domingo, 23 de dezembro de 2012

Liberdade



Existe a boa e a má. Os EUA, o mais singular experimento democrático da história, chegaram a uma encruzilhada na qual terão de decidir se enfrentarão essa distinção

22 de dezembro de 2012 | 17h 25
Lee Siegel
Eu pretendia traçar neste artigo um panorama amplo do que o futuro poderia reservar aos Estados Unidos em várias esferas: cultural, social, política. Mas a história nos ensina que a natureza de uma sociedade é medida por seus piores eventos, não pelos melhores. Poucas civilizações foram capazes de produzir obras de arte tão sublimes como a Alemanha às vésperas do Holocausto. A despeito de toda estabilidade política, mobilidade social e criatividade cultural dos Estados Unidos hoje, - estou olhando o país com absoluta relatividade, pela óptica da história - o massacre de 20 crianças e 6 adultos em Newtown, Connecticut, em 14 de dezembro, é o sintoma de uma doença profunda no coração da vida americana.
A despeito da estabilidade dos EUA, massacre é visto por autor como sintoma de doença social grave - Shannon Stapleton/Reuters
Shannon Stapleton/Reuters
A despeito da estabilidade dos EUA, massacre é visto por autor como sintoma de doença social grave
Nos noticiários, ouvi o pai de uma adolescente que foi morta no massacre da Columbine High School em 1999. O país precisa de controle de armas, é claro, ele disse. Mas ele também precisa de uma completa transformação espiritual. Jamais se proferiram palavras tão verdadeiras.
Existe a liberdade boa e a liberdade má. Os Estados Unidos, o mais singular experimento democrático da história, chegaram a uma encruzilhada onde terão de decidir se enfrentarão essa distinção. Nesse sentido, a atitude da mãe do assassino de Newtown para com seu filho assassino é um símbolo sinistro tanto da má liberdade liberal como da má liberdade conservadora.
Nancy Lanza, a mãe de 54 anos de Adam Lanza, o jovem de 20 que cometeu a chacina, fez uma escolha notável. Mesmo sabendo que seu filho era mentalmente doente, ela começou a lhe ensinar a disparar uma arma quando ele tinha 9 anos. E não qualquer tipo de arma. Ela lhe ensinou a usar armas de assalto semiautomáticas. Aparentemente, enquanto a condição mental do rapaz se deteriorava, continuou a levá-lo a campos de tiro para praticar tiro ao alvo. Ela confessou a um conhecido não muito antes do massacre de Newtown que Adam vivia se queimando com isqueiros para tentar sentir dor. E, contudo, até onde se sabe, ela nunca buscou ajuda profissional para ele.
Nancy Lanza vivia numa América em que a própria ideia de doença mental não pode ser tolerada. Chamar alguém de mentalmente doente é violar seus direitos civis. Há um precedente humano para essa atitude, pois durante séculos, os deficientes mentais foram segregados, atormentados e, às vezes, torturados. Nos Estados Unidos de hoje, porém, em que a cultura é inteiramente liberal, a atitude predominante foi além do tratamento humano do doente mental. Ela agora pede uma ilusão coletiva pela qual qualquer um, a despeito de qual seja sua deficiência mental, pode fazer o que bem quiser. E assim Adam Lanza, que não tinha sentimentos de compaixão e era dado a acessos de raiva, foi encorajado por sua mãe a dominar o uso de armas letais. O indivíduo americano não tolerará a ideia de não conseguir o que desejar.
Do lado conservador, é claro, a demanda é que todos possam comprar o tipo de arma que desejarem. Está além da compreensão que, com o que se sabe da natureza humana, as pessoas possam ter algo mais perigoso que uma colher de plástico. Mas o delirante lobby das armas e sua clientela insistem em que as pessoas tenham o direito de comprar as mesmíssimas armas e munições que soldados americanos usam no Iraque e no Afeganistão. Mesmo que uma proibição de armas de ataque fosse transformada em lei, ninguém questionaria o direito de cada americano possuir revólveres e rifles que ainda têm um tremendo poder letal. No maior experimento democrático que a humanidade conhece, o melhor que se pode esperar é que, no futuro, um matador como Adam Lanza consiga matar apenas 5 ou 6 crianças de cada vez e não 20.
E se Obama magicamente adquirir a coragem de suas eloquentes e decentes convicções e uma proibição de armas de ataque se tornar realidade? Ainda existirá uma causa perniciosa de assassinatos em massa que os liberais americanos jamais enfrentarão: a violência na cultura popular. Segundo relatos, Adam Lanza era um jogador contumaz. Ele adorava jogar videogames que banalizam o ato de matar. Psicólogos falam do fenômeno de "despersonalização", um estado mental em que a pessoa começa a se dissociar de suas ações, como se estivesse se observando num sonho, ou se observando como se fosse uma pessoa completamente diferente. No mundo dos videogames, despersonalização é o estado mental costumeiro. É esse também o estado mental de um assassino em massa.
Mas nenhum liberal jamais falará contra os videogames, ou contra o aumento da violência na televisão e no cinema, mais do que algum conservador falará contra cidadãos privados possuírem armas letais. Para os liberais, a "liberdade" de expressão e a busca do prazer não devem ser obstruídas. Para os conservadores, a "liberdade" de ação e a sublimação do prazer em ocupações agressivas como atirar não devem ser questionadas. Como sempre, o país está paralisado por uma divisão fundamental. O único traço que os dois lados compartilham é um compromisso inarredável com a soberania absoluta do indivíduo.
Não é por acaso que a esfera mais esperançosa na vida americana é a ciência, em que avanços na tecnologia médica, por exemplo, estão transformando a vida para melhor. As regras da ciência de experimento e verificabilidade não podem ser contornadas ou rompidas. A liberdade em ciência é inseparável de seu rigor.
Outras esferas da vida americana são mais porosas, e estão sofrendo com um aumento da liberdade má. O delicado equilíbrio entre liberdade e disciplina que é mantido na ciência tem sido derrubado em muitas áreas. A crise econômica de 2008, que ainda está se desdobrando aqui e na Europa, teve muito a ver com um tipo de especulação financeira que atropelou fronteiras, regras e qualquer senso de proporção. A liberdade má varreu como um tsunami mortal a liberdade boa do mercado.
Considerem ainda a internet, onde o conflito entre as liberdades má e boa assumiu dimensões de Armagedon. Em nome do igualitarismo, a democracia está sendo corroída pelo poder da massa. A regra das vozes mais altas na web também tornou possível que um demagogo após outro - de Palin a Trump - ganhasse uma influência na sociedade que jamais teria alcançado em tempos menos conectados. O efeito tem sido transformar a política em entretenimento - mas é aqui que a incansável dinâmica da vida americana reafirma uma energia positiva. Se a política ainda fosse política, os demagogos representariam um perigo real para a sociedade. Mas como a política os tornou animadores de espetáculos, eles rapidamente se tornam irrelevantes à medida que seu espetáculo envelhece.
A arte americana um dia forneceu uma esfera iluminadora, esclarecedora, para se escapar do aspecto surreal da realidade americana. Era um lugar em que os limites da sociedade podiam ser contornados e as energias primitivas do indivíduo, liberadas. Mas agora que a sociedade parece ter adquirido a permissividade primitiva da arte, a arte em si parece reprimida - como nas sociedades despóticas. Não me entendam mal. Quanto menos repressões punitivas a sociedade infligir às pessoas, menos dor haverá no mundo. Mas há repressões e há repressões. A tolerância, por exemplo, de formas diferentes de amor e sexualidade humanos é benéfica. A tolerância à cultura da arma e à violência na cultura, não.
À medida que as imagens de violência geradas por computador nos filmes excedam tudo que a imaginação humana possa conceber, que notícias de massacres incompreensíveis superem tudo que a mente seja capaz de compreender, a imaginação artística se encolhe intimidada. Faz cerca de 30 ou 40 anos que os últimos movimentos interessantes - minimalismo, arte conceitual, arte performática, videoarte - ocorreram nas artes visuais. Em ficção, em poesia, os escritores estão todos abrigados em seus nichos privados, trabalhando em estilos que são, em algum grau, tímidos pastiches da arte literária passada. A música popular, como uma coleção de estilos originais, definidores, desapareceu.
Há muitas razões para a falta de originalidade nas artes, mas uma das principais é, com certeza, o desprezo quase institucional na América por qualquer tipo de fronteira limitadora em quase toda esfera de atividade. A arte, ainda mais que a ciência, requer um raro equilíbrio de liberdade e contenção. É dessa luta contra proibição e restrição que nasce a originalidade. Agora que tudo é permitido, a imaginação foi privada de sua função.
Na superfície, a maioria das pessoas se comporta bem. Mas à medida que aprendem a comercializar sua privacidade em público, em especial na internet, elas estão cultivando um novo tipo de privacidade subterrânea. Estamos na era da vida dupla, na qual, por baixo da aparência de contenção, as pessoas se entregam sem restrições a cada apetite seu. Por trás da aparência tranquilizadora de Bernie Madoff espreitava um monstro amoral. Por trás de um médico chamado Sidney Gilman, com uma carreira respeitável de especialista no tratamento da demência - como The New York Times reportou recentemente -, estava um homem que usava sua pesquisa para se envolver no uso ilegal de informações sigilosas no mercado acionário. Por trás do que vizinhos descreveram como a "graça incomum" de Nancy Lanza existia uma pessoa tragicamente cega e voluntariosa que treinou seu filho desequilibrado para matar. Sempre houve uma distância por vezes fatal entre aparência e realidade. Agora, essa distância foi aperfeiçoada. Graças à internet, ela até possui sua própria tecnologia.
Enquanto escrevo, americanos temem que o país caia no chamado "abismo fiscal" se democratas e republicanos não chegarem a um acordo sobre como equilibrar o orçamento no começo do próximo ano. Uma grande massa de americanos está preocupada também com a chegada iminente do fim do mundo segundo o calendário maia. Fico pensando se não haverá uma conexão entre os dois tipos de ansiedade. Fico pensando se o sentimento de proximidade de um fim confere às pessoas a ilusão de escapar das más liberdades que as sufocam. Fico pensando se essa sensação de fim iminente não é de fato uma simulação terapêutica de algum tipo de restrição jubilosa, alguma fronteira extrema que está faltando nas vidas das pessoas.
O mundo felizmente continuará no próximo ano. O problema é que continuará tal como é.
TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
LEE SIEGEL É ESCRITOR E CRÍTICO CULTURAL AMERICANO. ESCREVE PARA O JORNAL THE NEW YORK TIMES, AS REVISTAS HARPER'S, NEW YORKER E THE NATION. NO BRASIL, ONDE É COLUNISTA EXCLUSIVO DE O ESTADO, PUBLICOU VOCÊ ESTÁ FALANDO SÉRIO? (PANDA BOOKS) 

À espera



O tempo teimoso, a melancolia das festas... Para as presas ‘marcadas’ de Tremembé, a vida é uma eterna expectativa

22 de dezembro de 2012 | 17h 15
Juliana Sayuri
TREMEMBÉ, SP - Primavera é tempo triste em certos campos de Tremembé. Não há flores, nem frescor, nem cartas de amor que façam jus à estação. Só há o sol escaldante do Vale do Paraíba, a saudade, o marasmo inquietante, as grades. Setembro vira outubro, passa o Dia da Criança, o último capítulo da novela, Finados, o outro feriado esquecido, a chuva inesperada, volta o sol ardido, outro domingo solitário, outro Fantástico, novembro quase no fim e, enfim, a melancolia natalina, já com os primeiros dias de verão. Assim, silencioso, passa o tempo na Penitenciária Feminina I Santa Maria Eufrásia Pelletier de Tremembé.
Presídio abriga 169 mulheres que, literalmente, não têm mais aonde ir - Mônica Zarattini/Estadão
Mônica Zarattini/Estadão
Presídio abriga 169 mulheres que, literalmente, não têm mais aonde ir
Minto: não passa. Teima e se arrasta. No número 59 da Rua Monsenhor Amador Bueno, a mesma bicicleta Caloi antiga encostada, as mesmas janelas brancas enxadrezadas e a mesma muralha azul-bebê envelhecida dão uma desesperadora sensação de tranquilidade à penitenciária de segurança máxima, inaugurada oficialmente em 1963. Do lado de fora, não fossem a guarita alta, as fechaduras fortes e o arame farpado, a construção talvez passasse por um colégio qualquer. Mas, do lado de dentro, a história é outra. Encravado no centro da cidadezinha de 45 mil habitantes, a 133 km de São Paulo, o presídio abriga 169 mulheres que, literalmente, não têm mais aonde ir. São as excluídas das excluídas do sistema.
"As presas de outras prisões têm as próprias regras. E simplesmente não aceitam certas detentas. Tremembé é a última parada para elas", diz a diretora, Eliana de Freitas Pereira. Por um lado, o xadrez mantém famigeradas personalidades como Suzane Von Richthofen, Elize Matsunaga e Anna Carolina Jatobá que, graças aos holofotes, dispensam apresentações. Por isso, o endereço é chamado de "Presídio de Caras" (na mesma linha, mas num canto distante da cidade, a ala masculina acolhe famosos como Alexandre Nardoni, Cristian e Daniel Cravinhos, Lindemberg Alves). Por outro lado, ali também estão presas anônimas, mas hostilizadas e recusadas por outros xilindrós do Brasil. É a mãe que matou a filha, a filha que matou a irmã, a irmã que matou o pai, a madrasta e a família inteira, e assim por diante - na casa das 169 mulheres, 74 foram indiciadas por assassinato. Por fim, há as presas de rabo preso, como ex-policiais, ex e atuais mulheres, namoradas e amantes de promotores, policiais, juízes, carcereiros e qualquer outro homem da lei. Nas prisões comuns, elas são as primeiras a serem escolhidas para alvo, escudo e principalmente refém durante rebeliões e motins.
Em Tremembé, essas presas podem encontrar certa tranquilidade. Desde fins de 2007, a casa de detenção só recebe reeducandas enquadradas nesse "perfil" - as excluídas das excluídas. Na época, foi feito, carimbado e aceito um pedido na Secretaria de Administração Penitenciária para fazer uma triagem entre as pretendentes a um cantinho numa das 44 celas dos três pavilhões que ocupam 6 mil m² do terreno de 35 mil m². Há celinhas de 6 lugares, celões de 15 a 18 lugares e uns outros "quartos" para isolamento no pavilhão 3 - às vezes, quando a tensão aperta, as presas pedem para ficar sozinhas ali; outras vezes ficam trancafiadas, à revelia, como castigo disciplinar.
Na cela n.° 19 do pavilhão 2 vive a maranhense Mayara Almeida Ribeiro, detenta n.° 96, que espera júri popular desde março de 2011. "Desculpe, não quero dar detalhes. Diz aí que estou no crime 121", abrevia a jovem de 22 anos, acusada de esfaquear e matar a mãe num rompante de fúria de 5 gramas de cocaína, em casa, na cidade de Rio Claro.
Antes de permitir minha entrada nos pavilhões, uma agente penitenciária quis conferir o paradeiro de Anna Jatobá e Suzane, para nos desviarmos do caminho. "Elas ficam bravas quando notam gente estranha aqui dentro. Sempre pensam que são o centro das atenções." Cruzamos o corredor abafado do pavilhão 1, ladeado por portas de madeira pesada e portões de ferro, e após poucos lances de escada, passamos pelo pavilhão 2, mais arejado, mas com o mesmo piso avermelhado e paredes descascadas. Na cela 12 dorme Suzane. No fim do corredor, uma porta misteriosa. "Não é salinha de tortura, não, viu? Aliás, essa você nunca vai descobrir onde fica", diz outra agente penitenciária - brincando, espero.
Nas portas, uma cartolina colorida mantém carteirinhas brancas com as identidades das detentas. Uma vez destrancada a cela 19, Mayara diz: "Entra. Fica à vontade". Na segunda cama do treliche, com colchões finos e lençóis brancos como todas as outras camas, a garota guarda bijuterias, diversos cremes e hidratantes perfumados, estojo de maquiagem, laços, papéis de carta, porta-lingerie e outras quinquilharias. Ao lado, um varal com calcinhas e meias coloridas. Na sua prateleira na primeira estante metálica, caixas e caixas de chocolate - "Minha filhinha de 4 anos adora bombons. Guardo para dar de presente nos dias de visita". Na sua parte na segunda estante, os uniformes - camisetas brancas e vermelhas, bermudas e calças beges -, que ela mesmo lava, esfrega, estende e ensaca peça a peça, para protegê-las do pó e do cigarro. "Sou uma presa exemplar", diz a menina tímida, que se tornou miss no festival da primavera no presídio, no início de outubro. "Foi um dia de princesa." Desfilou um vestido preto com flores e outro lilás com fenda, emprestados por pequenas butiques da cidade. "Só nessa festa podemos vestir outras roupas, diferentes do uniforme. Pode até salto alto. Vem maquiador e tudo. Quase esquecemos que estamos presas."
Morena mignon, Mayara tem voz doce e um jeito pueril, quase adolescente. Aos 12, encontrou o primeiro amor - ela, corintiana; ele, palmeirense. Ficaram sete anos juntos e tiveram uma filha, a pequena Mayany Naiá, que está com a família paterna "desde o B.O.". Na última visita, Mayara mostrava vaidosa o esmalte tom lilás, "Garota Pop". Mantém bem-feitas as unhas delicadas, de fazer inveja a muita socialite.
Vaidade, aliás, é o pecado capital preferido dessas mulheres. "Nós temos tempo, muito tempo...", diz Dominique Scharf, detenta n.° 188. "Eu sei que sou uma bela jovem senhora", conta a paulistana de 52 anos. Dominique escapa ao perfil das presidiárias dali: é a única estelionatária. Filha de pai judeu americano e mãe católica alemã, ela casou "muito errado" aos 18 anos, com um pequeno traficante de armas. Rendeu-se à adrenalina do roubo e do estelionato, foi processada pela primeira vez em 1979 e, quando viu, foi presa pela primeira vez em 1990. "Era estelionato internacional. Estava voltando ao Brasil e a polícia estava me esperando no aeroporto", lembra. Após idas e vindas, fuga e habeas corpus nas prisões de Campinas, Tatuapé e Ribeirão Preto, pediu transferência para Tremembé, em 2008. "Queria paz." Agora ela vive na cela 16 - "a melhor do hall", diz, também orgulhosa por ter comprado uma TV de LCD nova para instalar no "apartamentinho". "Nós nos revezamos na faxina das celas e damos um toque feminino ao lugar."
Loira e alta, rímel preto, batom forte, Dominique não é tão famosa como Suzane e Elize. Dentro do presídio, porém, a 171 é uma referência. Primeiro, pelo estilo elegante e sofisticado, diz, tanto que arrisca dicas de etiqueta para as companheiras de cárcere. Segundo, pelo histórico prisional, com passagens por diversas unidades sem se corromper por facções. "Fiz escolhas erradas, mas eu sou uma história. Não viro as costas para a minha história." Dominique se divorciou, casou com um arquiteto, teve dois filhos. E caiu em tentação novamente. "Fui escrachada nos jornais. Diziam: ‘Procura-se loira ladra de carros importados’. Pensei: ‘Nunca mais vou conquistar um carro importado na vida’." Mas uma vez, livre por habeas corpus, ela passeava no Shopping Iguatemi:
- A senhora está sozinha? Não costumo fazer isso, mas... Quer uma carona?
- Que gentil! Também não costumo fazer isso, mas aceito a carona, sim.
Era um BMW, oras. Minutos depois, armada, disse:
- Desculpa, mas o senhor não lê jornais?
- Não...
- Amigo, hello! Isto é um assalto. Passa a chave e dá o fora.
E ri alto, ao lembrar da história. Entre lembranças e confidências de cárcere, porém, as detentas não gostam de dizer por que foram parar ali. Preferem conversar sobre histórias "lá de fora", a novela, a família, os amigos. "Não estamos aqui para julgar ninguém. Já fomos julgadas", diz Dominique.
Durante a semana, as mulheres trabalham na cozinha, na limpeza ou nas oficinas, principalmente nas confecções da Funap (três dias de trabalho dão direito a um dia a menos na pena). Também participam das oficinas da padaria experimental inaugurada por Lu Alckmin em outubro. Aos sábados, podem receber visitas íntimas, ironicamente realizadas nos quartos da antiga casinha das freiras que administravam a prisão na década de 1960. No entanto, essas visitas são raríssimas. "Uma vez encarcerada, a mulher é esquecida. O homem ainda recebe cartas, presentes e visitas da companheira, que fica à espera dele lá fora. A mulher, não", comenta o médico Drauzio Varella, autor de Estação Carandiru e Carcereiros.
Assim, sozinhas, as presas aproveitam o sábado para o sol e a música no pátio e, principalmente, para os mimos de beleza - bijus, esmaltes novos, fios coloridos, como preparativos para receber os visitantes de domingo - que, muitas vezes, não virão. Em Tremembé, os visitantes fazem fila nos fins de semana no presídio masculino. No feminino, porém, são uns 30 gatos pingados. "Ainda hoje, a mulher delinquente não é aceita como o homem. Não se espera dela um comportamento agressivo e criminoso. Talvez por isso a família e os amigos a condenem ao esquecimento", considera a antropóloga Bruna Angotti.
Nesta época, a solidão aperta ainda mais, principalmente para as meninas de Tremembé. "Vem vindo o Natal e nós ficamos... tristes, né?", diz Mayara. Isoladas dentro e fora do presídio, com sentenças altas e crimes brutais nas costas, muitas delas foram absolutamente esquecidas pelas famílias. E, como todas ali cumprem regime fechado, não há a menor chance de receberem saída temporária para as festas de fim de ano.
Neste domingo, antevéspera do Natal, elas ficarão à espera mais uma vez. Mayara quer rever a filha, que há pouco tempo voltou a chamá-la de mãe. Dominique talvez receba o marido e os filhos. Mayara ainda espera o julgamento para abril de 2013, que poderá lhe custar até 30 anos de prisão. Dominique espera reconquistar a liberdade em meados de 2014. Até lá, a espera. 

Perdas e ganhos



O balanço da AP 470 mostra que o combate à impunidade implica resultados iguais nos próximos julgamentos e terá de ser feito sem adaptações na institucionalidade

22 de dezembro de 2012 | 16h 55
Leonardo Avritzer
Chegou essa semana ao final o julgamento da Ação Penal 470, o chamado "mensalão". Esse foi um julgamento que entrou para a história do País. Foram 53 sessões durante quatro meses e meio de julgamento acompanhado pelo País, que assistiu à acusação, às defesas, às discordâncias entre ministros e a muitas condenações. Ao final desse processo, apenas uma pergunta é relevante: qual legado o julgamento deixa para a democracia brasileira e para suas instituições? Na minha opinião, o julgamento deixa um legado misto no qual avançamos fortemente em relação ao combate à impunidade no sistema político, mas permanecemos tendo problemas no que diz respeito ao Estado de Direito e à divisão de poderes no próprio processo de combate à corrupção. Permitam-me desenvolver esse argumento.
Relação entre poderes é sempre instável e frágil, mas a divisão foi concebida para funcionar assim - Andre Dusek/AE
Andre Dusek/AE
Relação entre poderes é sempre instável e frágil, mas a divisão foi concebida para funcionar assim
O principal ganho gerado pelo julgamento da AP 470 é a diminuição da impunidade em relação aos crimes de corrupção cometidos no interior do sistema político. Desde 1988, quando foi promulgada a Constituição, até agosto deste ano, foram pouquíssimas as condenações de políticos que tinham direito ao foro privilegiado ou foro decorrente das prerrogativas de função, até mesmo no caso de crimes como tentativa de homicídio. Entre 2003 e 2009, 172 ações contra políticos foram iniciadas, sem nenhuma condenação. A primeira condenação veio em 2010 e foi uma condenação a dois anos e meio em regime semiaberto. Assim, pode-se dizer que o foro privilegiado reduzia o custo de ser corrupto no Brasil, isto é, o risco de ser punido, condenado ou de vir a cumprir pena de prisão era mínimo. Isso serviria como incentivo a novos casos de corrupção. O julgamento da AP 470 muda essa situação e terá um impacto político sobre todos os partidos no Brasil, já que todos os partidos importantes estão envolvidos ou nessa ação penal ou em outras semelhantes.
Duas questões importantes ficam como legados problemáticos do julgamento da AP 470. O primeiro é a relação entre o método estabelecido para condenar o "núcleo político" do escândalo, a teoria do domínio de fato e o Estado de Direito. A teoria do domínio de fato tem uma relação problemática com as tradições mais consolidadas do Estado de Direito no mundo. Surgida na Alemanha nos anos 1930 e sistematizada nos anos 1960 pelo jurista Claus Roxin, tal teoria não é aplicada nos países com a mais sólida tradição de Estado de Direito, os Estados Unidos e a Inglaterra. Lá continua valendo a autoria como critério da culpa. A teoria do domínio de fato é utilizada em países com relação mais ambígua com o Estado de Direito, como a Alemanha. O que está colocado para o Brasil do ponto de vista jurídico é conciliar Estado de Direito e punição aos crimes de corrupção. O legado ambíguo da AP 470 é optar por um desses polos para acabar com a impunidade, o que é uma falsa escolha.
Por fim, temos uma terceira questão importante de ser discutida, que é a relação entre os poderes no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de membros do Congresso Nacional. A relação entre os poderes é sempre instável e frágil, mas esse sistema de divisão foi concebido para operar dessa maneira. Alguns países com forte tradição de divisão de poderes não cassam mandatos de deputados judicialmente. Os Estados Unidos não cassam mandatos de deputados, mas estes renunciam quando têm problemas legais. O caso de Newt Gingrich presidente do Congresso, que renunciou em 1998, é exemplar. Esse não é o caso do Brasil, onde o legislador constitucional balizou duas medidas para as ações do STF e do Congresso.
Em relação ao STF, os artigos 102 e 103 da Constituição tornaram a revisão constitucional uma prerrogativa do Supremo e não um mero hábito como nos EUA. Em relação ao Congresso, o artigo 55 estabelece suas prerrogativas, entre as quais fixa a votação pela casa da suspensão de mandatos. A questão que se coloca, tanto para o Supremo quanto para o Congresso, é estabelecer-se uma forma de colaboração para a solução do problema, em lugar do enfrentamento entre as duas casas, tal como vimos na última semana. Nesse caso, aplica-se bem a sugestão de James Madison, no Federalista (o livro de debate entre os autores da Constituição dos Estados Unidos). No Federalista número 51, Madison afirma que, no que diz respeito ao apontamento de membros de cada um dos poderes (e, poderíamos acrescentar, à cassação), o melhor é que cada poder interfira o mínimo possível nas ações do outro. Essa é a máxima que deve ser buscada para que haja punição à corrupção sem que haja crise institucional entre os poderes.
O balanço dos quatro meses de julgamento da Ação Penal 470 mostra que o Brasil começou a combater a impunidade, mas que esse combate é longo e envolve resultados iguais nos próximos julgamentos. Ele terá que ser feito sem adaptações na institucionalidade e no Estado de Direito, tal como as democracias mais avançadas o fazem. Esse é o desafio que o julgamento deixa para democracia brasileira.
LEONARDO AVRITZER É CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL