crescimento mais acelerado possível, já que é mais fácil ter empregos e ganhar dinheiro nesse ambiente.

Só a pobre esquerda brasileira acha que os neoliberais e os barões do capitalismo preferem a recessão para faturar mais. Se fosse assim, os bancos e as empresas capitalistas seriam um poço de pobreza.

Se é tão óbvio assim, por que estamos falando disso? Porque parece não ser óbvio por aqui. No PT e satélites, nas centrais sindicais, nos movimentos sociais e em boa parte da academia, aconteceu o seguinte: a presidente Dilma, pressionada pelo “sistema”, abandonou a política de crescimento e passou para a recessiva. Agora, vai voltar ao caminho do crescimento.

Pois deveriam explicar aos chineses como se faz isso: basta ter vontade de crescer e, pronto, faça-se o PIB.

Os chineses não estão parando porque querem. É porque não conseguem mais crescer antes de eliminar as distorções geradas pela expansão acelerada das últimas décadas.

Quais distorções?

Reparem nesta: o governo chinês prometeu conceder uma espécie de cidadania urbana provisória para nada menos que cem milhões de trabalhadores neste ano. Parece estranho, e é mesmo.

Na China, você não pode morar onde quiser. Quer dizer, poder, pode, mas se o trabalhador se instalar em uma cidade sem autorização do governo — sem registro na prefeitura — não terá direito aos serviços públicos geralmente subsidiados. Fica mais ou menos clandestino. Mora em algum lugar, pagando aluguel caro, e trabalha numa fábrica, por exemplo, mas ganhando menos.

Há nada menos que 255 milhões de trabalhadores nessas condições — são pessoas que migraram do campo para as cidades, em busca de oportunidades.

O objetivo dessa restrição histórica — o registro de residência — é social (controlar as migrações), econômico (controlar a distribuição de mão de obra) e político (controlar a vida das pessoas).

Não funcionou — ou não funciona mais. O pessoal do Partido Comunista, certamente, esperava que, sem registro, os trabalhadores ficariam no campo. A realidade do mercado capitalista instalado no país desde o final dos anos 80 determinou o contrário: os camponeses migraram para onde estava o emprego.

Resultado: um poderoso exército de mão de obra barata, que serviu para a expansão inicial; mas, hoje, são 255 milhões na terceira classe de uma sociedade que ganhou renda.

O PIB chinês cresceu mais de dez vezes desde a derrubada do maoísmo e a introdução da economia de mercado. Formou-se uma classe média e uma classe trabalhadora de primeira, além de uma geração de empreendedores e empresários. Toda essa gente quer mais. Mais salários — que já estão subindo —, mais habitação, cidades melhores, saúde, educação, previdência. E mais liberdade.

Nesse ambiente, a existência de 255 milhões de clandestinos gera enorme pressão social e política. Daí a decisão do governo de conceder a esses trabalhadores o acesso ao registro residencial. No estilo chinês, paulatinamente, começando com apenas 100 milhões.

Ora, isso vai ficar caro para o governo — que terá de fornecer serviços subsidiados para mais gente — e para as empresas, que pagarão salários mais altos e mais benefícios a trabalhadores legalizados.

Com custos mais altos para resolver essa e outras (muitas) distorções, a economia chinesa terá menos investimentos e, pois, menos crescimento. Não por vontade, mas por necessidade.

Aqui no Brasil, a situação é muito diferente. Não estamos crescendo menos, estamos em recessão. Essa recessão, porém, não era inevitável no primeiro momento. Decorre de sucessivos equívocos da política econômica dilmista, baseada na crença de que para crescer basta querer. Basta o governo querer gastar, conceder crédito e endividar-se — e tudo se resolve.

Isso gerou um baita rombo nas contas públicas, além de inflação. Aí, sim, a recessão tornou-se inevitável. Não foi consequência da política de ajuste fiscal, mas da falta de ajuste prévio. O problema agora é como administrar a saída da recessão, o que exige restabelecer o equilíbrio das contas públicas.

Vontade de crescer, todo mundo tem. Como fazê-lo? — eis o que distingue as sociedades mais ou menos sábias.

Carlos Alberto Sardenberg é jornalista