domingo, 12 de outubro de 2014

O mensalão ampliado - SUELY CALDAS


O ESTADO DE S.PAULO

"Já estou de saco cheio. Todo ano é a mesma coisa", reagiu o ex-presidente Lula às denúncias feitas à Justiça pelo ex-diretor da Petrobrás Paulo Roberto Costa e pelo doleiro Alberto Youssef. Os dois acusaram o PT, o PMDB e o PP de receberem dinheiro desviado da Petrobrás.

"Que me desculpe o Pinguelli, mas ele não tem um único voto no Senado" foi a explicação dada pelo ex-presidente Lula, em 2004, para demitir da presidência da Eletrobrás o professor da UFRJ Luiz Pinguelli Rosa e substituí-lo por Silas Rondeau, afilhado político do ex-senador José Sarney. Pinguelli durou 16 meses na estatal e voltou a dar aulas, Rondeau saiu três anos depois, acusado de corrupção na Operação Navalha, da Polícia Federal. Começava aí, na demissão de Pinguelli, em abril de 2004, a montagem de um extenso esquema de loteamento de cargos públicos entre os partidos aliados do governo que não ficou restrito aos ministérios - foi estendido às estatais e às agências reguladoras e, ao longo das gestões Lula e Dilma, causou graves prejuízos ao País, impostos por políticos ou seus emissários que assumiam fatias do poder para dali extrair dinheiro, favores e vantagens para seus partidos.

Esse esquema não foi pontual nem episódico, espalhou-se por toda a administração pública e chegou à Petrobrás, maior empresa do País, orgulho dos brasileiros. Também não era um complemento, era o próprio mensalão. Se no Congresso o mensalão se expressava em mesadas aos parlamentares para deixarem os partidos da oposição ou aprovarem propostas do governo, nas estatais e nas agências ele era operado por políticos e apadrinhados a serviço dos partidos da base aliada.

Lula e o PT passaram a defender tal esquema como necessário à governabilidade. E, quando começaram a pipocar casos e casos de corrupção, justificaram-se buscando companhia: sempre foi assim, em todos os governos, e no de FHC foi pior, diziam. Acertavam no diagnóstico, mas erravam na medida. No Brasil a corrupção esteve presente em sucessivos governos (que o digam Sarney e Collor), mas nunca na história deste país ela alcançou dimensões tão abrangentes. Parece mesmo ter sido tudo planejado a partir do mapeamento de cargos e favores para serem oferecidos aos partidos políticos. Em troca, o PT construiria maioria no Congresso, ganharia tempo na TV em campanhas eleitorais e concretizaria seu projeto de longa vida no poder.

Na Petrobrás, o primeiro a cair foi o diretor de Abastecimento Rogério Manso, funcionário de carreira, de competência técnica reconhecida e respeitada na empresa. Manso foi demitido em abril de 2004 (logo depois de Pinguelli da Eletrobrás) para dar lugar ao hoje delator e alvo da Operação Lava Jato, Paulo Roberto Costa. Segundo registros da imprensa na época, o então presidente da estatal, José Eduardo Dutra (ex-senador pelo PT, ex-presidente da Petrobrás e depois do PT e hoje diretor da área de serviços da estatal), teria resistido a substituir Manso por Paulo Roberto, mas acabou por ceder às pressões de Lula e do PP.

Em sua coluna de 1/5/2004 no jornal O Globo, o jornalista Jorge Bastos Moreno publicou oportuno diálogo entre Lula e o líder do PP na Câmara, Pedro Henry, que mostra a avidez do PP pelo cargo, a resistência de Dutra e o estilo fanfarrão de Lula quando dialoga com a classe política entre quatro paredes.

Em café da manhã com a bancada do PP, Lula teria dito: "Ninguém cumpre minhas decisões. Eu não vou mais pedir, vou determinar. Quem não cumprir, demito!". Ouviu de Pedro Henry: "O senhor determinou que ao PP fosse entregue a diretoria de Abastecimento da Petrobrás. Mas liguei para um tal de Diego (Diego Hernandez, chefe de gabinete de José Eduardo Dutra) e ele disse 'não é bem assim. Tem de passar antes pelo Conselho e por uma série de procedimentos burocráticos'". E Lula: "Quem nomeou esse conselho fui eu! Eu posso demitir esse conselho! Eu posso demitir esse Diego".

Hoje Lula se diz "de saco cheio" com o doleiro Youssef, lembrando seu empenho em atender o PP e nomear Paulo Roberto. E como anda o "saco" dos brasileiros, Lula?

DILMA DÁ CONTINUIDADE À INVENÇÃO DO NOVO BRASIL, Boff (definitivo)



Leonardo Boff
É notório que a direita brasileira, especialmente aquela de forças elitistas que sempre ocuparam o poder de Estado e o trataram como propriedade privada, apoiadas pela mídia privada e familiar, está se aproveitando da crise – que é mundial, e não, apenas, nacional (e temos a vantagem de manter um mínimo de crescimento e o emprego dos trabalhadores, coisa que não acontece na Europa nem nos Estados Unidos) – para fazer sangrar a presidente Dilma Rousseff e desmoralizar o Partido dos Trabalhadores, e assim criar uma atmosfera que lhe permita voltar ao lugar que por via democrática perdeu.
Celso Furtado, em “A Construção Interrompida” (1993), escreveu com acerto: “O tempo histórico se acelera, e a contagem desse tempo se faz contra nós. Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta na construção do devenir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-nação” (Paz e Terra, Rio da Janeiro, 1993, pág. 35).
Aqui reside a verdadeira questão: queremos prolongar a dependência àquelas forças nacionais e mundiais que sempre nos mantiverem alinhados e sócios menores de seu projeto, ou queremos completar a invenção do Brasil como nação soberana que tem muito que contribuir para a solução da atual crise ecológico-social do mundo?
Se, por um lado, não podemos nos privar de algumas críticas ao governo do PT, por outro, seria faltar à verdade se não reconhecêssemos os avanços significativos sob os governos desse partido. A inclusão social realizada e as políticas sociais benéficas para aqueles milhões que sempre estiveram à margem possuem uma magnitude histórica cujo significado ainda não acabamos de avaliar.
ÓDIO CONTRA O PT
Surgiu um estranho ódio contra o PT em muitos âmbitos da sociedade. Suspeito que esse ódio seja porque as políticas públicas permitiram aos pobres usar o avião e visitar seus parentes no Nordeste; também conseguiram adquirir seu carro e comprar em shopping centers. O lugar deles não seria no avião, mas na periferia, pois esse é seu lugar. Mas eles foram integrados à sociedade e a seus benefícios.
Devemos aproveitar as oportunidades que os países centrais, em profunda crise, nos propiciam: reafirmar nossa independência, garantindo nosso futuro autônomo, mas relacionado com a totalidade do mundo, ou desperdiçá-la, vivendo atrelados ao destino que é sempre decidido por eles, que nos querem condenar a ser apenas os fornecedores dos produtos “in natura” que lhes faltam, voltando assim a nos colonizar.
Não podemos aceitar essa estranha divisão internacional do trabalho. Temos que retomar o sonho de alguns de nossos melhores analistas, do quilate de Darcy Ribeiro e Celso Furtado, entre outros, que propuseram uma reinvenção ou refundação do Brasil sobre bases nossas, gestadas pelo nosso ensaio civilizatório tão enaltecido mundialmente.
Esse é o desafio lançado aos candidatos à mais alta instância de poder no país. Não vejo figura melhor para seguir nessa reconstrução, a partir de baixo, com uma democracia participativa, com seus conselhos e movimentos populares opinando e ajudando a formular caminhos que nos levem para a frente e para o alto, do que a atual presidente, Dilma Rousseff.
A situação é urgente, pois, como advertia pesaroso Celso Furtado: “Tudo aponta para a inviabilização do país como projeto nacional” (op. cit. 35). Nós não queremos aceitar como fatal essa severa advertência. Não devemos reconhecer as derrotas sem antes participar das batalhas, como nos ensinava dom Quixote, em sua gaia sabedoria.
Que os bons espíritos guiem os rumos de nosso país.

O jorro do hidronegócio

sÉRGIO AUGUSTO - O ESTADO DE S. PAULO
11 Outubro 2014 | 16h 00

Como as irmãs do petróleo, seis empresas controlam a sua, a minha, a nossa água

DENNY CESARE/CÓDIGO19
Cantareira. Água é bem essencial, não uma commodity
Se não começar a chover em abundância a partir da próxima semana, os paulistanos terão de pedir água de presente a Papai Noel. Se a chuva só cair sobre a capital e não na cabeceira dos rios que abastecem o Sistema Cantareira, 6,5 milhões de pessoas poderão ficar sem água em suas torneiras. A fonte está secando, e a culpa é menos de São Pedro que de São Paulo; ou, melhor dito, da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico de São Paulo), que subestimou os estragos que as mudanças climáticas, a poluição e a extração descontrolada de recursos hídricos vêm causando ao consumo de água, aqui e lá fora. 
Revelou-se há dias que a Sabesp sabia do risco de desabastecimento no Sistema Cantareira desde 2012, mas só começou a encarar o problema oito meses atrás, quando criou aquele bônus para quem economizasse água. Em 2012, limitou-se a alertar investidores da Bolsa de Nova York para a estiagem prevista e seu impacto nas finanças da empresa. Ainda segundo o promotor público Rodrigo Sanches Garcia, a Sabesp captou mais água que o autorizado para não prejudicar, acima de tudo, o valor de suas ações. Ou seja, tratou a água como “um negócio”, não como um bem coletivo, acusou o procurador. 
O Sistema Cantareira responde por 73% da receita da Sabesp, cujos gestores, aliás, não são os únicos culpados pela crise em curso. Haja vista as ações civis também impetradas contra a ANA (Agência Nacional de Águas) e o DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica), coniventes com o descaso. 
Enquanto rezam para São Pedro e lamentam que Joe Btfsplk, aquele impronunciável personagem dos quadrinhos de Ferdinando que vive com um permanente cúmulo-nimbo sobre a cabeça, não possa visitar a Bacia do Rio Piracicaba, os paulistanos e seus vizinhos mais próximos podem fazer sua catarse baixando da Amazon a versão kindle de um livro esclarecedor sobre a crise da água: The Price of Thirst (O preço da sede), de Karen Piper (University of Minnesota Press, 296 págs., US$ 14,99), lançado na semana passada. Seu subtítulo (Global Water Inequality and the Coming Chaos) resume em sete palavras o caos que a má distribuição e exploração comercial da água deverão causar em escala mundial caso nada seja feito para sustar a ganância do hidronegócio.
Como o ar que respiramos, a água é um bem essencial, um direito humano, reconhecido como tal pela ONU, não uma mercadoria, uma commodity. O que não impediu que, na semana passada, um juiz tenha secado as torneiras de dezenas de milhares de residentes em Detroit sem grana para pagar a conta de água, que a Sabesp tenha demorado a repassar aos clientes o que seus acionistas já sabiam há dois anos e, pior ainda, que 20% do planeta continue sem acesso a água potável. Assegurar a todos água limpa e saneamento básico gratuitos é uma obrigação, um compromisso com a sobrevivência da humanidade. Se nada mudar, daqui a uns dez anos dois terços da população mundial terão de comprar água limpa daqueles que há tempos sacaram que a água é o petróleo do século 21. 
Água é o que não falta. A Terra ainda dispõe da mesma quantidade de H²O do tempo dos dinossauros; o que mudou foi sua localização, alterada por mudanças climáticas e pela exploração do solo. Faltam sim reservatórios, açudes e aquíferos que não estejam quase exclusivamente a serviço da agricultura ou administrados por corporações internacionais, que se comportam como se explorassem minerais, madeira e energia solar.
Seria ótimo se fosse possível desviar água do Solimões para as tubulações da Grande de São Paulo. Ainda que fosse, custaria uma fortuna incalculável. Mais fácil mover as pessoas, inventar um novo urbanismo, construir prédios compactos e ecologicamente inteligentes, observa Karen Piper. Isso, porém, não faz parte da agenda do Banco Mundial e do FMI, que “vendem outros modelos de urbanização” e facilitam a prosperidade do hidronegócio, hoje comandado por corporações sem a visibilidade da Shell, Exxon, BP, Petrobrás, mas, no seu setor, igualmente poderosas e sedentas de lucro: Suez, Veolia, Thames, American Water, Bechtel e Dow Chemicals (sim, aquela mesma que fabricava bombas de napalm e agente laranja usadas na Guerra do Vietnã). Juntas controlam mais de 70% da água “privatizada”. 
O New York Times cantou a pedra em 2006. “Sede dá lucro” alardeava o título de uma reportagem (“There’s money in thirst”), com informações inéditas sobre o mercado hídrico, que àquela altura já valia centenas de bilhões de dólares. “Mais promissor que a exploração de petróleo”, concluía a reportagem. 
Amparada por quatro bolsas de estudo, Piper passou uma década viajando e recolhendo dados para seu livro. Viu de perto como funcionam o Conselho Mundial de Água (World Water Council) e seu fórum trienal (World Water Forum), com representantes da ONU, especialistas em desenvolvimento, ministros de minas e energia, chefes de Estado e, dominando a cena, os mandachuvas de multinacionais que exploram recursos hídricos nos cinco continentes. Os fóruns são uma espécie de Davos da água. Sempre em países diferentes, e já de algum tempo também hostilizados por um Fórum Alternativo Mundial da Água (Fame, na sigla em francês), que adotou um slogan em inglês: “Water for life, not for profit”, água é vida, não é negócio. 
O primeiro fórum foi em Marrakesh, em 1997. O próximo, ano que vem, será na Coreia, e o seguinte, em 2018, em Brasília. Nada mais justo, pois o Brasil, este paraíso hídrico cuja maior cidade está ameaçada de ficar sem água no próximo ano, tem representação expressiva no World Water Council. Pelo relato de Piper, os fóruns não resolvem nada. São um blá-blá-blá pomposo, regado a champanhe e caviar. Com muita água mineral de graça para os abstêmios matarem a sede.