domingo, 2 de junho de 2013

No limite - FERREIRA GULLAR


FOLHA DE SP - 02/06

Matam mesmo quando o assaltado não oferece resistência. Matam para matar, por nada, para nada


O que, afinal, está acontecendo? Em três meses, milhares de motocicletas são roubadas em São Paulo, centenas de residências e transeuntes são assaltados, trabalhadores, mulheres e pais de família são assassinados com uma frequência assustadora. Viver em São Paulo tornou-se risco de morte, é isso? Quer dizer, então, que a cidade está em guerra?

Pior: a cidade está ocupada por bandidos armados que surgem a qualquer momento e em qualquer ponto dela, empunhando fuzis, armas automáticas, decididos a tirar a vida de qualquer um.

Pelo modo como agem, parecem particularmente empenhados em matar, como se isso lhes desse especial satisfação. Matam mesmo quando o assaltado não oferece resistência. Matam para matar, por nada, para nada.

Mas por que razão agem assim? Uma hipótese é a de que estejam drogados, por ser difícil admitir que sejam todos homicidas natos.

Sou da teoria de que o cara nasce poeta e nasce homicida. Digo isso porque sei de gente que em hipótese alguma admitiria tirar a vida de alguém, enquanto outros, a primeira coisa em que pensam, se alguém os ofende, é acabar com ele. Felizmente, raras pessoas são assim.

Daí levantarmos a hipótese de que, se tantos assaltantes matam gratuitamente, é por estarem fora de si, drogados.

Aliás, a droga é um dos motivos que levam aos roubos e assaltos. Com frequência, a polícia, quando prende assaltantes, encontra drogas com eles. Isso explica parte do terror que assusta a cidade, mas não explica tudo.

Não explica, por exemplo, ações criminosas levadas a cabo por verdadeiras equipes de bandidos, munidos de armas pesadas, sofisticadas, obedecendo a um plano minuciosamente traçado.

Quando a polícia chega à sede da quadrilha, depara-se com vasta quantidade de armas, munições e até planos de ação cuidadosamente elaborados.

Esses dados parecem indicar que, fora os bandidos comuns e os drogados, há organizações criminosas, diferentes das antigas quadrilhas do passado: estas de agora se valem de novos recursos teóricos e tecnológicos, que fazem delas organizações eficazes.

Além dos novos meios de comunicação e um conhecimento detalhado do aparelho repressivo, de que dispõem, parece-me haver, em algumas delas, pelo menos, a ação organizada e planejada, apoiada em uma infraestrutura capaz de acumular o produto roubado para vendê-lo, mais tarde, dentro de um esquema que inclui o comércio legal.

Do contrário, como se explica a descoberta frequente de galpões e armazéns cheios de mercadorias roubadas, numa quantidade que tornaria inviável comercializá-las, a não ser com apoio num sistema legal de comércio?

Ou seja, nestes casos, legalidade e ilegalidade se confundem, ou melhor, o comércio legal se alia ao crime e lucra com isso. Trata-se, portanto, de um tipo de criminalidade bem mais ameaçadora, porque capaz de minar a estrutura social e corromper setores inclusive responsáveis pelo combate ao crime, incluindo aí os aparelhos policial e judicial.

Estas são algumas considerações e especulações de alguém que não é especialista no assunto, mas que foi levado a refletir sobre o problema.

Não tenho dúvida de que as autoridades responsáveis pelo combate à criminalidade, em São Paulo e no país, estão igualmente preocupadas e buscando solução para tão grave problema.

Mas isso não basta para tranquilizar as pessoas. Ouvi, outro dia, na televisão, um cidadão afirmar que nem ele nem qualquer membro de sua família sai mais à noite, seja para ir ao cinema seja para jantar num restaurante.

Significa que os cidadãos são agora reféns dos bandidos? Isso se torna tanto mais assustador quando se sabe que o Brasil mesmo, como país, é um dos mais violentos do mundo. Li que se mata mais gente aqui do que na guerra civil da Síria.

É hora, portanto, de o governo, em suas diferentes instâncias, buscar com seriedade a solução desse problema.

Não por acaso, faz poucos dias, o governador de São Paulo admitiu quanto é grave a situação, tanto que anunciou um programa de combate à criminalidade, prevendo bônus aos policiais que mais se empenharem no combate ao crime, além da ampliação do efetivo policial. Tais medidas não solucionarão o problema, mas, pelo menos, implicam o reconhecimento de quão grave ele é.

Não enlouqueça com os preços - RUTH DE AQUINO


REVISTA ÉPOCA

Pesquise sempre, em qualquer cidade. Rasgar dinheiro é um atestado de loucura 



O consumidor não gosta de se sentir otário. Está na hora de boicotar quem mete a mão no nosso bolso. Quando o brasileiro médio começa a viajar ao exterior para fazer compras sem se sentir roubado, é porque nossa economia desandou. Felizmente, ainda não perdemos a referência de preços, como nossos hermanos na Argentina, onde os índices são todos maquiados, e a presidente Cristina Kirchner restringe o direito de ir e vir do cidadão. Mas tudo fica mais caro de um dia para outro – de alimentos a serviços e passagens. E bem acima dos salários.

Fiz um teste com uma lista de supermercado. Grãos, legumes, frutas, carnes, peixe, legumes, verduras, laticínios, produtos de limpeza. Mínima quantidade de cada mercadoria. No mercado Zona Sul do Leblon, paguei R$ 452. No mercado Mundial, da Barra da Tijuca, R$ 345. Mesmas marcas, mesmos pesos. E uma diferença de 30% no preço total. Só 12 quilômetros separam os dois estabelecimentos. Pesquise sempre em qualquer cidade. Rasgar dinheiro é atestado de loucura.

Muitos bares e botequins do Rio de Janeiro e de São Paulo aprenderam a lucrar o máximo, tirando proveito da crise real e psicológica. Reduzem as porções – e o tamanho dos salgados – e cobram R$ 5 a unidade. Em botecos cariocas recomendados por guias, como Jobi ou Chico e Alaíde, os croquetes e bolinhos de aipim ficaram raquíticos, viraram umas bolinhas. E mais caros. Parece que R$ 5 passou a ser o valor mínimo de qualquer coisa. É quanto os quiosques da praia cobram por uma água de coco que pode acabar em três goles. Absurdo!

O quiosque Palaphita Kitch, com bela vista na Lagoa Rodrigo de Freitas, se define como uma “experiência mística”, onde você “entra um e sai outro” – bem mais pobre e revoltado com os preços e o serviço. Uma caipirinha de cachaça “especial” custava ali R$ 26 até pouco tempo atrás! Em Búzios, na costa norte do Rio, um picolé na Praia de Geribá chega a custar R$ 13. Não, obrigada. Vou direto ao fornecedor para satisfazer o desejo por sorvetes.

Jovens resolveram contra-atacar a carestia desenfreada lançando sites úteis. O www.riomaisbarato.com.br dá dicas de opções culturais gratuitas e lugares para comer e beber que não provoquem indigestão na hora da conta. Em São Paulo, quatro amigos criaram o www.boicotasp.com.br para alertar sobre as armadilhas. Os usuários denunciam o grau de exploração do lugar, de 0 a 5, e podem publicar foto do que consumiram com o preço ao lado.

A remarcação abusiva de preços é um duplo tiro no pé. Primeiro, afasta o cliente. O consumo das famílias brasileiras caiu drasticamente no primeiro trimestre de 2013. Todos pensam duas vezes antes de comprar. A inadimplência aumentou. Uma pesquisa da Fecomércio do Rio em nove regiões metropolitanas mostrou que os brasileiros passaram a parcelar compras de alimentos com cartão de crédito. É a primeira vez que isso acontece nos últimos sete anos.

Não somos o povo mais culto do mundo. Mas a classe média não é desinformada. Os gastos de turistas brasileiros no exterior se multiplicam. Nos Estados Unidos, o que gastamos em compras só perde para japoneses e britânicos. Em Paris, as ruas estão coalhadas de conterrâneos. Não é só porque o poder aquisitivo da classe média aumentou no Brasil. É porque nosso país está caro demais, impraticável. Gasolina, transporte, restaurante, shows.

Uma tendência atual é viajar para Nova York ou Miami para fazer o enxoval do bebê. Compra-se pela metade do preço, ou um quinto do preço às vezes, uma mercadoria de mais qualidade que a oferecida no Brasil. Nosso país e o governo Dilma não fazem o menor esforço para estimular o turismo e o consumo domésticos, com preços competitivos. Não temos ferrovias, e as passagens de avião são um escândalo no Brasil. Na Europa, há promoções incríveis com hospedagem. Barato para o padrão nacional.

No bairro de Saint-Germain, em Paris, é possível comer direito em restaurante chinês, japonês ou francês por 8 euros (entrada, prato e sobremesa). Restaurantes sofisticados oferecem menus de almoço em conta, numa relação custo-benefício inexistente no Brasil. E os vinhos? Um chileno de média para baixa qualidade custa, no Brasil, o mesmo que um bom Bordeaux em Paris. Nos Estados Unidos, compra-se um Mouton Cadet por menos de US$ 10. Resultado: turistas brasileiros têm comprado lá fora caixas de vinho.

O vilão são os impostos, as taxas? Está na hora de adequar tudo aos salários. O consumidor não é masoquista. Ninguém está disposto a enlouquecer com os preços. Esperamos que Dilma não imite a viúva Kirchner. A Argentina pune as vítimas de sua política econômica e não os malfeitores. Podemos fazer melhor.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Dois grandes se foram em uma semana,por Ignácio de Loyola Brandão - O Estado de S.Paulo


Enquanto ia para a missa do dr. Ruy, como todos o chamavam, pensava na notícia que tinha acabado de ler, a morte de Roberto Civita. A mídia brasileira perdeu duas figuras máximas em sete dias. Trabalhei com Roberto, que tinha um ano menos do que eu. Nunca trabalhei com o dr. Ruy, apesar da vontade. Cada Mesquita teve seu papel, sua importância na imprensa, porém o dr. Ruy acabou sendo um mito, principalmente para nós jovens.
Por ser Mesquita, um clã que comandava o jornal mais poderoso do País, fundar o Jornal da Tarde, afrontar a censura e a ditadura militar, defender seus funcionários, mostrou sua coragem e o lado em que estava. Dezenas de artigos de pessoas que conviveram com o dr. Ruy revelaram facetas as mais diversas. Até Xico Graziano mostrou o homem ligado à terra.
Para nós, de fora, o dr. Ruy era inacessível, inalcançável. Criavam-se histórias em torno dele. Lembro-me que nas vezes em que tentei entrar para o Jornal da Tarde, vinham barreiras, sublinhadas pelo comentário: "Você foi da Última Hora, jornal que defendeu Getúlio e Jango, não vai entrar aqui". Depois, eram raras as matérias sobre livros meus; quase nada.
Indagava, me respondiam: "O dr. Ruy te acha comunista". Eu, comunista? Se estar perto de Luís Carlos Prestes uma vez na vida, na casa do Aldo Lins e Silva, me fazia comunista, então...
Os anos passaram, fiz minha vida. Aliás, estou fazendo, dia a dia. Certa vez, precisei fazer uma reportagem sobre o Hotel Hyatt para a revista Vogue, que eu dirigia. Fui almoçar no restaurante francês Eau French Grill (na época não tinha esse aposto, french grill). Sentei-me, olhei para os lados, havia pouca gente. Vizinho à minha mesa estava o dr. Ruy Mesquita e dona Laura Maria. Levantei-me, me aproximei, eles ainda tomavam a água, esperavam ser atendidos, detesto incomodar. Apresentei-me, dr. Ruy estendeu a mão: "Permita-me não levantar". Sorriu, cumprimentei dona Laura. "Sei quem você é", disse ele. "Quando entrou, disse à minha mulher quem você é, ela te lê". E ela: "É a primeira coisa que busco, às sextas-feiras". Dr. Ruy: "É um prazer tê-lo entre nós".
Mil imagens passaram pela minha cabeça ante o sorriso cordial, amistoso. Onde tinham nascido todas aquelas coisas a respeito dele? As histórias que se criam em torno de certos personagens. Quem cria e por que razão? Ali mudou a impressão que eu tinha de um dr. Ruy irascível com adversários. Imaginem, eu adversário dele? Ousadia. Aquele foi meu único encontro com esse personagem de nossa cidade, da nossa história, da trajetória da imprensa. Um momento simples, quase prosaico, mas feliz para mim. O "outro" dr. Ruy, afável, cordial. Como os que trabalharam com ele mostraram em variados artigos ao longo da semana passada.
Quanto a Roberto Civita, tivemos convivência próxima por muitos anos. Na Abril, uns o chamavam de Robert, anos atrás, por ter recém-chegado dos Estados Unidos onde fez universidade. Outros por doutor Roberto. Comecei na Rua João Adolfo, na revista Claudia, mas só vi Roberto pela primeira vez na Marginal do Tietê, para onde nos mudamos em 1968. Ele ficava no sexto andar, na cúpula, reduto dos Vips, ao lado de VC. Descia ao quarto andar onde estavam as femininas e era risonho e afetuoso, o oposto de seu irmão que, hoje posso confessar, quase todos jornalistas detestavam.
Certa vez, numa convenção em Serra Negra, reunidos comercial, diretores e redatores chefes (o termo editora ainda não se usava), ele surpreendeu nos dando um conselho: "Façam tudo para ocupar o cargo do seu superior". Realista, mostrava que se devia usar talento e competência para fazer melhor do que o outro. Ele fez a Abril crescer e diversificar depois da morte do pai. Era um homem inquieto, exigente, duro às vezes. Lembro-me que o arquivo da Abril, chamado de Dedoc, era menina de seus olhos; ele sabia que ali estava gente de esquerda, gente brava, resistente. Sabia que por meio do Dedoc documentos sobre a ditadura, as torturas nas prisões, as mortes, chegavam e escoavam para o estrangeiro por canais jamais revelados, indo para a mídia internacional. Com documentos ali recebidos escrevi capítulos do meu romance Zero.
Uma vez, ao saber que eu tinha pedido demissão da Claudia para ir fazer a revista Planeta com Luis Carta, ele me chamou à sua sala: "Quanto a mais estão te pagando?". Respondi: "Dois mil cruzeiros a menos do que ganho aqui". Ficou assombrado: "Então, por que vai?". E eu: "Para mudar, fazer uma coisa nova, excitante. Para sair da burocracia que emperra, das muitas assinaturas em requisições, dos muitos chefes acima de mim, dos muitos memorandos que recebo a cada numero que sai". Roberto me olhou, estendeu a mão: "Obrigado. Tem labirintos que se criam com o crescimento. Preciso ver muita coisa, antes que outros partam. Faça sua vida, a porta está aberta".
Décadas mais tarde, já na Marginal do Rio Pinheiros, quando foram comemorados não me lembro se os 60 anos do Roberto, fui convidado ao almoço e me pediram para falar. Um dos raros de fora chamados. Sei que gostava de mim. Só nos veremos agora do outro lado, se há um outro lado.