domingo, 19 de outubro de 2014

Ataques à História - MÍRIAM LEITÃO


O GLOBO - 19/10

Como na obra de George Orwell, governo tenta reescrever a História recente do Brasil. Deveria ser a safra dos debates profundos sobre o país, sobre suas dificuldades reais e a procura de solução para os inúmeros problemas que já existem e os que podem ser previstos. Mas os marqueteiros vestem a realidade com frases de fantasia, confortáveis para os candidatos, e afiam armas. Alguns fatos são deturpados e a história recente é reescrita até ficar irreconhecível.

É óbvio que foi o ex-presidente Fernando Henrique quem venceu a hiperinflação. Foi ele quem levou para o governo Itamar Franco os economistas com a tecnologia e a destreza para montar um plano que atendia a dois pedidos dos cidadãos: ser feito às claras, sem sustos e perdas, e matar o dragão que sobrevivera a cinco planos e devorava as finanças das famílias. Foi FH quem superou os desafios para consolidar o real e começou a reorganizar o estado. Acusar aquele governo de inflação alta é desonestidade.

Na distopia de George Orwell, 1984, os poderosos reescrevem a história. Quem viu a longa luta do Brasil para ter uma moeda estável sabe quem liderou a vitória sobre a inflação e lembra dos benefícios dessa conquista para as pessoas.

As ideias do PT sobre o combate à inflação eram toscas e perigosas. Seus economistas defenderam teses que nunca deram nem dariam certo; ou, o que é pior, um plebiscito sobre pagar ou não a dívida interna. Não pagá-la seria tomar o dinheiro de quem investiu em títulos públicos, como fez o ex-presidente Collor. O plebiscito e uma auditoria nas aplicações dos brasileiros foram defendidos pelo PT dois anos antes de assumir o poder. Se aplicasse o programa em 2003 teria destruído o real. Cotejar números descarnados dos fatos é um desrespeito à memória do país.

O PT não faria a estabilização e hoje a ameaça. Não são "choques de preços" que explicam a inflação estar acima do teto da meta. Inesperados sempre ocorrem e é por isso que existe a margem de flutuação. O governo atual aceitou uma inflação mais alta. A taxa passou o mandato inteiro arranhando ou furando o teto, porque perdeu o espaço para acomodar os choques. O PT deve a Antonio Palocci e à ajuda de Arminio Fraga ter vencido as naturais desconfianças sobre a capacidade do partido de conduzir a economia. Arminio socorreu o país em dois momentos-chave: ao assumir o Banco Central no meio da crise cambial, em 1999, e na transição política, em 2002. Ninguém é obrigado a gostar dele, mas esses são os fatos.

Da mesma forma que o PSDB tem o mérito de ter atendido a demanda do país por uma moeda estável; o PT tem o mérito de ter atendido a demanda do país por redução da pobreza e da miséria, e por ter ampliado os programas de renda mínima. Quem começou a defendê-los como política pública foi o senador Eduardo Suplicy. Repórteres iam ouvi-lo sobre qualquer assunto, e tinham uma aula sobre as políticas de transferência de renda.

Estudos foram feitos por especialistas em combate à pobreza. A política foi testada em municípios dirigidos por partidos diferentes: Campinas, PSDB; Brasília, PT; Belo Horizonte, PSB. Quando chegou ao governo federal, o valor da bolsa era pequeno. Mas aquela experiência trouxe dois avanços: iniciou a montagem de um cadastro dos beneficiários e vinculou o benefício à presença na escola. Outra preocupação do governo FH é que a bolsa não fosse vista como uma concessão partidária, mas um direito do cidadão.

A ideia inicial do PT, o Fome Zero, seria um retrocesso: era entregar selos para serem trocados por comidas, como os "food stamps", política testada nos Estados Unidos na Depressão e que virou programa social a partir dos anos 1960. O Fome Zero não saiu do papel, o governo corrigiu a rota e criou o Bolsa Família. A presidente Dilma colocou os focos nos mais pobres e o governo dedicou-se à busca ativa, que é procurar os que mais precisam. Prisioneiros das armadilhas do Brasil profundo, eles não tinham sequer noção dos seus direitos. A estabilização e a redução da pobreza são conquistas do país que nenhum governo deve ameaçar.

O combate à corrupção é uma demanda do Brasil e a presidente Dilma a enfraquece quando bate no peito e diz "a minha Polícia Federal". Lembra muito a frase: "o Estado sou eu".

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Artigo da mesa diretiva sobre o Dia Mundial da Alimentação



No dia em que se celebra, em mais de 150 países, o Dia Mundial da Alimentação, o Brasil tem muito a comemorar. A razão disso está em uma notícia auspiciosa: o Brasil saiu do mapa mundial da fome. Elaborado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), esse mapa é composto pelos países que têm, pelo menos, 5% de sua população em situação de insegurança alimentar grave, isto é, passando fome. Trata-se de uma conquista relevante em termos políticos, sociais e econômicos, resultante de uma mudança radical na maneira de agir do Estado. Essa transformação se manifestou em série de políticas públicas que, hoje, fazem do Brasil uma referência internacional no combate à fome.

Em 1951, Josué de Castro escreveu que a fome e a desnutrição não são ocorrências naturais, mas resultado das relações sociais e de produção que os homens estabelecem entre si . Infelizmente, o Estado brasileiro levou quase cinco décadas para assimilar essa lição e torná-la base de políticas públicas efetivas. Tradicionalmente, o enfrentamento desse mal esteve a cargo dos cidadãos, da caridade, do voluntarismo, e não do Estado.

A mudança dessa mentalidade, no âmbito da sociedade e, posteriormente, dentro dos governos, permitiu a formulação de um conjunto amplo de políticas emergenciais e estruturantes que, com variados níveis de sucesso,contribuíram para reduzir significativamente a miséria, a fome e a desigualdade no país. Essa transformação alcançou, também, o modo de fazer políticas públicas: o sucesso da experiência brasileira é tributáriada ampliação da participação e do controle social, principalmente, no âmbito das conferências e dos conselhos de políticas públicas.

Se tomarmos como base a estrutura do indicador utilizado pela FAO que leva em consideração a disponibilidade, o acesso e a utilização dos alimentos, além da estabilidade desses três elementos perceberemos a importância de políticas públicas nacionais que incidem diretamente sobre essas quatro dimensões. Tomemos, como exemplo, a disponibilidade e o acesso.

No campo da disponibilidade, destacam-se as políticas de apoio à agricultura familiar, setor que produz 70% dos alimentos consumidos pelas famílias brasileiras. Políticas de crédito e acesso ao mercado, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o Programa de Aquisição de Alimentos e a Política de Garantia de Preços Mínimos para Produtos da Sociobiodiversidade contribuíram para romper com o preconceito de que a agricultura familiar é economicamente inviável ou ineficiente, destinada exclusivamente à subsistência. Ao contrário, essas políticas contribuíram para o melhor aproveitamento de um setor assaz dinâmico, que contribui decisivamente para diminuir os efeitos negativos da persistente crise mundial de preços de alimentos que atinge dezenas de países desde 2003.

O acesso aos alimentos foi aprimorado por meio de políticas que ampliaram a renda e facilitaram as condições de aquisição dos alimentos. Merecem destaque, nesse contexto, não só as políticas que incidem diretamente sobre a renda, tais como a valorização do salário mínimo, o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada, mas, também, políticas que possibilitaram o acesso direto e contínuo à alimentos de qualidade, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar e a rede de equipamentos públicos de alimentação e nutrição (restaurantes populares, cozinhas comunitárias, etc.).

Essas e outras políticas, continuadas e aprimoradas ao longo de mais de uma década, contribuíram para que alguns indicadores nutricionais melhorassem rapidamente. Entre eles, destaca-se a queda da desnutrição infantil, do raquitismo e da prevalência da baixa estatura em crianças até 9 anos.

No entanto, sair do Mapa da Fome, não significa que o Brasil esteja livre desse mal. A FAO estima que 1,7% da população brasileira ainda passa fome, o que representa aproximadamente 3,4 milhões de pessoas, na sua maioria, populações historicamente marginalizadas em termos sociais, econômicos e político. Esse grupo é composto majoritariamente por negros, povos indígenas, comunidades quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais.

É preciso alcançar essas populações com políticas específicas e políticas estruturantes, como a garantia do acesso à terra e direitos territoriais.

Percebe-se, logo, que é necessário resistir à tentação de afirmar que a fome no Brasil é um problema superado, principalmente se, para sustentar esse argumento, for utilizada uma analogia que remete ao conceito econômico de pleno emprego quando se admite um pequeno nível de desemprego como normal. Essa comparação não é aceitável, pois o impacto exercido pela fome e pelo desemprego sobre a dignidade e os direitos humanos são significativamente distintos. Se, no campo econômico, pode ser admissível que uma pequena parcela da sociedade esteja desempregada, transitando de um emprego para outro, por exemplo, na ótica do direito humano à alimentação, inscrito em nossa Constituição, não podemos falar em fome residual, pois não é admissível que um único ser humano, sujeito de direito, passe fome.

A segurança alimentar e nutricional não se realiza apenas por meio do fim da fome, ela requer a plena realização do direito humano à alimentação adequada e saudável. É nesse ponto que se apresentam os enormes desafios ao país.

O sistema alimentar brasileiro hegemônico corre, hoje, o risco de ser dominado por produtos impróprios para o consumo humano. Supermercados estão abarrotados de produtos que ou apresentam altas concentrações de veneno, ou são produtos ultraprocessados ou as duas coisas ao mesmo tempo , em todo caso são causadores de má-nutrição. Por um lado, o modelo disseminado do agronegócio faz do Brasil o maior consumidor do mundo de agrotóxicos (cerca de 5,3 kg de veneno por pessoa por ano), por outro, a indústria de alimentos contribui para a massificação, desde a infância, de hábitos alimentares prejudiciais à saúde, contribuindo para o rápido aumento da obesidade, do diabetes e outras doenças crônicas.

Nesse contexto, se o Dia Mundial da Alimentação é um momento propício para celebrar os avanços realizados, é também o momento oportuno para avaliar os desafios que se nos apresentam. O caminho para a sua superação parece-nos claro e consiste no fortalecimento e aprimoramento das políticas públicas exitosas que levaram à expressiva redução da fome que hoje comemoramos, o que deve se dar por meio do atendimento das especificidades das populações excluídas, inclusive por meio da valorização do papel das mulheres na promoção da segurança alimentar e nutricional; da efetivação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional em todas as suas diretrizes; do resgate das tradições alimentares brasileiras; e do aprofundamento da participação e do controle social.

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O desafio principal não é o do dia 26 - MARCO ANTONIO ROCHA


O ESTADO DE S.PAULO - 16/10


Estamos no meio do tiroteio entre PSDB e PT - de novo. Dilma Rousseff e Aécio Neves avançam para se encontrar, no domingo 26/10, na frente do saloon onde os eleitores esperam o desfecho.

Mas, afinal, é só política. O desfecho - alternância no poder ou continuação no poder - significa ou o retorno de tucanos para os 22 mil a 23 mil cargos comissionados na administração federal; ou a continuidade de petistas nos mesmos cargos.

Esses milhares de cargos comissionados na administração federal se multiplicam em benefícios e "boquinhas" para legiões de aderentes ao poder. Para a "cupinchada", como se dizia antigamente, ou para a "companheirada", como se diz hoje. Por isso, ninguém considere irrelevantes as pernadas dessa capoeira brava, sem berimbau.

Mas continua sendo apenas política. Nos comícios que ainda existam e nas TVs. Na economia, a coisa é outra.

Na economia: 1) nenhum dos dois candidatos pode brincar; 2) nenhum dos dois pode derrapar; 3) ambos carregam o peso da incúria e dos desarranjos acumulados por décadas. E ambos têm o desafio de pôr o Brasil andando para a frente.

Isso significa: criar empregos para a massa de jovens que está entrando anualmente no mercado; e resgatar ou amparar o enorme contingente de brasileiros que ainda vivem abaixo da linha da pobreza. Duas tarefas para um PIB com crescimento robusto. E para ganhos de produtividade os mais elevados que se possa obter. Duas coisas que não temos.

Em paralelo, há que se gastar muito com a infraestrutura insuficiente e recompor grande parte dela virtualmente sucateada - nos transportes, nos portos, nos aeroportos, no armazenamento, no fornecimento de energia e de água, no saneamento.

Está de bom tamanho o desafio para quem ganhar o governo no dia 26?

Se alguém acha que é moleza - "dois palito", como diz o paulistano -, é só lembrar a precariedade da educação, da saúde, da segurança pública, da justiça - 4 trabalhos que tornam brincadeira os 12 do Hércules.

É curioso que os dois partidos sabem que, na economia, as respostas são mais ou menos as mesmas, diferentes apenas na dosagem. FHC com o Plano Real e a vertiginosa queda daquela inflação galopante anterior a ele conseguiu melhorar indiretamente a renda dos mais pobres, coisa que Lula faria avançar ainda mais de forma direta. Primaram ambos por uma condução prudente das políticas fiscal e monetária - FHC com mais e Lula com menos ortodoxia. Na área social o Bolsa Escola, de dona Ruth Cardoso, se ampliaria para o Bolsa Família do PT com Lula. Na área habitacional os planos dos dois tipos de governo avançaram, mais com o PT.

A grande diferença na política macroeconômica foi que o PT, com Lula e depois com Dilma, apostou no consumo como motor do crescimento, o que até funcionou bastante bem no período Lula, mas esgotou-se, como era previsível, no período Dilma. FHC, mais preocupado com a inflação e com a estabilização da economia, apostou no aumento dos investimentos. Não teve muito sucesso, dada a herança das tentativas fracassadas de estabilização que a economia brasileira trazia e das desconfianças que isso acarreta.

Ambos fracassaram, portanto, no principal: no obter um longo período de crescimento robusto e estável do PIB brasileiro. A turbulência da economia internacional prejudicou os investimentos privados e públicos para ambos.

Aqui chegamos ao desafio crucial da economia: aumentar a Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) e a taxa de crescimento do PIB. Uma coisa é o PIB crescendo pouco em países com a maioria das carências atendidas. Outra, é o PIB crescendo pouco onde a maioria das carências se acumularam sem atendimento. Precisamos de 5% ou 6% de crescimento anual do PIB. Com 0,2%, não vamos a lugar nenhum. Esse é o desafio. Nos debates os candidatos dizem como enfrentá-lo? Ainda não vimos.