terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Memórias de uma ilusão fatal


PAULA SACCHETTA - O Estado de S.Paulo
Toco a campainha da casa em Santana algumas vezes, mas com a música clássica em alto e bom som, que dá pra escutar do lado de fora, ele certamente não deve ouvir meu chamado. É o ateliê de Gershon Knispel, artista plástico, de 80 anos. Telefono e ele vem abrir a porta. Vai logo baixando o som, "desse jeito não dá nem pra conversar, mas a música é minha inspiração, sem ela não consigo trabalhar". Ele mora em um apartamento em Higienópolis com a namorada, mas passa o dia no ateliê.
Gerson Knispel, radicado em SP desde 1995 - Paula Sacchetta/Estadão
Paula Sacchetta/Estadão
Gerson Knispel, radicado em SP desde 1995
De origem judaica, Gershon nasceu em Köln, na Alemanha, em 1932 e, aos 3 anos, mudou-se para a Palestina. Muitos acreditaram que Hitler não duraria tanto, mas seu pai sabia que aquele que havia chegado ao poder pelo Partido Nacional-Socialista em 1933 seria uma ameaça à família. E assim, na Palestina, entre árabes e judeus, começa a vida e a formação do simpático velhinho que hoje afirma ser "um pintor de protesto". Tudo que viveu permeia nossa conversa e nos rodeia em pinturas e gravuras espalhadas pelo sobrado de tijolo iluminado por luz natural. Entre quadros e aquários, ele me recebe com uma camiseta preta na qual dá para enxergar a etiqueta para fora com letras em hebraico. No momento está organizando sua obra para um livro que deve sair em abril, mas diz que odeia tudo que o faz parar de pintar. Humanista e humanitário, afirma que sua rotina é reagir. Um dos pioneiros na chegada dos judeus à "terra prometida", explica como testemunha da história a origem dos conflitos de hoje, nos quais judeus e árabes continuam se matando entre mísseis, homens-bomba e assassinatos seletivos.
A hostilidade de um gueto"O grande erro naquela terra foi que os primeiros judeus que chegaram, russos e poloneses principalmente, vieram com uma cultura de gueto. Chegaram sentindo-se ameaçados e assim se isolaram. Cercaram suas casas com muros de madeira, pedras, sacos de areia. Compravam terras dos fazendeiros árabes endinheirados, os efêndis, que não avisavam os camponeses que nelas trabalhavam e iam embora para a Europa. Nelas, os judeus faziam os kibutzim (kibutz no plural), com muros, todos cercados. E foram, aos poucos, criando uma atmosfera hostil. Construíam torres, diziam que era para a caixa d'água, mas eram torres de vigilância. Tiravam as pedras e as usavam para cercar e delimitar o território de cada um. Expulsavam camponeses que trabalhavam nas terras e as cercavam. Esses pioneiros chegaram sem disposição para criar qualquer vínculo com aqueles que já moravam ali. Os alemães, que chegaram pouco depois, eram mais abertos, mas aí já era tarde.
Um outro povo na terra"A partir desse choque e desse antagonismo foi surgindo um nacionalismo árabe. Os judeus recém-chegados tinham sindicatos e organizações, e os árabes, que começaram a se sentir mais fracos, queriam organizar-se também - e o fizeram. Além disso, a língua falada nas ruas passou a ser o hebraico e até o iídiche foi liquidado, pois era preciso fortalecer uma espécie de orgulho nacional. Toda uma cultura forte que existia na região foi ignorada e praticamente desapareceu. Quando cheguei à Palestina não conseguia falar hebraico direito. Falava alemão na rua e era chamado de nazista pelas outras crianças judias. Já com os vizinhos árabes a coisa era diferente: as casas deles estavam sempre com as portas e janelas abertas, não tinham muitos móveis, mas eram cheias de tapetes e almofadas onde podíamos nos encostar e deitar. As casas tinham mosaicos de azulejos coloridos e fontes no quintal. Era diferente da minha própria casa, onde a gente entrava com os pés sujos de lama e tomava bronca da mãe. Eles recebiam bem quem chegasse. Eu me comunicava com eles em árabe, o pouco que aprendi na rua com as outras crianças. Para mim já era claro: não haveria futuro se nos fechássemos. E eu queria me adaptar. Minha família se estabeleceu em Haifa, uma cidade portuária, de pequenas praias, e como meus pais não tinham muito dinheiro, ficamos na parte mais pobre da cidade. Todos os meus vizinhos eram árabes. Quando chegamos já havia outro povo na terra, não era um deserto. Tinha um povo que era nosso irmão e precisávamos respeitá-lo. E também eram donos daquela terra.
Dividir para reinar"Nos anos 1930, judeus intelectuais da Palestina fundaram uma organização política, a Brit Shalom, que pregava a coexistência pacífica entre judeus e árabes. Era a primeira tentativa de negociação de paz na região. Pregavam que o maior inimigo era o mandato britânico e que os palestinos, árabes e judeus, precisavam se juntar pela paz permanente e tirar os ingleses da terra. Lutavam pelo estabelecimento de um Estado binacional onde árabes e judeus tivessem direitos iguais. Abdicavam do sonho sionista da criação de um Estado puramente judeu. Mas não conseguiram, pois já estava enraizada toda uma infraestrutura para tornar Israel um Estado judeu. O Grande Levante Árabe de 1936, que chega até nós, hoje, como um levante contra o povo judeu, era contra a Inglaterra e seu mandato na Palestina, contra o domínio colonial. Para piorar a situação, David Ben Gurion, que viria a ser o primeiro primeiro-ministro de Israel, inventou o conceito de 'trabalho judaico'. Os camponeses expulsos de suas terras e sem trabalho nas cidades, já que judeus só empregariam judeus, começaram a sentir mais raiva ainda. Os conflitos começaram a se aprofundar e a Inglaterra, obviamente, usava isso a seu favor. Dividindo os povos, poderia dominar mais facilmente. Em vez de nos juntarmos, nos separamos. Ben Gurion chegou à Palestina em 1908, e os judeus alemães, mais 'abertos' à convivência com os palestinos, só nos anos 1920 e 30.
O primeiro choque"Sou da chamada 'geração de 1948'. Participei de cinco guerras como oficial do Exército, mas foi em 1953 que tive meu maior choque, que foi a morte de todo aquele idealismo pra mim. Aos 12 fui morar em um kibutz socialista ao norte de Israel. Meus pais ficaram em Haifa e fui recebido por Shlomo e Tzilla Rozen. Eu era do Mapam, o partido socialista sionista em 1953, quando um amigo me levou para visitar Nazaré. Passamos por um hotel para peregrinos que se chamava Casa Nova. Fiquei horrorizado. O hotel era sujo, tinha um cheiro horrível de urina e muita gente e colchões amontoados nos quartos. Comecei a andar pelos corredores e vi que conhecia a gente que estava ali. Eles eram de Maalul, um dos centenas de vilarejos tirados do mapa e apagados por Israel depois de 1948. Eles confirmaram que eram de lá, também me conheciam e estavam esperando, me disseram. Estavam naquela situação havia mais de cinco anos. Esperando o quê? Nas guerras contra o mandato britânico seus vizinhos do kibutz, o mesmo onde eu morava, os tiraram da aldeia para protegê-los, disseram. Eles ficariam longe de casa durante a guerra, mas voltariam depois, sãos e salvos. Cinco anos haviam se passado e eles continuavam esperando. Fiquei com raiva. Voltei ao kibutz e perguntei a Shlomo o que significava aquilo. Contei tudo que havia visto em Nazaré. Ele ficou branco e me respondeu: 'Você conhece Ben Gurion? Ele é impossível. Não deixa que devolvamos as aldeias aos árabes'. Mas essas aldeias ainda existem?, perguntei. E ele: 'Não vamos entrar em detalhes'. Mas por que então ele fazia parte do governo de Ben Gurion (Shlomo era ministro da Imigração)? 'É melhor assim porque sem ele ficaremos pior', respondeu. Rasguei a carteira do partido na cara dele e saí sem me despedir. Entrei no Partido Comunista logo depois.
Brasil, um painel e um passaporte"Em 1958, Nina, que tinha sido minha namorada em Israel e veio para o Brasil com a família, me avisou de um concurso promovido pela TV Tupi para a execução de um mural no prédio deles. Eu já era artista plástico. Me inscrevi, mandei os croquis e venci. O painel ainda está lá: são índios de 7,5 metros de altura, no lugar mais alto de São Paulo, no Sumaré, onde hoje funciona a MTV. Uma vez no Brasil, me juntei ao pessoal do CPC, Centro Popular de Cultura, o Guarnieri, o Juca de Oliveira, o Augusto Boal e, entusiasmado com eles, fui ficando. Fiz uma gráfica para imprimir gravuras. O Brasil se tornou minha pátria também. Me juntei ao Partido Comunista com Mário Schenberg, Villanova Artigas e Oscar Niemeyer, que se tornou um amigo próximo. O prédio da MTV foi tombado recentemente, recebi a notícia com muita alegria. É uma garantia de que aquilo será preservado. Em 1964, no dia seguinte ao golpe militar, já comecei a ser procurado. Estava envolvido demais com o Partido Comunista e o CPC, era perigoso para eles. Peguei um cachimbo, tabaco, um passaporte e um talão de cheques e fui atrás de gente do Mapam, aquele mesmo partido do qual eu havia rasgado a carteirinha, em São Paulo. Tínhamos divergências, mas numa hora dessas eles precisavam me ajudar. Me transferiram para o Rio, onde ficava a Embaixada de Israel. Fiquei lá alguns dias e arranjaram um voo para Israel. De 1964 a 1986 morei em Haifa e trabalhei como conselheiro de arte da prefeitura. Em 1986, virei presidente do conselho dos artistas plásticos de Israel. Em 1987, 20 anos depois da Guerra dos Seis Dias, fizemos uma exposição com 67 artistas, metade árabes e metade judeus, contra a ocupação israelense de terras palestinas. Voltei ao Brasil em 1995 e fiquei.
Reféns de um Estado distante"O problema é que a política do Estado de Israel, desde sempre, foi de derrubar tentativas de negociação de paz, pois eles não queriam um Estado palestino ou um Estado binacional. Nós, da geração de 1948, chegamos à conclusão de que a grande euforia por um Estado não levou em conta que iríamos nos tornar um país ocupante e, com o tempo, um país baseado nos princípios fascistas mais radicais. Temos agora uma bomba atômica e um muro de 650 quilômetros de extensão e 8 metros de altura. Nos jornais dos últimos dias, senti uma tristeza enorme ao ver fotos de israelenses procurando abrigo nas ruas das cidades bombardeadas. Afinal, os mísseis e foguetes que saíram de Gaza não passaram por cima do muro? Então para que ele serve? Serve para separar famílias, tornar o caminho dos palestinos mais difícil, e eles já estão fartos disso. Um pacifista israelense, Gershon Baskin, disse que o assassinato de Ahmed Jabari, líder militar do Hamas, foi um 'erro estratégico'. Não foi um erro estratégico, é a estratégia de sempre. A estratégia é não querer a paz. Yitzhak Rabin (primeiro-ministro de Israel em 1974-1977 e 1992-1995) e Yasser Arafat (líder da Autoridade Palestina) representavam os maiores perigos para Israel, pois eram capazes de estabelecer uma paz de fato na região. Rabin foi morto por um judeu ortodoxo de extrema direita e Arafat terá seu corpo exumado ainda este mês porque suspeita-se que ele tenha sido morto por exposição a substâncias radioativas pelo serviço secreto israelense. Quando começaram esses últimos ataques jovens saíram às ruas aqui em São Paulo, na Av. Paulista, para protestar contra o Hamas. Eu me pergunto, o que eles estão fazendo? Aqui, por serem judeus, ficam reféns de um Estado que pratica essas atrocidades. Não têm o direito de votar lá, mas assumem, aqui, os crimes deles.
A ilusão final"Manter Israel como é mantido hoje, como uma coisa única e completa, é suicídio. Hannah Arendt, em seu relato sobre o julgamento de Adolf Eichmann, nazista executado nos anos 1960, criticou a tendência dos israelenses de fazerem uma expansão desenfreada, criando uma situação em que todos os esforços se concentram em armas, transformando a cultura e o Estado 'modelo' que eles queriam em uma ilusão fatal. Quanto tempo, perguntou ela, vai durar um Estado que só sobrevive à base da força? Precisamos acabar com essa história de Israel grande, precisamos devolver os territórios ocupados e derrubar o muro da vergonha. Nossa geração, que achava que estava libertando o Oriente Médio do colonialismo, percebeu que aquilo era uma ilusão. Em 1956, na Guerra do Suez, eu era paraquedista e fui enganado. Derrubamos o projeto do Nasser para nacionalizar o Canal de Suez, que era legítimo. Achei que estava ajudando, mas foi uma aventura colonialista ao lado da Inglaterra e da França. Hoje somos usados de novo: Israel é o maior parceiro das aventuras imperialistas norte-americanas no Oriente Médio. E eu não paro de falar, escrever e pintar. Não paro porque é um bom jeito de ficar vivo."

Política e ética na prancheta


 "Aos jovens não basta sair da faculdade como um ótimo arquiteto, mas como um homem que leu, que conhece as misérias do mundo e contra elas vai saber se manifestar."

MARIA HIRSZMAN/, ESPECIAL PARA O ESTADO - O Estado de S.Paulo
A arquitetura não é o único legado de Oscar Niemeyer. Tanto quanto suas criações e projetos, sua postura ética, a defesa moral de ideais irredutíveis - a despeito das pressões políticas contrárias - são marcas registradas de sua atuação. "Passei a vida debruçado na prancheta, mas a vida é mais importante do que a arquitetura", repetia ele, reafirmando assim o lado humano de sua obra, muitas vezes deixado de lado por uma visão mais técnica de seu legado.
"Oscar, você recebeu, em quase um século de vida, todos os prêmios e reconhecimentos mais importantes do mundo, entre outros: o prêmio Lenin na antiga União Soviética; o Pritzker Prize - injustamente compartilhado com um arquiteto norte-americano; a Royal Gold Medal dos arquitetos ingleses; e recentemente o Prêmio Imperial do Japão", afirmou Roberto Segre em uma das homenagens prestadas ao arquiteto em vida, procurando ressaltar o que chamou de atenção constante aos "caminhos da cultura progressista", de "persistente atitude política e ideológica em defesa da justiça social, dos direitos dos oprimidos, dos explorados"; e de luta pelo "acesso à cultura, à beleza, à estética do entorno cotidiano".
Realmente era notável a capacidade desse homem que viveu quase todo o século 20 (ele nasceu em 1907), protagonizou a história da arquitetura moderna, de manter-se fiel às mesmas crenças políticas, sem deixar que elas interferissem em sua trajetória ou abandonar os ideais de juventude por um caminho mais fácil e palatável. Filho de fazendeiros, era o único ateu e comunista da família. Mas diz que foi levado a esse caminho pela revolta em relação à situação de miséria e desigualdade no mundo.
Um de seus grandes companheiros foi Luiz Carlos Prestes, a quem abrigou em seu escritório logo após a anistia de 1945. O líder da Coluna Prestes teve influência decisiva em sua filiação ao Partido Comunista Brasileiro, no mesmo ano, e também estavam juntos na desfiliação do Partidão, em 1990.
Outro dentre os vários companheiros de jornada foi Darcy Ribeiro, com quem construiu a Universidade de Brasília e, anos depois, os Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), durante o governo de Leonel Brizola. O sociólogo costumava dizer que Niemeyer era o "único gênio brasileiro".
Permaneceu fiel ao ideário de esquerda, defendendo causas como a de Cuba, movimentos como o MST e certo de que em algum momento chegariam as mudanças necessárias.
"A revolução de 1905, de outubro de 1917, a vitória contra o nazismo, a libertação de Cuba, tudo isso vai se repetir depois destes tempos sombrios que o capitalismo brutalmente instituiu e o império de Bush procura manter", afirmou em uma de suas inúmeras declarações de caráter político. "Só restaram dois comunistas no mundo. O Niemeyer e eu", teria dito o próprio Fidel Castro, como versa a lenda.
Conciliador sem ceder no campo ideológico, ele se entendia e dialogava com representantes de um amplo espectro, dos dirigentes do Partido Comunista Francês (é dele o projeto de sede do PCF, em Paris, e do jornal L'Humanité) ao presidente Juscelino Kubitschek, com quem construiu não apenas Brasília, mas outros projetos memoráveis, como o complexo da Pampulha, em Belo Horizonte - que Niemeyer via como uma espécie de ensaio preparatório para o que depois viria a ser a nova capital do País.
Ironicamente, atribuía ao regime militar parte da grande repercussão e dispersão de seu trabalho no exterior. Afinal, foi em função das pressões da ditadura que optou pelo autoexílio. "Eles, que queriam me calar, deram-me a oportunidade de levar minha arquitetura para a Europa e fazê-la conhecida, como desejava. Para isso tive apoio de Maurois, que conseguiu de De Gaulle uma lei especial para trabalhar na França", disse.
Esse lado humanista e engajado de Niemeyer se sobressai sempre nas muitas entrevistas que ele concedeu em mais de um século de vida. Raramente se dispunha a falar de arquitetura. Quando o fazia era sempre com um lápis na mão e lançando mão de associações poéticas entre sua obra e sublimes fontes de inspiração como as curvas do corpo feminino.
É impressionante essa relação de Niemeyer com a forma, sua capacidade de criar prédios que mais parecem esculturas do que estruturas adaptáveis ao uso futuro. "Um dia Le Corbusier comentou que eu tinha as montanhas do Rio dentro dos olhos", brincava.
Ele sempre fez questão de reafirmar aos jovens profissionais - e seu exemplo marcou gerações e gerações de arquitetos brasileiros e estrangeiros - a importância de uma formação genérica, de uma ampla base cultural que vá muito além das noções de cálculo e equilíbrio: "Aos jovens não basta sair da faculdade como um ótimo arquiteto, mas como um homem que leu, que conhece as misérias do mundo e contra elas vai saber se manifestar."

Ousadias num País tropical, por Gilberto Gil


Gilberto Gil - especial para O Estado de S. Paulo
Dias de adaptação à luz intensa, natural, que substitui as lâmpadas acesas durante o dia; às divisões baixas de madeira, em lugar de paredes; aos móveis padronizados - que, antes, obedeciam à fantasia dos diretores ou ao acaso dos fornecimentos. Novos hábitos são ensaiados... A sala em que me instalaram não provou bem. Desde anteontem passei para onde as coisas têm melhor arrumação. Das amplas vidraças do 10.º andar descortina-se a baía vencendo a massa cinzenta dos edifícios. Lá embaixo, no jardim suspenso do Ministério, a estátua de mulher nua de Celso Antônio, reclinada, conserva entre o ventre e as coxas um pouco de água da última chuva, que os passarinhos vêm beber, e é uma graça a conversão do sexo de granito em fonte natural. Utilidade imprevista das obras de arte.
Obras de Niemeyer levam admiradores a ensaiar novos hábitos - Reprodução
Reprodução
Obras de Niemeyer levam admiradores a ensaiar novos hábitos
Essas palavras foram escritas por Carlos Drummond de Andrade, em O Observador no Escritório, para falar da mudança do ministro Gustavo Capanema e sua equipe para o então prédio do Ministério da Educação e Saúde, nos primeiros dias do mês de abril de 1944. E é fascinante ouvi-lo não só sobre a luz natural invadindo as salas, como sobre a sensação espacial de estar num prédio radicalmente novo, que leva a ensaiar novos hábitos. Este é o dom, a virtude e a verdade da grande arquitetura. O espaço construído sendo capaz de renovar a nossa experiência das formas e os nossos hábitos.
Mas este prédio de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, baseado no traçado original de Le Corbusier, não é só isso. Ele é um marco inaugural, marco da nova arquitetura brasileira e mundial, marco da invenção na história da cultura brasileira. E tem lições fundamentais para nos dar, no momento em que estamos vivendo.
Aqui está uma prova nítida de nossa capacidade de assimilar criativamente linguagens internacionais, nelas imprimindo a nossa marca própria e original, inclusive para nos antecipar às realizações estrangeiras. Porque a verdade é que este prédio, exemplo de ousadia e requinte tropicais, pegou de surpresa os centros mundiais de cultura. Neste caso, deixo a palavra com o próprio Lúcio Costa: "O edifício construído para sede do antigo Ministério da Educação e Saúde surgiu como que de repente e a sua serena beleza surpreendeu quando, terminada a guerra, o mundo tomou conhecimento da sua insólita presença. Marco definitivo da nova arquitetura brasileira revelou-se igualmente, apenas construído, padrão internacional da reformulação arquitetônica, e demonstrou que o engenho nativo já está apto a apreender a experiência estrangeira, não mais somente como eterno caudatário ideológico, mas antecipando-se na própria realização."
Uma outra lição que este grupo e este prédio nos dão está na aliança que souberam tecer entre a tradição e o novo. Não foi isso o que aconteceu na Europa, onde agrupamentos se dividiram, como adversários, em nome de uma suposta dicotomia entre memória e invenção - e o panfletário Le Corbusier queria fazer tábua rasa do passado. O Instituto do Patrimônio - criado por um punhado de jovens inovadores, sob a regência de Rodrigo Melo Franco de Andrade - ficou abrigado aqui mesmo, neste prédio de vanguarda. E Lúcio Costa trabalhou para o Patrimônio. Podemos dizer, portanto, que este grupo tinha um pé em Ouro Preto - e um pé no futuro, que um dia se chamaria Brasília.
Este prédio nos ensina, também, que é preciso ter responsabilidade para construir. Responsabilidade social e cultural. Porque todo prédio importante, que se ergue na paisagem, vai marcar profundamente o corpo da cidade. Marcar com a sua dimensão física, com a sua carga simbólica e com a sua mensagem. E é por isso mesmo que devemos olhar com reserva, criticamente, todo projeto de implantação de obras gigantescas, grandes somente em sua monumentalidade, mas culturalmente supérfluas, vazias de significado.
Gostaria de lembrar o contexto histórico em que este edifício se ergueu. Ele foi construído ao longo da 2ª Guerra Mundial. E assim gerou um contraste eloquente. Enquanto na Europa a tecnologia estava sendo usada para destruir, no Brasil ela estava sendo usada para construir. E que isto também nos sirva de lição, hoje, quando a perspectiva de uma nova guerra se desenha cada vez mais próxima. Que a tecnologia seja para nós, sempre, um instrumento construtivo sempre para paz.
Por tudo isso, é preciso revelar, ao próprio Rio e a todo o País, o significado deste prédio. É preciso informar, iluminar e usar os seus belos espaços. Recuperar o que for preciso de suas instalações. Para que este edifício renasça da cidade - e para o coração do País.