sexta-feira, 29 de março de 2013

Deus está vivo e bem no Morro do Bumba - FERNANDO GABEIRA


O ESTADO DE S. PAULO - 29/03

Nas reuniões clandestinas dos anos 1960, Vera Silvia Magalhães, brincando, sugeria como agenda: quem somos, onde estamos e para onde vamos? No início desta campanha presidencial, creio que seria razoável abordar esse tema, desde que se desçam, passo a passo, os degraus da abstração.

Na nossa jovem democracia, os governos levam enorme vantagem na partida: arrecadam fortunas dos empresários amigos e gastam fortunas do Tesouro com propaganda sobre realizações e personalidade do governante. As despesas da viagem de Dilma Rousseff a Roma, por exemplo, deveriam ser computadas nos gastos de campanha.

Como candidata montada em milhões de reais, Dilma é um artefato urdido pelo PT, por especialistas em marketing, um cabeleireiro de origem japonesa, cirurgiões plásticos e consultores de estilo. A rigidez dos ombros, o cansaço no andar indicam que está sobrecarregada pela máscara afivelada ao seu corpo. E algumas frases desconexas revelam que gostaria de deixar de fazer sentido, como os garotos que escreveram receita de Miojo ou o hino dos Palmeiras em suas composições no Enem.

Dilma viajou pai a ser fotografada ao lado do papa Francisco e dizer: "O papa é argentino, mas Deus é brasileiro". Nada melhor para uma campanha: posarão lado do papa, brincar com a rivalidade com os argentinos, voltar para Brasília ainda mais popular do que saiu. A opção pelo luxo, na Via Veneto, no momento em que a Igreja fala de humildade não importa. Uma coisa é a Igreja, outra é o governo democrático popular, sem escrúpulos pequeno-burgueses, na verdade, sem escrúpulos de ordem alguma. Não importa que os estrangeiros vejam na sua frase uma certa dificuldade nacional de superar o complexo de inferioridade. Tudo isso é problema para a minoria que não tem peso nos índices de popularidade. O povo está satisfeito, as pesquisas são favoráveis e é assim que se pretende marchar para 2014.

Lula e José Dirceu foram heróis da vitória em 2002. Dirceu hoje trabalha para empresas junto ao governo. Lula viaja prestando serviços às empreiteiras.

Lembram um pouco a desilusão dos jovens rebeldes no filme O Muro, de Alan Parker, inspirado na música de Pink Floyd. Um dos ídolos da rebeldia juvenil aparece no final melancolicamente vestido como porteiro de hotel, chamando táxis, ganhando gorjetas.

Lula fazia discursos contra o amoralismo do capital, a influências das empreiteiras, e aquelas frases de comício: um sonho sonhado junto não é sonho... Confesso que aplaudia e admito uma dose de romantismo incompatível com a minha idade. Muitos ídolos do rock, pelo menos, morreram de overdose. Na esquerda brasileira, passaram a trabalhar para a Delta ou viajar a soldo da Odebrecht. A popularidade do governo intimida e os candidatos de oposição não fazem um contraponto, mas se definem como uma variação melódica.

Ao deixar o luxuoso Hotel Excelsior, em Roma, Dilma afirmou, ante as mortes em Petrópolis, que era preciso tomar medidas mais drásticas para tirar as pessoas das áreas de risco. Levar para onde? Não se construiu uma única casa popular em Petrópolis. No Morro do Bumba, em Niterói, alguns moradores foram transferidos para um quartel da PM depois da tragédia que matou 48 pessoas em 2010. Os 11 prédios do PAC construídos para abrigá-los estão caindo, antes de inaugurados. Há fendas nas paredes e vê-se que os construtores usaram material barato. Cerca de R$ 27 milhões foram para o ralo. Deus está vivo e bem no Morro do Bumba. Se fossem para os novos prédios, a armadilha cairia sobre a cabeça dos desabrigados.

Quem tem boca (no governo) vai a Roma. Depois é preciso dar uma olhada na Serra Fluminense, verter aquelas lágrimas de praxe, no melhor ângulo e na melhor luz, para as inserções na TV. A mãe do PAC deveria visitai- as obras destinadas ao Morro do Bumba com o carinho com que as mães visitam os filhos no presídio, os que deram errado mas nem por isso são esquecidos.

O governo costuma dizer que a oposição mais consistente e a da imprensa. Essa c sua desgraça e sua sorte. O incessante turbilhão das notícias obriga a imprensa a mover-se sem parar para cobrir o que acaba de acontecer. Sobra pouco tempo para retirar esqueletos do armário e voltar aos personagens de nomes bizarros que povoam os escândalos nacionais. A única maneira de quebrar a hegemonia perversa que contribuiu para devastar moralmente o Congresso, estreitar nossa política externa, confinar a economia nos limites do consumismo é fortalecer uma oposição real. Ela não se pode ater ao horizonte de uma só eleição. Precisa trabalhar todos os dias, imediatamente após a contagem dos votos.

Em política não existem eleições ganhas antecipadamente. Mas é preciso não contar com milagres. Mesmo eles só favorecem os que estão de pé, os que cedo madrugam. As pesquisas dizem que a maioria dos brasileiros está contente como governo Dilma. A sensação de bem-estar impulsiona-os a aprovar o governo e ignorar as profundas distorções que impõe ao País.

Não é a primeira nem a última vez que a minoria se coloca contra uma onda de bem-estar fundamentada apenas no aumento do consumo. No passado éramos bombardeados com a inscrição "Brasil, ame-o ou deixe-o". Agora ninguém se importa muito se você ama ou deixa o País.

O mecanismo de dominação é consentido. Nosso universo se contraiu e virou um mercado onde tudo se compra e se vende, secretarias negociam ilhas, ex-presidentes cobram dívidas de empreiteiras e, na terra arrasada do Congresso, o pastor Marco Feliciano posa fazendo uma escova progressiva. Parafraseando Dilma, são necessárias medidas mais drásticas para tirar essa gente de lá.

À única arma à nossa disposição é o voto. A ausência de uma oposição organizada e aguerrida é uma lacuna. Quando há uma base social para a oposição, dizem os historiadores, ela acaba aparecendo dentro do próprio governo. E aparece discreta, suave, como discretos e suaves são os que se lançam agora diante da milionária máquina topa-tudo do PT.

Inovar é preciso - MOISÉS NAÍM Precisamos de mudanças revolucionárias que tragam os partidos políticos para dentro do século 21



FOLHA DE SP - 29/03


Quando converso com universitários, frequentemente pergunto quantos deles se juntariam a mim se eu formasse uma organização para salvar uma espécie de borboleta ameaçada de extinção no Haiti.

Algumas mãos sempre se levantam. Então pergunto quantos se juntariam a mim em um dos partidos políticos existentes. Nesse momento, todos correm para a porta.

Pode soar como uma anedota trivial, mas acredito que, na realidade, ela representa uma tendência global com consequências sérias.

Em todo o mundo, as duas últimas décadas vêm sendo desastrosas para os partidos políticos, especialmente em comparação com as ONGs. Hoje, quando se trata de atrair pessoas idealistas e engajadas, os partidos mal têm chance.

Muitos ainda conservam poder substancial, e em alguns países é impossível para novos rivais os desafiarem. Mas, na maioria das democracias, a estrutura partidária tradicional foi posta do avesso e substituída por coalizões rudimentares compostas de partidos velhos e desgastados e organizações políticas mais novas, mas fugazes.

Por que isso tem importância? As democracias baseadas em ONGs que lutam por causas isoladas e em máquinas eleitorais oportunistas são democracias frágeis. E estão proliferando. Para corrigir isso, precisamos de uma onda de inovação política que se compare a outras inovações que transformaram nossas vidas. Inovações recentes mudaram os modos como comemos, lemos, escrevemos, fazemos compras, namoramos, viajamos e nos comunicamos. Tudo o que fazemos foi transformado por novas tecnologias e novas organizações. Tudo, isto é, menos o modo como nos governamos.

Precisamos de inovações igualmente revolucionárias, que rompam padrões e tragam os partidos políticos para o século 21.

Do jeito como as coisas estão, a paralisia política é crescente, e os governos estão cada vez mais incapazes de tomar as decisões necessárias para fazer frente aos problemas de seus países.

Quando o poder se torna tão restrito assim, a estabilidade, a previsibilidade, a segurança e a prosperidade material são prejudicadas.

As "vetocracias" (termo cunhado por Francis Fukuyama) se multiplicam em todo o mundo. São sistemas em que atores em grande número têm poder suficiente para vetar, diluir e adiar decisões, mas nenhum ator isolado possui poder suficiente para fazer uma agenda ser implementada.

Tome-se, por exemplo, a débacle dos cortes obrigatórios no orçamento dos EUA que entraram em vigor em 1º de março. A recusa de uma facção em ceder num pacto orçamentário levou a cortes abrangentes e irracionais que só poderão prejudicar o país.

Ou tome-se a Itália, onde eleições recentes levaram a um impasse parlamentar, fazendo com que seja impossível formar um governo viável. Ou Israel. Ou o Reino Unido.

Para melhorar a eficácia dos governos democráticos, os partidos políticos precisam recuperar a capacidade de inspirar, energizar e mobilizar pessoas

A lógica perversa na perda de água - WASHINGTON NOVAES



O Estado de S.Paulo - 29/03

O Dia Mundial da Água, 22 de março, motivou a publicação de informações importantes sobre recursos hídricos, em diversos setores e formatos. E isso talvez permita aproximação relacionada diretamente com os interesses de cada cidadão.

Um dos ângulos mais tratados na comunicação foi o das perdas de água nas redes públicas de distribuição no País, avaliadas (Estado, 20/3) em 37,5% do faturamento das empresas operadoras dos serviços. Se houvesse uma redução de 10% nas perdas, seria possível um acréscimo de R$ 1,3 bilhão na receita dessas empresas, calculado sobre os dados de 2010, segundo o Instituto Trata Brasil. Dinheiro do cidadão hoje jogado fora, num momento em que quase 10% da população nacional não recebe água potável, quase 50% não dispõe de redes coletoras de esgotos (23 milhões de domicílios, conforme este jornal em 12/11/2012) e apenas 37,9 % dos esgotos coletados recebem alguma forma de tratamento (Valor, 12/11/2012).

E por que não se muda esse quadro, já que ele implica para os cidadãos dinheiro retirado de seus bolsos, no caso das perdas de água das redes públicas, e uma vez que os 37,5% da água que não chegam, por causa das perdas, às casas, aos escritórios, etc., terão de ser supridos com a construção de novos reservatórios, novas adutoras e novas estações de tratamento? Tudo pago pelos contribuintes, por meio dos impostos.

Um episódio real ajudará a entender. O autor destas linhas foi a uma pequena cidade, onde o prefeito lhe perguntou se o interlocutor não conseguiria ajuda para tornar viável, no governo federal, um empréstimo para implantar uma nova barragem/reservatório, nova adutora e nova estação de tratamento de água para a zona urbana. Quando lhe foi perguntado se sabia quanto se perdia de água (por furos e vazamentos) na rede de distribuição, já bem antiga, ele respondeu que o levantamento da empresa apontava uma perda de 60%. E por que não se fazia um plano de recuperação da rede, o que seria algumas vezes mais barato? A resposta foi imediata: porque nenhum órgão de governo ou banco oficial financiava esse tipo de projeto. Dois anos mais tarde, informou ele que conseguira um financiamento federal para as novas barragem, adutora e estação de tratamento, que estavam quase prontas.

Com esse caminho não se eliminaria o desperdício nas instalações antigas, pagas pelos cidadãos, e estes teriam ainda de arcar com as novas.

E por que é assim? Porque as empreiteiras de obras, que têm enorme influência nas políticas, ditam esse caminho - graças às contribuições que dão para as campanhas eleitorais dos administradores, de que são a maior fonte de recursos (e a outros caminhos). E a elas só interessam obras maiores e menos trabalhosas. Aos administradores interessa exibir suas obras, e não as que estão debaixo da terra. Só há pouco tempo se teve notícia de que um banco oficial estava financiando a recuperação de uma rede subterrânea em Pernambuco - caso único até ali. Mas continuará chegando às cidades desperdiçadoras a caríssima água transposta do Rio São Francisco.

O fato é que, por essas e outras, há Estados onde a média de perda nas redes é superior a 50%. O Distrito Federal é exceção, sem nenhuma perda em sua rede, seguido pelo Paraná (1,35%) e pelo Rio Grande do Sul (3,37%). No Estado de São Paulo a perda apontada (Instituto Trata Brasil) é de 32,55%. Na capital, nos últimos anos as perdas, reduzidas, caíram para 25,6%, o que significou um ganho de R$ 275,8 milhões anuais. O objetivo é chegar a 2019 com perda entre 10% e 15%, mediante investimento de R$ 4,3 bilhões. O Japão perde apenas 3% da água que trata e a Rússia, 20% (Sabesp, 15/3).

Precisamos evoluir muito. De acordo com a Agência Nacional de Águas, mais de 3 mil municípios brasileiros precisam investir, até 2015, nada menos do que R$ 22 bilhões para atenderem às demandas novas e antigas por água. Inclusive para resolver problemas como o do atual despejo de 15 bilhões de litros diários de esgotos sem tratamento nos rios, lagos, mangues e no litoral - a principal causa da poluição. Enquanto isso, 7,2 milhões de pessoas nem sequer dispõem de instalações sanitárias em suas casas (O Globo, 19/3). Eliminar o déficit na área de saneamento exigiria investimento de R$ 157 bilhões até 2030.

Benedito Braga, o brasileiro que preside o Conselho Mundial da Água, diz que em uma década nosso panorama em matéria de água poderá repetir o que acontece hoje no setor de energia. Só 6% das nossas água estão em situação "ótima" e 19% em situação "regular ou péssima". Mas dos R$ 4,33 bilhões previstos de recursos orçamentários em 2012, R$ 3,15 bilhões foram emprestados e apenas R$ 442,6 milhões "liquidados" (Roberto Malvezzi, Rema Atlântico, 5/3). O Plano Nacional de Saneamento Básico precisaria de R$ 426 bilhões em 20 anos. Mas estamos longe desse caminho.

Também no mundo o panorama é inquietante. O volume de água para produção de energia dobrará em 25 anos, segundo a Agência Internacional de Energia. Metade das áreas úmidas no planeta foram perdidas ao longo do século 20, por causa da expansão urbana e do maior uso na agricultura e na indústria.

Mas poderia haver soluções mais amplas por aqui. No ano passado, R$ 2,2 bilhões foram pagos pelo uso de água por empresas geradoras de energia e repassados a 696 municípios, 223 Estados e ao governo federal. Por que esses recursos não são aplicados no setor de saneamento e na oferta de água? Também a criação de consórcios intermunicipais juntando municípios com menos de 20 mil habitantes poderia ser uma solução interessante, como se discutiu no recente Seminário Internacional de Engenharia em Saúde Pública (Agência Brasil, 20/3). O esgoto condominial, já discutido neste espaço, seria uma solução eficaz e barata para essa parte do saneamento.

O que não podemos é continuar sendo regidos, nessa área, pela lógica de empreiteiras e por interesses eleitoreiros.