quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Não é por vontade - CARLOS ALBERTO SARDENBERG


O GLOBO - 07/01

Chineses não estão parando porque querem. É porque não conseguem mais crescer antes de eliminar as distorções



A China é a grande preocupação na economia mundial. O país vem desacelerando forte desde 2012, quando a expansão de seu Produto Interno Bruto caiu de uma média superior a 9% ao ano para a casa dos 7%. Do ano passado em diante, o governo está tentando salvar uns 6%, mas fica cada vez mais difícil.

Questão: terá o Partido Comunista tomado a decisão de não crescer mais? E por que faria isso?

Não faz sentido. Nenhum governo, nenhuma sociedade, democrática ou autoritária, gosta de recessão. No capitalismo, que já é o regime dominante na China, todos querem o crescimento mais acelerado possível, já que é mais fácil ter empregos e ganhar dinheiro nesse ambiente.

Só a pobre esquerda brasileira acha que os neoliberais e os barões do capitalismo preferem a recessão para faturar mais. Se fosse assim, os bancos e as empresas capitalistas seriam um poço de pobreza.

Se é tão óbvio assim, por que estamos falando disso? Porque parece não ser óbvio por aqui. No PT e satélites, nas centrais sindicais, nos movimentos sociais e em boa parte da academia, aconteceu o seguinte: a presidente Dilma, pressionada pelo “sistema”, abandonou a política de crescimento e passou para a recessiva. Agora, vai voltar ao caminho do crescimento.

Pois deveriam explicar aos chineses como se faz isso: basta ter vontade de crescer e, pronto, faça-se o PIB.

Os chineses não estão parando porque querem. É porque não conseguem mais crescer antes de eliminar as distorções geradas pela expansão acelerada das últimas décadas.

Quais distorções?

Reparem nesta: o governo chinês prometeu conceder uma espécie de cidadania urbana provisória para nada menos que cem milhões de trabalhadores neste ano. Parece estranho, e é mesmo.

Na China, você não pode morar onde quiser. Quer dizer, poder, pode, mas se o trabalhador se instalar em uma cidade sem autorização do governo — sem registro na prefeitura — não terá direito aos serviços públicos geralmente subsidiados. Fica mais ou menos clandestino. Mora em algum lugar, pagando aluguel caro, e trabalha numa fábrica, por exemplo, mas ganhando menos.

Há nada menos que 255 milhões de trabalhadores nessas condições — são pessoas que migraram do campo para as cidades, em busca de oportunidades.

O objetivo dessa restrição histórica — o registro de residência — é social (controlar as migrações), econômico (controlar a distribuição de mão de obra) e político (controlar a vida das pessoas).

Não funcionou — ou não funciona mais. O pessoal do Partido Comunista, certamente, esperava que, sem registro, os trabalhadores ficariam no campo. A realidade do mercado capitalista instalado no país desde o final dos anos 80 determinou o contrário: os camponeses migraram para onde estava o emprego.

Resultado: um poderoso exército de mão de obra barata, que serviu para a expansão inicial; mas, hoje, são 255 milhões na terceira classe de uma sociedade que ganhou renda.

O PIB chinês cresceu mais de dez vezes desde a derrubada do maoísmo e a introdução da economia de mercado. Formou-se uma classe média e uma classe trabalhadora de primeira, além de uma geração de empreendedores e empresários. Toda essa gente quer mais. Mais salários — que já estão subindo —, mais habitação, cidades melhores, saúde, educação, previdência. E mais liberdade.

Nesse ambiente, a existência de 255 milhões de clandestinos gera enorme pressão social e política. Daí a decisão do governo de conceder a esses trabalhadores o acesso ao registro residencial. No estilo chinês, paulatinamente, começando com apenas 100 milhões.

Ora, isso vai ficar caro para o governo — que terá de fornecer serviços subsidiados para mais gente — e para as empresas, que pagarão salários mais altos e mais benefícios a trabalhadores legalizados.

Com custos mais altos para resolver essa e outras (muitas) distorções, a economia chinesa terá menos investimentos e, pois, menos crescimento. Não por vontade, mas por necessidade.

Aqui no Brasil, a situação é muito diferente. Não estamos crescendo menos, estamos em recessão. Essa recessão, porém, não era inevitável no primeiro momento. Decorre de sucessivos equívocos da política econômica dilmista, baseada na crença de que para crescer basta querer. Basta o governo querer gastar, conceder crédito e endividar-se — e tudo se resolve.

Isso gerou um baita rombo nas contas públicas, além de inflação. Aí, sim, a recessão tornou-se inevitável. Não foi consequência da política de ajuste fiscal, mas da falta de ajuste prévio. O problema agora é como administrar a saída da recessão, o que exige restabelecer o equilíbrio das contas públicas.

Vontade de crescer, todo mundo tem. Como fazê-lo? — eis o que distingue as sociedades mais ou menos sábias.

Carlos Alberto Sardenberg é jornalista

Uma aula da fantasia oligárquica - ELIO GASPARI


FOLHA DE SP - 06/01

Num ridículo episódio de caipirice cosmopolita, ao passear no teleférico do morro do Alemão, Christine Lagarde, diretora do Fundo Monetário Internacional, disse que estava se sentido "numa estação de esqui" dos Alpes. A doutora achou que viajara ao futuro, mas estivera a bordo das maquinações do passado e das empulhações do presente. Em breve o teleférico será operado pela empresa de Tiago Cedraz, filho do presidente do Tribunal de Contas da União, o veterinário e ex-deputado Aroldo Cedraz.

A obra custou R$ 253 milhões e foi inaugurada duas vezes (em 2010 e 2011) sem que o serviço estivesse em plena operação. Funcionando, ele reduz para 19 minutos uma caminhada que pode durar até duas horas. Quando madame Lagarde esteve nos Alpes cariocas, o governo do Rio já começara a atrasar os repasses para a manutenção do serviço e a concessionária se desinteressara pela renovação do contrato, dispensando alguns funcionários. O colapso financeiro do Rio já havia começado.

No mundo da fantasia, dera tudo certo no andar de cima. As empreiteiras Odebrecht, OAS e Delta orgulhavam-se da obra. A Delta foi apanhada nas traficâncias do bicheiro Carlinhos Cachoeira e foi declarada inidônea pela Controladoria-Geral da União. A OAS, apanhada na Lava Jato, está em recuperação judicial. A empresa Supervia, filhote da Odebrecht, ficou com a exploração do serviço.

À época, Lula, Dilma, Sérgio Cabral e Pezão saciaram-se na publicidade. Sobrou um teleférico para ser operado. Essa, a parte que exige trabalho e não rende propaganda, tomou outro curso, o dos serviços públicos para o andar de baixo. Às vezes o teleférico funcionava num horário proibitivo para quem precisava pegar no batente de manhã cedo.

A Supervia desistiu da operação e devolveu a maravilha à Viúva. O repórter Ítalo Nogueira revelou que o governo do Rio concluiu a licitação para escolher a nova operadora do teleférico do Alemão. Venceu-a uma empresa do advogado Tiago Cedraz, criada em abril passado. Sem licitação, a prefeitura do Rio já entregara a Cedraz a operação de outro teleférico, menor, no morro da Providência.

Ricardo Pessoa, um dos empreiteiros presos pela Lava Jato, contou ao Ministério Público que deu R$ 1 milhão a Tiago para ajudar na liberação de um contrato de R$ 2 bilhões para obras da usina nuclear de Angra 3. Pessoa pagava também R$ 50 mil mensais ao escritório do advogado para cuidar de seus pleitos. Ele confirma ter trabalhado para a UTC, mas nega ter tocado em propinas.

Tiago Cedraz tem 33 anos e diplomou-se em 2006. Entre 2009 e 2013, formou um patrimônio imobiliário avaliado em R$ 13 milhões, mais um jatinho Cessna de dez lugares. Teve um conversível vermelho, mas seu pai fez com que o devolvesse.
Vive em Brasília e seu escritório acompanha 35 mil processos. Em 182 atuou no Tribunal de Contas. Em julho, a Polícia Federal visitou-o, cumprindo um mandado de busca e apreensão. Cedraz informa que criou a empresa Providência Teleféricos "quando surgiu a oportunidade de participar das concorrências".

Quando madame Lagarde for esquiar nos Alpes, poderá perguntar se há por lá algum teleférico que tenha passado por tantas peripécias, com personagens tão pitorescos.

As coisas mudam - ROBERTO DAMATTA


ESTADÃO - 06/01


Em 1972, fui a uma conferência de antropologia no Cairo. No decorrer desse encontro de “sábios”, muita gente que eu conhecia exclusivamente de livro e idealizava como gênio tornou-se desgraçadamente humana. Eu os havia estudado, mas nas margens do faraônico Nilo – eles se transformaram em concorrentes, tangenciando uma familiar burrice.

Exceto a curiosidade de conhecer o professor Sol Tax (1921-1995), um dos modernizadores da antropologia americana e organizador do encontro, eu sabia que o alvo da reunião – produzir livros sobre todas as sociedades tribais do mundo – era muito ambicioso e muito americano. Mas, por trás disso, havia o Egito, o Cairo do cinema, as tais danças do ventre e a minha juventude.

No hotel Shepheard, vi um sujeito baixinho, energético e extremamente simpático que me recebeu dizendo: “Você deve ser o nosso homem do Brazil...” (com “z” mesmo). Sol era o dono da bola. Ao seu lado, estava o arqueólogo argentino Rex Pederneiras e um colega egípcio, Hassam Said. Registrei-me e quando soube do interesse de Rex nas danças do ventre, saímos com a desculpa de “conhecer a vida no Cairo”.

Said nos levou a um salão no qual bailarinas maravilhosas, saídas do Jardim das Delícias praticavam a nobre arte da dança do ventre. Apreciei o espetáculo assistido por um El Said intoxicado de orientalismo, tomei um uísque e vi como Rex, instigado pelo nosso companheiro egípcio, bebericava umas seis ou sete taças chá de menta. No dia seguinte, eu tinha ressaca, eles diarreia.

Comentei com Sol Tax, e dele recebi um conselho bíblico ou, quem sabe, talmúdico, inesquecível: em terras pouco conhecidas, coma muito pão!

Em 1977, fiz uma palestra em Chicago e visitei Sol Tax. Fui recebido com muito carinho e alegria. Informado das dificuldades da ditadura militar, o mestre me questionou sobre o Brasil. Externei pessimismo e preocupação. Ouvi o seguinte: “Eu vivi o macarthismo. Também passei por uma Alemanha alucinada pelo Holocausto e uma Europa em guerra. Tenha paciência: as coisas mudam, Roberto”.

*
Em 1849, o grande Richard Wagner que, para o não menos grandioso Claude Lévi-Strauss, teria sido o verdadeiro inventor da análise estrutural dos mitos, decretou a que a Nona Sinfonia, de Beethoven, havia exaurido essa forma musical. Mal sabia ele que, depois disso, Brahms escreveria quatro sinfonias; Tchaikovski, seis; Dvorak, nove; Mahler, dez; Havergal Brian, 32 e Alan Hovhaness – para pararmos uma longa lista roubada de um belo ensaio de Alen Ross, lido na New Yorker –, 67!

As sinfonias continuam. Perderam seu viés teatral, são ouvidas em CD. Mas, como os mitos, elas dialogam entre si.

Do mesmo modo, o populismo-sebastianista, que garante riqueza e bem-estar para todos sem que ninguém perca coisa alguma, retorna e hoje está em cheque e choque. Como distribuir eleitoralmente sem destrambelhar a economia? Como fazê-lo pensando no Brasil e não no poder? Como substituir a formula “cuidar aos pobres”, para, por meio de escolas, saneamento, moradia e, sobretudo, igualdade cívica, mudar a vida dos menos favorecidos? O lulopetismo prometeu progresso, mas o resultado foi regresso – recessão e inflação. Isso para não falar na mendacidade como moda a qual, como as antigas sinfonias, ganharam em vigor e virtuosismo imaginativo.

*

O Brasil em crise e os nossos zilionários calados. Quando a vida aperta, os pobres gritam e os ricos se calam, diz um ditado. Escrevi algumas vezes que a tradição brasileira de “políticas públicas” inspirava-se na “caridade”. Numa virtude teologal que, ao lado da fé e da esperança, fazem parte de um quadro religioso. O resultado é uma sociedade na qual cada qual todos sabem o seu lugar e tanto os ricos quanto os ideologicamente iluminados continuam falando dos pobres, mas garantindo suas famílias.

A caridade tem sido implacavelmente canibalizada pela política do ‘dar para receber’. Nosso surto petrolífero não resultou na filantropia de uma Fundação Rockefeller ou Ford, mas numa ponte amigável entre políticos e operadores organizados em locupletarem-se, debaixo da velha fachada de remediar uma desigualdade que os programas do governo perpetuam.

Vejam o contraste. Mesmo nesta era estadunidense de pikketys, de capitalismo narcisista e de aumento vergonhoso de desigualdade, a filantropia segue firme com os Bill Gates e os Mark Zuckerberg abrindo mão de parte do seu dinheiro. Aqui os ricos viram pobres e culpam o Estado... ou a polícia. Lá, eles assumem o seu lugar e, para a surpresa dos que imaginam que os capitalistas não conhecem o seu próprio sistema, discutem o lado negativo do capitalismo. Lá, o federalismo e a ética individualista do mercado e da competição revelam os defeitos do todo. E, como são os indivíduos que fazem a sociedade, os milionários tentam corrigi-la com a filantropia. Aqui, como partimos do centro e do todo, esquecemos do papel (e da responsabilidade) das partes. E, como quem “cuida” do sistema é o “governo” e não cada um de nós, esquecemos como os muito ricos podem contribuir para essa crise cuja causa jaz exatamente no controle indiscutível do sistema por uma elite que cabe num dedal.

Quando a vida aperta, os pobres gritam e os ricos se calam, diz um ditado