quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A hemorragia do Banco Central - MONICA DE BOLLE


ESTADÃO - 07/01

Para impedir que a desvalorização do real se transformasse em pesadelo inflacionário ainda pior do que o aumento de quase 11% dos preços em 2015, o Banco Central acaba de anunciar prejuízo de 1,5% do PIB, ou cerca de R$ 90 bilhões de reais no ano passado.

A perda deve-se à forma como a autoridade monetária brasileira intervém nos mercados de câmbio desde 2013, usando os chamados swaps cambiais. Nessas operações, o Banco Central entrega ao investidor a variação do dólar em relação ao valor futuro predeterminado no contrato e em troca recebe a variação dos juros de mercado no mesmo período. Como as operações são efetuadas em moeda doméstica, não há perda de reservas. Ou assim nos dizem.

Em 2013, quando essas operações se avolumaram, o motivo era oferecer proteção aos investidores contra as bruscas oscilações do câmbio vinculadas ao fim dos estímulos monetários excepcionais nos EUA. Na época, o temor dos mercados de que a liquidez internacional se esvaísse diante da mudança de postura do Federal Reserve (Fed) induziu fortes desvalorizações de moedas emergentes, entre elas do real. Contudo, quando o tumulto acabou, nosso BC não se fez de rogado. Continuou a prover “proteção” aos investidores, embora estivesse ficando cada vez mais claro que o intuito verdadeiro era conter o deslizamento da moeda brasileira. Contenção que fez o estoque total de swaps cambiais alcançar cerca de US$ 120 bilhões. Como o real só sofreu desvalorizações nos últimos tempos, ao estoque considerável somaram-se as perdas aviltantes. Aviltantes posto que são forma perversa de tentar esconder o óbvio: o câmbio flutuante do Brasil quase não flutua. Ou, quase não flutua de acordo com as pressões existentes no mercado. Finge-se que o instrumento para controlar a inflação ainda são os juros, enquanto a hemorragia cambial só aumenta.

A perda de 1,5% do PIB registrada no ano passado é apenas parte das verdades escondidas. A outra parte é o mito de que dispomos de reservas de cerca de US$ 370 bilhões. Se interpretarmos os estoque de US$ 120 bilhões em swaps como um fluxo negativo de capitais que ainda não se concretizou, nossas reservas são de US$ 250 bilhões, ou 30% menores do que nos dizem.

Diante do estado lastimável da economia brasileira, a hemorragia haverá de continuar. Com ela, as verdades escondidas, cada vez mais nítidas.

*Pesquisadora do Peterson Institute for Internacional Economics

Folia de reis - VINICIUS TORRES FREIRE


FOLHA DE SP - 07/01

Ontem foi Dia de Reis. Em vez de levar presentes, alguns reis do capital foram a Brasília pedir dinheiro para suas empresas arrebentadas. Teve-se notícia do que o rei do PT, Lula, disse na primeira sessão de tutela de Dilma Rousseff neste ano: quer medidas "concretas" de estímulo econômico.

Nada de novo sob a poeira e o sol do Planalto.

A fila de empresas pedintes vai aumentar. Assim como a de Estados e prefeituras quebrados. Minas Gerais não tem dinheiro para pagar o salário de servidores. Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Distrito Federal e Paraná estão na pindaíba.

Siderúrgicas e montadoras querem dinheiro. A venda de veículos caiu 26,5% em 2015. A associação dos vendedores estima que caia outros 6% neste 2016, o quarto ano seguido de ruína. Ao anunciar as más novas, vazou também que o governo prepara um pacotinho de ajuda.

Pacotinho, diminutivo, pois o ministro Jaques Wagner (Casa Civil) diz que não haverá "pacotes", medidas "bombásticas" ou "grandes notícias". Não vai sair "coelho da cartola", afirmou, com aquelas vogais graves e extensas como o mar que quebra na praia da tranquilidade de Caymmi ("é boniiito, é boniiiito...").

O coelhinho da Páscoa ou do Carnaval das montadoras, por exemplo, não teria subsídios. Isto é, o governo não doaria dinheiro dos impostos para fábricas e compradores de carros. Mas sempre é possível disfarçar subsídios por meio de crédito facilitado.

O governo vai facilitar empréstimos? Não faz sentido, pois o Banco Central arrocha o crédito faz anos, com a intenção declarada e frustrada de conter a inflação. Dado que não faz sentido, é possível que Dilma Rousseff adote a ideia.

O pacotinho pode ser algo mais incrementado. Insinua-se que haveria uma espécie de taxa ou seguro para financiar a compra de carro novo, colocando os muito velhos no rolo.

No que diz respeito à "retomada do crescimento", tanto faz. Até remendo setorial com privilégios está difícil de fazer. As siderúrgicas, por exemplo, estão na lama porque a construção civil entrou em colapso, assim como a venda de bens duráveis, como carros, entre os motivos imediatos.

A construção civil afunda porque os governos não têm dinheiro para obras, porque as maiores empreiteiras foram enfim pegas na roubança, por causa da ruína na Petrobras. Afunda porque não há crédito ou coragem de tomar dinheiro emprestado para comprar casa, também porque os juros estão altos. O mercado imobiliário afunda. O preço do metro quadrado dos imóveis em São Paulo caiu 8% em 2015, em termos reais, segundo o índice Fipe-ZAP.

Enfim, o colapso da construção é um aspecto do colapso do investimento das empresas em capital (máquinas, equipamentos, instalações produtivas), que cai desde 2013. O governo federal cortou 40% do valor do investimento "em obras" em 2015, pois de 2012 a 2014 administrou o dinheiro público de modo irresponsável, incompetente e fraudulento.

A venda de veículos afunda porque houve uma bolha inflada pelo governo, porque se antecipou muito consumo, porque os juros estão altos, porque as empresas não investem, porque a renda do trabalho parou de subir, porque as pessoas estão com medo do futuro depois da passagem do furacão Dilma.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

A sombra que ficou - MÍRIAM LEITÃO


O GLOBO - 03/01

Uma sombra vai continuar pairando sobre o governo Dilma Rousseff este ano: o fantasma das pedaladas fiscais. Elas foram argumento para embasar o processo de impeachment e, por isso, o governo fez tudo para pagar integralmente as dívidas com os bancos públicos na última quarta-feira, mas, ao fazer isso, confirmou as acusações que pesam sobre a presidente.

O pagamento das pedaladas foi feito pelo Ministério da Fazenda como se passasse uma borracha sobre um fato incômodo. As marcas ficaram. Na própria nota do Ministério está dito que aquela montanha de R$ 72,4 bilhões seria paga porque eram “débitos da União junto a estas instituições”. Com isso, o governo derrubou sua própria defesa. O governo disse, e o relator está repetindo para tentar aprovar as contas de 2014, que as dívidas não eram dívidas. Eram um inocente resultado negativo previsto em contrato.

Se atrasar um pagamento de R$ 72 bilhões por um ano não for considerado uma operação de crédito, fica difícil saber o que mais será. O pagamento do Tesouro na última hora aos bancos públicos e ao Fundo de Garantia foi praticamente uma confissão de culpa. A dívida com Banco do Brasil, FGTS, BNDES e Caixa foi crescente no governo Dilma. A dimensão da conta derruba também a tese de que houve o mesmo nos governos Fernando Henrique e Lula.

O governo não tinha alternativa a não ser pagar, porque do contrário seria o segundo ano a terminar com essa dívida pendente. Poderia ser entendido como crime continuado de desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal. A mudança quantitativa gerou o salto qualitativo. O que era um simples atraso contratual virou operação de crédito.

No dia 31 de dezembro de 2014, o Tesouro devia cerca de R$ 18,6 bilhões ao FGTS; R$ 20,2 bi ao BNDES; R$ 10,9 bi ao Banco do Brasil. Com a Caixa, ainda havia um débito de R$ 882 milhões. Ao longo do ano, a maior parte da dívida com a Caixa, que chegou a R$ 6 bilhões, já havia sido quitada. Sobre todo esse passivo foi incorporada a atualização monetária. Assim se chegou a R$ 72,4 bilhões. Tudo isso foi pago quarta-feira. Débitos feitos em 2014, carregados por todo 2015 e quitados no último dia útil do ano. Instituições estatais de crédito financiaram o seu controlador. Isso é proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Não cabe mais a discussão se é ou não operação de crédito. Eles mesmos o disseram.

O que interessa aqui é que houve violação da LRF, lei que consolidou a estabilidade monetária, estabelecendo travas para impedir o retorno ao passado hiperinflacionário. A decisão do impeachment é política e cabe aos deputados e senadores decidir se esse descumprimento da lei é o suficiente para a interrupção de um mandato presidencial. Do ponto de vista fiscal e orçamentário, contudo, o governo Dilma desrespeitou a lei.

A nota da Secretaria do Tesouro detalha a dívida com cada ente estatal, chegando a R$ 50,7 bilhões. As atualizações monetárias atingiram quase R$ 5 bilhões. A isso se somam as obrigações acumuladas durante 2015 e chega-se à cifra de R$ 72,4 bilhões.

A conta única é um colchão formado para rolar a dívida em momento de dificuldade. Não pode ser usada para pagar despesa corrente, segundo garantem os técnicos em questões fiscais. Dela foram tirados R$ 70,9 bilhões. Tudo foi pago com títulos já emitidos ou com recursos da conta única. Parte ficará na conta do déficit alargado de 2015 e parte em “espaço fiscal pré-existente”. Parece neopedalada. Além disso, permanecerá o debate sobre se o pagamento, mesmo se for tudo considerado fiscalmente correto, terá apagado retroativamente o crime cometido.

A ideia da lei era de que um governante não terminasse seu mandato com dívidas pendentes para o seu sucessor. O governo pode então argumentar que Dilma é sua própria sucessora e, portanto, não há descontinuidade. Mas aí ficará configurado que é um mesmo governo e o que ela fez em 2014 pode ser cobrado do mandato que ela assumiu em 2015.

Dilma se enrolaria se não pagasse, mas se enrolou também ao pagar. Não havia saída fácil para o labirinto no qual entrou quando decidiu que a esperteza dos truques revogaria as regras da contabilidade. Há muitas dúvidas no ar que ela terá que responder ao longo deste ano que começa.