sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A moral e o anel de Giges - JOSÉ PIO MARTINS

GAZETA DO POVO - PR - 17/10


Nestes tempos de moral social degenerada, vale relembrar o filósofo Platão em sua obra A República, quando ele narra a lenda do pastor Giges. Certo dia, após uma tempestade, abre-se uma fenda no chão, e o rebanho do pastor é engolido. Ele resolve entrar na fenda e encontra, no fundo do abismo, o cadáver de um gigante, que trazia apenas um anel em um dedo.

Giges coloca o anel e segue para a assembleia de pastores destinada a preparar relatório para o rei sobre a situação do rebanho. O pastor, então, percebe que, ao girar o anel para baixo, ele se torna uma pessoa invisível. Virando o anel para cima, ele volta a ficar visível. Eufórico com a descoberta, Giges vai ao palácio e, estando lá, gira o anel e fica invisível. Agora, longe de qualquer punição, Giges seduz a rainha, assassina o rei e usurpa o trono, iniciando sua longa dinastia.

Platão nos conta que, ao desfrutar da invisibilidade e movido pelo desejo de poder, o pastor passa a agir sem escrúpulos, seduz, rouba e mata. E o filósofo nos propõe a seguinte questão: os homens são bons por escolha própria ou simplesmente porque temem ser descobertos e punidos? Imagine, caro leitor, que você tenha o anel de Giges e possa ficar invisível. Livre para fazer o que quiser sem ser punido pela sociedade, pelas leis e por Deus, você agiria com base na moral e na justiça?

Platão disse: “Quer conhecer o homem, dê-lhe o poder”. O ser humano só é completamente moral quando, tendo o poder e estando livre da punição, ele age com base na moral, na virtude e na justiça. A observação da conduta cotidiana nos leva a concluir que, se o ser humano ficar entregue a seus próprios instintos naturais, muito provavelmente o egoísmo, a ganância e a sede de ter mais – poder, fama e dinheiro – o levariam a roubar, matar e trapacear.

A narrativa de Platão permite concluir que mesmo uma pessoa virtuosa e justa, se tivesse em mãos o anel de Giges, agiria contrariamente à virtude e à justiça. Não todos, é claro. E Aristóteles alerta que “o homem guiado pela ética é o melhor dos animais. Quando sem ela, é o pior”. Por isso, a vida em sociedade exige um conjunto de normas gerais de conduta justa, iguais para todos (inclusive para o rei) e aplicáveis a um número incerto de casos futuros. A propensão humana à virtude é frágil; por isso, a paz social não dispensa as regras de conduta e a punição para quem as viola.

Na esfera pública, o meio de impedir que os políticos tenham seu anel de Giges é pela visibilidade de seus atos. Não é por outra razão que a Constituição obriga à publicidade de todos os atos dos governantes. A publicação e a divulgação de tudo quanto é feito com o dinheiro público (e também dos atos que não envolvam dinheiro) são necessárias para o conhecimento da população sobre as ações dos homens do poder.

Certamente, os corruptos imaginam ter achado o anel de Giges e acreditam que não serão pegos nem atingidos pela punição. Somente um louco cometeria atos de corrupção se tivesse a certeza de que seria descoberto, processado e punido. Seguramente, os malfeitores fazem cálculos e agem apostando na probabilidade de não serem pegos. De vez em quando, eles erram no cálculo e a justiça funciona.

Se os homens fossem anjos, o Código Penal e as prisões não seriam necessários. Mas os homens não são anjos e, quanto mais poder eles têm, maior a probabilidade de manifestarem seu lado diabólico e imoral.

Viva o erro! - RENATO FERRAZ

CORREIO BRAZILIENSE - 17/10
Aqui, no comecinho do Sudoeste, um posto de gasolina não aceita mais que os fiéis clientes encham os pneus dos carros depois das 22h. Os vizinhos de uma quadra comercial ilegalmente transformada em mista (com mais apartamentos do que lojas, claro) não "aguentam" mais o pipipipi do compressor e ameaçam processar os donos. No fim da quadra 300, uma loja está aberta, com uma plaquinha de aluga-se, há meses. Por que ninguém fechou negócio, apesar da excelente localização? As regras do condomínio não permitem que lá seja instalado um bar, um restaurante ou qualquer empreendimento que possa causar "transtornos" aos moradores. E o prédio, daqueles pequenos, de três andares, tinha como destinação original o comércio.

Onde moro, o uso da cobertura coletiva para receber amigos praticamente foi descartado: a família do morador do andar abaixo teve um filhinho no início do ano - e, obviamente, ninguém "quer" contestar um pai e uma mãe com criança de colo, né? Vejam: aqui não tem nada pessoal, até porque sou mais tranquilo do que nordestino tomando água de coco na praia. Estou apenas levantando esse tema para debater um pouco o fenômeno da convivência em grupo, da falta de tolerância, do isolacionismo em quatro paredes, da patrulha.

Os fumantes, por exemplo, parecem estar com o vírus ebola - ninguém fica por perto. Por falar no vírus que assusta o mundo, o nome dele é a expressão mais citada nas redes sociais - e, na maioria das vezes, associada a "negros" e "pretos". Um amigo mineiro adora churrasco e diz para todo mundo que vegetariano é uma besta quadrada. Se o sujeito é evangélico, logo perguntam: "Da igreja do Malafaia?". Se alguém bebe, aparece uma figura para questionar: "E as blitze? E teu fígado? Você não tem medo de morrer mais cedo?". Se fazem isso com certo amigo meu, ele devolve, na lata: "Ô abstêmio babaca... E tua vida em preto e branco, como está?". Ninguém pode discordar, brincar, soltar uma piada mais infame que é isolado - menos comigo, claro, que sou pernambucano.

O ator Mário Bortolotto disse, recentemente, que pessoas sempre certas costumam ser muito chatas. Portanto, viva o erro, viva a constante possibilidade do erro. De fato, Deus nos criaria bem mais perfeitos se quisesse algo diferente.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Roberto Mangabeira Unger: Por que votar em Dilma



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O povo brasileiro escolherá em 26 de outubro entre dois caminhos.
As duas candidaturas compartilham três compromissos fundamentais, além do compromisso maior com a democracia: estabilidade macroeconômica, inclusão social e combate à corrupção. Diferem na maneira de entender os fins e os meios. Diz-se que a candidatura Aécio privilegia estabilidade macroeconômica sobre inclusão social e que a candidatura Dilma faz o inverso. Esta leitura trivializa a diferença.
Duas circunstâncias definem o quadro em que se dá o embate. A primeira circunstância é o esgotamento do modelo de crescimento econômico no país. Este modelo está baseado em dois pilares: a ampliação de acesso aos bens de consumo em massa e a produção e exportação de bens agropecuários e minerais, pouco transformados. Os dois pilares estão ligados: a popularização do consumo foi facilitada pela apreciação cambial, por sua vez possibilitada pela alta no preço daqueles bens. Tomo por dado que o Brasil não pode mais avançar deste jeito.
A segunda circunstância é a exigência, por milhões que alcançaram padrões mais altos de consumo, de serviços públicos necessários a uma vida decente e fecunda. Quantidade não basta; exige-se qualidade.
As duas circunstâncias estão ligadas reciprocamente. Sem crescimento econômico, fica difícil prover serviços públicos de qualidade. Sem capacitar as pessoas, por meio do acesso a bens públicos, fica difícil organizar novo padrão de crescimento.
O país tem de escolher entre duas maneiras de reagir. Descrevo-as sumariamente interpretando as mensagens abafadas pelos ruídos da campanha. Ficará claro onde está o interesse das maiorias. O contraste que traço é complicado demais para servir de arma eleitoral. Não importa: a democracia ensina o cidadão a perceber quem está do lado de quem.
1. Crescimento econômico. Realismo fiscal e manutenção do sacrifício consequente são pontos compartilhados pelas duas propostas. Aécio: Ganhar a confiança dos investidores nacionais e estrangeiros. Restringir subsídios. Encolher o Estado. Só trará o crescimento de volta quando houver nova onda de dinheiro fácil no mundo. Dilma: Induzir queda dos juros e do câmbio, contra os interesses dos financistas e rentistas, sem, contudo, render-se ao populismo cambial. Usar o investimento público para abrir caminho ao investimento privado em época de desconfiança e endividamento. Apostar mais no efeito do investimento sobre a demanda do que no efeito da demanda sobre o investimento.
Construir canais para canalizar a poupança de longo prazo ao investimento de longo prazo. Fortalecer o poder estratégico do Estado para ampliar o acesso das pequenas e médias empresas às práticas, às tecnologias e aos conhecimentos avançados. Dar primazia aos interesses da produção e do trabalho. Se há parte do Brasil onde este compromisso deve calar fundo, é São Paulo.
2. Capital e trabalho. Aécio: Flexibilizar as relações de trabalho para tornar mais fácil demitir e contratar. Dilma: Criar regime jurídico para proteger a maioria precarizada, cada vez mais em situações de trabalho temporário ou terceirizado. Imprensado entre economias de trabalho barato e economias de produtividade alta, o Brasil precisa sair por escalada de produtividade. Não prosperará como uma China com menos gente.
3. Serviços públicos. Aécio: Focar o investimento em serviços públicos nos mais pobres e obrigar a classe média, em nome da justiça e da eficiência, a arcar com parte do que ela custa ao Estado. Dilma: Insistir na universalidade dos serviços, sobretudo de educação e saúde, e fazer com que os trabalhadores e a classe média se juntem na defesa deles. Na saúde, fazer do SUS uma rede de especialistas e de especialidades, não apenas de serviço básico. E impedir que a minoria que está nos planos seja subsidiada pela maioria que está no SUS. Na segurança, unir as polícias entre si e com as comunidades. Crime desaba com presença policial e organização comunitária. A partir daí, encontrar maneiras para engajar a população, junto do Estado, na qualificação dos serviços de saúde, educação e segurança.
4. Educação. Aécio: Adotar práticas empresariais para melhorar, pouco a pouco, o desempenho das escolas, medido pelas provas internacionais, com o objetivo de formar força de trabalho mais capaz.
Dilma: A onda da universalização do ensino terá de ser seguida pela onda da qualificação. Acesso e qualidade só valem juntos. Prática empresarial, porém, tem horizonte curto e não resolve. Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia indicam o caminho: substituir decoreba por ensino analítico. E juntar o ensino geral ao ensino profissionalizante em vez de separá-los. Construir, do fundamental ao superior, escolas de referência. A partir delas, trabalhar com Estados e municípios para mudar a maneira de aprender e ensinar.
5. Política regional. Aécio: Política para região atrasada é resquício do nacional-desenvolvimentismo. Tudo o que se pode fazer é conceder incentivos às regiões atrasadas. Dilma: Política regional é onde a nova estratégia nacional de desenvolvimento toca o chão. Não é para compensar o atraso; é para construir vanguardas. Projeto de empreendedorismo emergente para o Nordeste e de desenvolvimento sustentável para a Amazônia representam experimentos com o futuro nacional.
6. Política exterior. Aécio: Conduzir política exterior de resultados, quer dizer, de vantagem comerciais. E evitar brigar com quem manda. Dilma: Unir a América do Sul. Lutar para tornar a ordem mundial de segurança e de comércio mais hospitaleira às alternativas de desenvolvimento nacional. E, num movimento em sentido contrário, entender-nos com os EUA, inclusive porque temos interesse comum em nos resguardar contra o poderio crescente da China. Política exterior é ramo da política, não do comércio. Poder conta mais do que dinheiro.
7. Forças Armadas. Aécio: O Brasil não precisa armar-se porque não tem inimigos. Só precisa deixar os militares contentes e calmos. Dilma: O Brasil tem de armar-se para abrir seu caminho e poder dizer não. Não queremos viver em mundo onde os beligerantes estão armados e os meigos indefesos.
8. O público e o privado. Aécio: Independência do Banco Central e das agências reguladoras assegura previsibilidade aos investidores e despolitiza a política econômica. Dilma: A maneira de desprivatizar o Estado não é colocar o poder em mãos de tecnocratas que frequentam os grandes negócios. É construir carreiras de Estado para substituir a maior parte dos cargos de indicação política. E recusar-se a alienar aos comissários do capital o poder democrático para decidir.
Aécio propõe seguir o figurino que os países ricos do Atlântico Norte nos recomendam, porém nunca seguiram. Nenhum grande país se construiu seguindo cartilha semelhante. Certamente não os EUA, o país com que mais nos parecemos. Ainda bem que o candidato tem estilo conciliador para abrandar a aspereza da operação.
Dilma terá, para honrar sua mensagem e cumprir sua tarefa, de renovar sua equipe e sua prática, rompendo a camisa de força do presidencialismo de coalizão. E o Brasil terá de aprender a reorganizar instituições em vez de apenas redirecionar dinheiro. Ainda bem que a candidata tem espírito de luta, para poder aceitar pouco e enfrentar muito.
Estão em jogo nossa magia, nosso sonho e nossa tragédia. Nossa magia é a vitalidade assombrosa e anárquica do país. Nosso sonho é ver a vitalidade casada com a doçura. Nossa tragédia é a negação de instrumentos e oportunidades a milhões de compatriotas, condenados a viver vidas pequenas e humilhantes. Que em 26 de outubro o povo brasileiro, inconformado com nossa tragédia e fiel a nosso sonho, escolha o rumo audacioso da rebeldia nacional e afirme a grandeza do Brasil.
ROBERTO MANGABEIRA UNGER, 67, professor na Universidade Harvard (EUA), é autor do manifesto de fundação do PMDB e ativista em Rondônia. Foi ministro de Assuntos Estratégicos (governo Lula)
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