domingo, 23 de dezembro de 2012

'Temos de atender à nova dinâmica social' Vogt sobre cotas


O Estado de S.Paulo
Ex-reitor da Universidade Estadual de Campinas, o linguista e poeta Carlos Vogt, de 63 anos, é uma peça-chave no projeto que propõe a criação de cotas de 50% das vagas para alunos de escolas públicas nas universidades paulistas - dentro desse porcentual, há uma reserva de 35% para estudantes que se declararem pretos, pardos e indígenas. Vogt foi não só um dos formuladores do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (Pimesp), lançado na quinta-feira pelo governador Geraldo Alckmin, mas também preside a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), provedora do conteúdo online do Instituto Comunitário de Ensino Superior (Ices).
Principal inovação do Pimesp, o instituto, inspirado nos colleges americanos, oferecerá cursos de dois anos a alunos de escolas públicas. Servirá de nova porta de entrada nas universidades, uma opção ao vestibular. "Fiz questão de citar o Darcy Ribeiro no lançamento do projeto porque ele era um visionário. Acho que o Pimesp também é", disse Vogt na entrevista, concedida a Sergio Pompeu:
No lançamento do Pimesp, vocês evitaram o termo cota, que normalmente causa polêmica. Mas o fato é que o projeto prevê reserva de vagas nas universidades para alunos de escolas públicas e por critérios raciais. A reação de quem é contra essa reserva não virá de qualquer forma, mesmo sem o uso da palavra cota? E como vocês pretendem lidar com isso?
Há duas coisas aqui. A primeira é que, embora isso não esteja na palavra cota do ponto de vista semântico, ela hoje carrega também a conotação de uma entrada automática nas instituições, por critérios de raça, por exemplo. Esconde um pouco aquilo que sempre se buscou preservar, que são os critérios de qualidade, de mérito, no processo de inclusão. Acho que é nesse sentido que se procura aqui evitar o uso da palavra cota. Mas também porque trabalhar com o conceito de metas, metas socioétnicas que procuram responder a essa demanda que hoje está no âmbito federal legitimada e legalizada. Procuramos associar à realização dessas metas estratégias que preservassem os predicados de mérito que as nossas instituições procuram defender. Por que nós nos preocupamos com essa questão do aluno da escola pública? Você tem no Estado cerca de 440 mil alunos saindo do ensino médio todo ano. Destes, 360 mil saem das escolas públicas e 80 mil das privadas. Nas universidades você tem na média uma inversão. Acho que o Estado está tomando uma medida do ponto de vista da formulação de uma política pública. E a percepção que a população terá disso é muito importante.
Mas o senhor não acha que setores da sociedade vão reagir quando ficar claro que em cursos muito concorridos, como Medicina, candidatos hoje favoritos no vestibular, alunos de escolas privadas de elite, só vão concorrer à metade das vagas?
Medicina sempre é um dos focos dessa discussão, assim como Engenharia. Nas nossas análises dos números, você já tem coisas interessantes hoje. Pegue por exemplo Engenharia Civil em São Carlos. O delta da Engenharia lá para alunos de escolas públicas, o que falta para atingir a meta, são 14 alunos. O delta para escola pública mais a cota de pretos, pardos e indígenas (PPI) é de 8 alunos. Há casos em que esses números são maiores, então são metas mais compridas para ser cumpridas. Mas tem uma mapa da situação de cada curso em cada universidade. Acho que isso nos permitirá montar uma operação do programa bastante interessante.
A explicação faz sentido, mas tem aquele aspecto: todo mundo gosta de inclusão, até começar a mexer com o próprio quintal. Sem enfatizar excessivamente esse aspecto, certamente é algo que vocês discutiram na montagem do Pimesp.
Sim. O Pimesp implica não só uma mudança de atitude, mas uma mudança de atitude em um contexto cultural novo. Porque você tem efetivamente uma realidade social no País em transformação, com uma classe média nova se constituindo. Há uma dinâmica social nova, porque uma das características da classe média, de um modo geral, é o desejo de mobilidade. E o sentido de mobilidade. Tem essa coisa, culturalmente falando, de: "Eu faço trabalho braçal, mas quero meu filho na escola, quero ele formado, com diploma". É o que caracteriza a história de tantos de nós. Uma dinâmica em que na segunda ou na terceira geração já mudou tudo. Um dos caminhos para essa mobilidade nós sabemos, que é clássico, é exatamente o diploma de ensino superior. Como é que você consegue oferecer formas de atendimento dessa demanda e ao mesmo tempo mantém esses princípios de qualidade, de mérito etc. Acho que a proposta que a gente vem discutindo procura exatamente essa conciliação. Por outro lado, é claro que você tem razão. Onde houver uma resistência, digamos, empedernida, ideológica, conservadora, o pessoal vai dizer: "Bom, mas isso é reserva". É mesmo uma forma de garantir o acesso a essa população. Mas que exige a satisfação das condições de qualidade que a gente quer levar em conta.
Vocês chegaram a considerar a hipótese de atrelar a cota à renda familiar? Acoplado a isso: se não tem limite de renda, vai fazer sentido para muito mais gente de classe média migrar para a escola pública. Pode haver uma explosão da demanda, por exemplo, nas escolas técnicas, as Etecs?
Duvido um pouco, porque hoje os porcentuais que faltam, o delta para você cumprir a meta dos 50% do Pimesp, não são nada absurdos. Hoje no Centro Paula Souza (responsável pelas Etecs e pelas Fatecs, faculdades de tecnologia) 75% dos alunos vêm da escola pública; na Unesp, é 39%; na Unicamp, 31,6%; e na USP, 28%. Então, são metas realizáveis, não é algo que vá provocar um choque.
Como será o trabalho da Univesp nesse programa?
Vamos trabalhar da mesma forma que já fazemos hoje nos cursos semipresenciais que oferecemos em parceria com a USP e a Unesp. Eles têm uma distribuição entre atividades presenciais e virtuais, utilizando os ambientes de aprendizagem da internet e intensamente a nossa Univesp TV. Para isso funcionar é preciso que tenhamos polos distribuídos pelas cidades que funcionam como referências para regiões. E trabalhamos com a ideia de que a distância para que os alunos participem das atividades presenciais não seja superior a 100 quilômetros. Vamos organizar o curso de maneira a utilizar toda a capilaridade que existe hoje já na distribuição das Fatecs e das Etecs no Estado. Só de Fatecs tem 52. E a capilaridade da Unesp, que está distribuída em 34 campi. Temos ainda as instalações da Unicamp e da USP e, se necessário, dos municípios. A organização dos polos varia de curso para curso, mas as turmas idealmente têm 25 alunos, embora possam chegar a 30 e até mesmo a 50. Eles precisam ter laboratórios de informática, com equipamentos, acesso à internet, monitor de TV com antena parabólica por causa dos programas da Univesp TV, e os monitores e tutores (nós chamamos de mediadores), que fazem o acompanhamento das atividades desenvolvidas nos polos. Estamos mexendo com a concepção do ensino. Estamos criando uma nova modalidade de ensino superior e adotando o uso intensivo das tecnologias, algo inevitável. Nossos conteúdos lá da Univesp TV já foram vistos perto de 5 milhões de vezes no YouTube.
Vocês vão produzir mais com foco voltado para o Ices? Faz sentido colocar conteúdos de revisão do ensino médio ordenadamente na internet, divulgando para estudantes que ainda estão no ensino médio que querem se aprimorar?
A ideia é essa, tornar todo esse material disponível. Claro que, para cumprir formalmente o curso no Ices, o aluno precisa estar selecionado. Mas o acesso ao material será público.
É possível imaginar que um estudante que já viu um curso, de Cálculo, por exemplo, quando estava no ensino médio possa, depois de aceito no Ices, chegar e dizer: "Olha, este curso aqui eu já assisti. Podemos passar direto para a etapa da avaliação?"
É possível. Ele pode apresentar, de alguma forma, um atestado de conhecimento, por prova ou por desempenho, seja como for, aí é uma questão de pensar. É claro que existe essa possibilidade, sem dúvida.




'Não se adota um experimento como política', diz Simon Schwartzman

Especialista defende as cotas, mas acha que modelo proposto pelo Estado deveria ser testado antes

24 de dezembro de 2012 | 4h 31
Sergio Pompeu - O Estado de S.Paulo
Um dos mais respeitados pensadores da educação no País, o sociólogo Simon Schwartzman está fazendo um giro pelos Estados Unidos e pelo Canadá. Acompanhou a distância o lançamento do Pimesp, programa que cria cotas de 50% para alunos de escolas públicas nas universidades paulistas.
Para Simon Schwartzman, universidade deve abrir para setores da sociedade - Simone Marinho/Agência O Globo
Simone Marinho/Agência O Globo
Para Simon Schwartzman, universidade deve abrir para setores da sociedade
Para Simon, já na concepção o Pimesp parece melhor que o programa de cotas federal, porque propõe a criação de uma nova modalidade de curso, inspirado nos colleges americanos, para preparar o aluno saído da escola pública para o ensino superior. Mas ele adverte para o risco de se adotar em larga escala um projeto ainda não devidamente testado. Simon lembrou que o embrião do college paulista é um projeto adotado na Unicamp há dois anos, com turmas de apenas 120 alunos. "É um experimento e você não pode adotar um experimento como política."
Qual é a impressão do senhor sobre o Pimesp?
Simon Schwartzman - O sistema de ensino superior paulista em geral precisa de mais inclusão. A situação hoje é que as universidades recebem 10% da receita do Estado e atendem um número relativamente pequeno de estudantes. Isso é difícil de ser mantido; elas precisam se abrir mais, procurar mais setores da população. O formato proposto em São Paulo é mais interessante do que o federal, que simplesmente estabeleceu uma cota e se limitou a isso. No caso de São Paulo eu vejo dois aspectos meritórios: um é esse experimento no nível de um tipo de college, outro é a ideia de que você vai dar apoio financeiro a estudantes de baixa renda, que precisam disso para estudar. Esses dois elementos dão ao projeto paulista um aspecto bastante interessante.
O senhor não tem reservas ao princípio das cotas em si?
Simon Schwartzman - Acho que a ideia de uma política de ação afirmativa, de fazer um esforço adicional para buscar estudantes que não tiveram oportunidade de fazer uma boa escola, é correta; é algo que precisa ser feito. A universidade não pode simplesmente se fechar e dizer: 'Bom, não chegou aqui capacitado não entra'. A universidade tem a obrigação de sair em busca de estudantes que se beneficiariam da educação superior mas não passariam no sistema tradicional de avaliação. Na verdade, a gente sabe que esse sistema tradicional não é tão perfeito assim para selecionar os estudantes. Então, o movimento de ação afirmativa nesse sentido é uma coisa que eu acho correta. Agora, a maneira como isso está sendo feito é que é complicada. Porque não se sabe muito bem de onde vêm esses números (das metas do Pimesp) e a experiência do college ninguém tem no Brasil. As experiências do chamado ciclo básico do ensino superior no Brasil nunca deram muito certo. Não sei se as universidades paulistas fizeram uma avaliação dessas experiências do passado. Então não sei se esse modelo de agora, do college com dois anos, vai mesmo funcionar. A outra coisa que eu sempre achei absurda é usar critérios raciais nesse tipo de ação afirmativa. Mas essa é uma discussão da qual eu já desisti. Porque no Brasil parece que há uma unanimidade de que isso deve ser feito. Continuo achando que não deveria, mas aí sou voto vencido.
O college supostamente será misto, com conteúdos presenciais e online. Embora as possibilidades do online sejam reconhecidas por todos, o problema é que a parte presencial também é digital, o aluno vai ao polo e assiste material previamente preparado. Não falta professor aí?
Simon Schwartzman - Não conheço muito bem a experiência de Campinas, sei que lá já estão fazendo isso há algum tempo. Mas seria importante avaliar bem essa experiência, que eu tenho impressão que é de onde vem essa ideia (do Pimesp). São coisas que têm de ser experimentadas, avaliadas; fazer um pouco e ver se dá certo. Se der certo, você amplia, se não der certo, modifica. A USP tem uma experiência fracassada de criar uma entrada alternativa para estudantes mais pobres que é a USP Leste. Aparentemente não funcionou. Não teve o papel que a USP achou que ia ter. Então me preocupa um pouco que a universidade, talvez pressionada pelo contexto político, tenha se precipitado ao já anunciar um programa que vem com todos esses números e metas, quando poderia ter experimentado ainda, para ver o que tudo isso significa.
O programa da Unicamp pegou o melhor aluno no Enem de cada uma das escolas públicas de Campinas. Formou um grupo de 120 alunos e os resultados são relativamente bons. 
Simon Schwartzman - Campinas é isso, um experimento. Eles estão trabalhando com um grupo selecionado de estudantes, que, embora possam não ter um desempenho escolar excepcional, se destacam nas suas turmas, então a chance de que tenham potencial é boa. E mesmo assim os resultados são da ordem de 50% (em termos de eficiência). Acho que vale a pena entrar por esse caminho, mas não pode ser feita uma coisa precipitada. O uso dos meios a distância, digitais, é em princípio útil. Mas tem de estar associado a bons professores, a bons monitores, alguém que acompanhe o aluno pessoalmente. Você não substitui a relação pessoal.
A ideia é adaptar os estudante ao ambiente do ensino superior presencial. Como fazer isso sem eles serem 'apresentados' à figura do professor universitário?
Simon Schwartzman - Tem uma coisa de cultura. Se o aluno optar por entrar na universidade, ele vai para um outro ambiente. E a cultura desse outro ambiente você aprende com os outros, na convivência com os professores, com os colegas. É muito difícil você transmitir uma cultura diferente para pessoas que não tiveram nada disso antes, tiveram uma educação básica de má qualidade, vieram de um contexto social pouco intelectualizado. E ainda fazer esse processo a distância? De novo: o digital é muito importante como um meio auxiliar, mas ele não substitui o professor em sala de aula. Em todo caso, são coisas novas, que você tem de experimentar. É um experimento, e você não pode adotar um experimento como política.
Um possível mérito do college é a oportunidade que ele traz de desengessar o ensino superior, ampliando o leque de opções para os alunos. Como o senhor vê isso? 
Simon Schwartzman - É o famoso modelo de Bolonha, que os países da Europa estão adotando com alguma dificuldade, muito baseado nos modelos inglês e americano. Um ponto fundamental é que as pessoas são muito diferentes, pela motivação, pelo interesse, pela formação. Por isso você precisa criar no college um leque de alternativas muito grande. O aluno que faz o college e vai para a Fatec em lugar de seguir para a universidade não fez isso porque fracassou. Você não pode colocar desse jeito. É uma opção. Se o negócio dele não é matemática nem literatura, e sim mecânica ou outra coisa prática, ele vai caminhar para isso. Quem entrar no college para se preparar para uma carreira médica não vai fazer a mesma preparação do aluno interessado em engenharia. Esse é o modelo que pode funcionar.

Quatro Newtowns por dia


JULIO JACOBO WAISELFISZ É COORDENADOR DA ÁREA DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA DA FLACSO , (FACULDADE LATINO-AMERICANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS), PESQUISADOR DO CEBELA (CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS LATINO-AMERICANOS) - O Estado de S.Paulo
JULIO JACOBO WAISELFISZ
De tempos em tempos ressurge a discussão sobre o controle das armas de fogo. E ressurge em momentos dramáticos: quando uma chacina perpetrada por um civil com uso ostensivo de armas de fogo irrompe na consciência da população quebrando a aparente naturalidade de violência estimulada pela circulação e/ou utilização das armas em nosso cotidiano. Foi assim no massacre da escola Tasso de Oliveira, no Realengo, Rio, em abril de 2011, quando foram assassinados 12 adolescentes. Ou na recente tragédia de Newtown, Connecticut, com 20 alunos e 6 adultos massacrados. Ou ainda outras.
Mas, no meio dessa discussão, convém ter em conta alguns dados fundamentais do Brasil. Um estudo realizado pelo Iser/Viva Rio estima que no País existam 15,2 milhões de armas de fogo em mãos privadas: 6,8 milhões registradas e 8,5 milhões não registradas, 3,8 milhões em mãos criminosas.
Esse robusto arsenal guarda correspondência com a mortalidade que origina. Os registros do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde permitem verificar que, entre 1980 e 2010, 741.771 cidadãos morreram por disparos de algum tipo de arma de fogo efetuado por outrem com a intenção de matar. Cifra bem superior às de muitos conflitos bélicos no mundo.
Em 1980, as vitimas foram 7.436. Em 2010, 36.792: um aumento de 395%. Nesse período as taxas de homicídio por armas de fogo passaram de 6,2 por 100 mil habitantes em 1980 para 19,3/100 mil em 2010.
A gravidade desses números fica evidenciada se considerarmos que os 36.792 assassinatos em 2010 representam:
Quatro chacinas de Newtown todos os dias do ano.
Quase um massacre do Carandiru - de 1996, quando morreram 111 detentos - a cada dia do ano.
O maior quantitativo de mortes por armas de fogo registradas no mundo nos últimos anos e um dos cinco maiores do planeta em termos de taxas, segundo os registros do Whosis, sistema de estatísticas da OMS.
Por esses dados, nossas taxas resultam 193 vezes maiores que as da Coreia do Sul ou Hong Kong, 20 ou mais vezes maiores que as de países como Holanda, Espanha Polônia, Inglaterra, Escócia, etc.
A evolução ao longo das três últimas décadas não foi homogênea. Entre 1980 e 2003 o crescimento foi acelerado e sistemático: 5% ao ano. Depois do pico de 37,6 mil mortes em 2003, os números em um primeiro momento caíram para 34,5 mil, para depois ficar oscilando na faixa de 36 mil mortes anuais. O Estatuto e a Campanha do Desarmamento pareceriam ser fatores de peso na explicação dessa mudança a partir de 2003: foi sofreado o crescimento acelerado da mortalidade por armas de fogo, mas não foi suficiente para reverter o quadro.
E quem são essas vítimas?
95% dos assassinados são homens.
Apesar de representar só 27% do total da população, a faixa de 15 a 29 anos de idade concentra quase 60% do total de assassinatos com armas de fogo. Dessa forma, se a taxa total para o País em 2010 foi 19,3/100 mil, a taxa de jovens foi de 42,6/100 mil. Mais do dobro.
Pelos quantitativos de população por raça/cor registrados pelo Censo de 2010, teríamos as seguintes taxas de mortes por armas de fogo:
Brancos: 11,1 em 100 mil.
Negros: 25,8 em 100 mil.
Amarelos: 1,7 em 100 mil.
Indígenas: 5,5 em 100 mil.
Vemos assim que nossos personagens, como nas tragédias gregas, são bem definidos: jovens, negros, do sexo masculino, de baixo nível socioeconômico e educacional e com escassas vias de acesso a benefícios sociais que poderíamos considerar básicos: educação, renda, trabalho, saúde, etc.
E o que agrava o problema?
Facilidade de acesso a armas de fogo. Apesar das penalidades do Estatuto do Desarmamento, continua sendo relativamente fácil adquirir armas no mercado ilegal.
Cultura da violência. Em novembro, o Conselho Nacional do Ministério Público divulgou, para sua campanha "Conte até 10", um estudo sobre a proporção de inquéritos policiais de assassinatos por motivos fúteis/impulso (briga familiar, discussão de trânsito, intolerância religiosa, Lei Maria da Penha, etc.). Concluiu que, dependendo do Estado, entre 20% e 100% dos homicídios foram crimes de impulso ou por motivos fúteis. Essa comprovação permite, com outras evidências existentes, questionar a visão de que a violência homicida é explicada pelas drogas ou pelas grandes organizações criminosas. Sem negar a violência associada às organizações, as evidências apontam que a maior parte é crime de proximidade, em que um familiar, amigo, vizinho empunha uma arma por motivos banais e resolve a situação conflitiva mediante o extermínio do próximo.
Tolerância Institucional. Existem diversos mecanismos pelos quais as instituições que deveriam zelar pela segurança e cumprimento das leis toleram doses relativamente elevadas de violência. Sem esgotar esses mecanismos, um dos mais frequentes é a transformação das vítimas em culpados. Meninos do crack, da rua, viciados, mulheres "que provocam, se vestem como vadias", etc., são uma adjetivação que parece justificar a violência e a morte.
Impunidade. Relatório da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública, A Impunidade como Alvo, divulgado em junho, refere-se à meta de concluir 134.944 inquéritos de homicídios dormindo nas delegacias até 2007. Num esforço conjugado e focalizado, reunindo diversos aparelhos, conseguiu-se finalizar os inquéritos e levar 8.287 denúncias à Justiça - 6,1% do total inicial. Considerando-se outras "perdas" - nem toda ocorrência de homicídio se transforma em inquérito policial e nem toda denúncia é acatada pela Justiça e/ou os indiciados são condenados -, teríamos que, no País, em torno de 4% dos homicidas vão para cadeia.
Concordamos com a ideia de que não são as armas que matam. Matam os homens que empunham as armas. Mas as facilidades de acesso e posse, a cultura da violência, a tolerância institucional e a impunidade existentes compõem uma mistura explosiva, cujos resultados são os níveis insuportáveis de violência que devemos enfrentar.

Liberdade



Existe a boa e a má. Os EUA, o mais singular experimento democrático da história, chegaram a uma encruzilhada na qual terão de decidir se enfrentarão essa distinção

22 de dezembro de 2012 | 17h 25
Lee Siegel
Eu pretendia traçar neste artigo um panorama amplo do que o futuro poderia reservar aos Estados Unidos em várias esferas: cultural, social, política. Mas a história nos ensina que a natureza de uma sociedade é medida por seus piores eventos, não pelos melhores. Poucas civilizações foram capazes de produzir obras de arte tão sublimes como a Alemanha às vésperas do Holocausto. A despeito de toda estabilidade política, mobilidade social e criatividade cultural dos Estados Unidos hoje, - estou olhando o país com absoluta relatividade, pela óptica da história - o massacre de 20 crianças e 6 adultos em Newtown, Connecticut, em 14 de dezembro, é o sintoma de uma doença profunda no coração da vida americana.
A despeito da estabilidade dos EUA, massacre é visto por autor como sintoma de doença social grave - Shannon Stapleton/Reuters
Shannon Stapleton/Reuters
A despeito da estabilidade dos EUA, massacre é visto por autor como sintoma de doença social grave
Nos noticiários, ouvi o pai de uma adolescente que foi morta no massacre da Columbine High School em 1999. O país precisa de controle de armas, é claro, ele disse. Mas ele também precisa de uma completa transformação espiritual. Jamais se proferiram palavras tão verdadeiras.
Existe a liberdade boa e a liberdade má. Os Estados Unidos, o mais singular experimento democrático da história, chegaram a uma encruzilhada onde terão de decidir se enfrentarão essa distinção. Nesse sentido, a atitude da mãe do assassino de Newtown para com seu filho assassino é um símbolo sinistro tanto da má liberdade liberal como da má liberdade conservadora.
Nancy Lanza, a mãe de 54 anos de Adam Lanza, o jovem de 20 que cometeu a chacina, fez uma escolha notável. Mesmo sabendo que seu filho era mentalmente doente, ela começou a lhe ensinar a disparar uma arma quando ele tinha 9 anos. E não qualquer tipo de arma. Ela lhe ensinou a usar armas de assalto semiautomáticas. Aparentemente, enquanto a condição mental do rapaz se deteriorava, continuou a levá-lo a campos de tiro para praticar tiro ao alvo. Ela confessou a um conhecido não muito antes do massacre de Newtown que Adam vivia se queimando com isqueiros para tentar sentir dor. E, contudo, até onde se sabe, ela nunca buscou ajuda profissional para ele.
Nancy Lanza vivia numa América em que a própria ideia de doença mental não pode ser tolerada. Chamar alguém de mentalmente doente é violar seus direitos civis. Há um precedente humano para essa atitude, pois durante séculos, os deficientes mentais foram segregados, atormentados e, às vezes, torturados. Nos Estados Unidos de hoje, porém, em que a cultura é inteiramente liberal, a atitude predominante foi além do tratamento humano do doente mental. Ela agora pede uma ilusão coletiva pela qual qualquer um, a despeito de qual seja sua deficiência mental, pode fazer o que bem quiser. E assim Adam Lanza, que não tinha sentimentos de compaixão e era dado a acessos de raiva, foi encorajado por sua mãe a dominar o uso de armas letais. O indivíduo americano não tolerará a ideia de não conseguir o que desejar.
Do lado conservador, é claro, a demanda é que todos possam comprar o tipo de arma que desejarem. Está além da compreensão que, com o que se sabe da natureza humana, as pessoas possam ter algo mais perigoso que uma colher de plástico. Mas o delirante lobby das armas e sua clientela insistem em que as pessoas tenham o direito de comprar as mesmíssimas armas e munições que soldados americanos usam no Iraque e no Afeganistão. Mesmo que uma proibição de armas de ataque fosse transformada em lei, ninguém questionaria o direito de cada americano possuir revólveres e rifles que ainda têm um tremendo poder letal. No maior experimento democrático que a humanidade conhece, o melhor que se pode esperar é que, no futuro, um matador como Adam Lanza consiga matar apenas 5 ou 6 crianças de cada vez e não 20.
E se Obama magicamente adquirir a coragem de suas eloquentes e decentes convicções e uma proibição de armas de ataque se tornar realidade? Ainda existirá uma causa perniciosa de assassinatos em massa que os liberais americanos jamais enfrentarão: a violência na cultura popular. Segundo relatos, Adam Lanza era um jogador contumaz. Ele adorava jogar videogames que banalizam o ato de matar. Psicólogos falam do fenômeno de "despersonalização", um estado mental em que a pessoa começa a se dissociar de suas ações, como se estivesse se observando num sonho, ou se observando como se fosse uma pessoa completamente diferente. No mundo dos videogames, despersonalização é o estado mental costumeiro. É esse também o estado mental de um assassino em massa.
Mas nenhum liberal jamais falará contra os videogames, ou contra o aumento da violência na televisão e no cinema, mais do que algum conservador falará contra cidadãos privados possuírem armas letais. Para os liberais, a "liberdade" de expressão e a busca do prazer não devem ser obstruídas. Para os conservadores, a "liberdade" de ação e a sublimação do prazer em ocupações agressivas como atirar não devem ser questionadas. Como sempre, o país está paralisado por uma divisão fundamental. O único traço que os dois lados compartilham é um compromisso inarredável com a soberania absoluta do indivíduo.
Não é por acaso que a esfera mais esperançosa na vida americana é a ciência, em que avanços na tecnologia médica, por exemplo, estão transformando a vida para melhor. As regras da ciência de experimento e verificabilidade não podem ser contornadas ou rompidas. A liberdade em ciência é inseparável de seu rigor.
Outras esferas da vida americana são mais porosas, e estão sofrendo com um aumento da liberdade má. O delicado equilíbrio entre liberdade e disciplina que é mantido na ciência tem sido derrubado em muitas áreas. A crise econômica de 2008, que ainda está se desdobrando aqui e na Europa, teve muito a ver com um tipo de especulação financeira que atropelou fronteiras, regras e qualquer senso de proporção. A liberdade má varreu como um tsunami mortal a liberdade boa do mercado.
Considerem ainda a internet, onde o conflito entre as liberdades má e boa assumiu dimensões de Armagedon. Em nome do igualitarismo, a democracia está sendo corroída pelo poder da massa. A regra das vozes mais altas na web também tornou possível que um demagogo após outro - de Palin a Trump - ganhasse uma influência na sociedade que jamais teria alcançado em tempos menos conectados. O efeito tem sido transformar a política em entretenimento - mas é aqui que a incansável dinâmica da vida americana reafirma uma energia positiva. Se a política ainda fosse política, os demagogos representariam um perigo real para a sociedade. Mas como a política os tornou animadores de espetáculos, eles rapidamente se tornam irrelevantes à medida que seu espetáculo envelhece.
A arte americana um dia forneceu uma esfera iluminadora, esclarecedora, para se escapar do aspecto surreal da realidade americana. Era um lugar em que os limites da sociedade podiam ser contornados e as energias primitivas do indivíduo, liberadas. Mas agora que a sociedade parece ter adquirido a permissividade primitiva da arte, a arte em si parece reprimida - como nas sociedades despóticas. Não me entendam mal. Quanto menos repressões punitivas a sociedade infligir às pessoas, menos dor haverá no mundo. Mas há repressões e há repressões. A tolerância, por exemplo, de formas diferentes de amor e sexualidade humanos é benéfica. A tolerância à cultura da arma e à violência na cultura, não.
À medida que as imagens de violência geradas por computador nos filmes excedam tudo que a imaginação humana possa conceber, que notícias de massacres incompreensíveis superem tudo que a mente seja capaz de compreender, a imaginação artística se encolhe intimidada. Faz cerca de 30 ou 40 anos que os últimos movimentos interessantes - minimalismo, arte conceitual, arte performática, videoarte - ocorreram nas artes visuais. Em ficção, em poesia, os escritores estão todos abrigados em seus nichos privados, trabalhando em estilos que são, em algum grau, tímidos pastiches da arte literária passada. A música popular, como uma coleção de estilos originais, definidores, desapareceu.
Há muitas razões para a falta de originalidade nas artes, mas uma das principais é, com certeza, o desprezo quase institucional na América por qualquer tipo de fronteira limitadora em quase toda esfera de atividade. A arte, ainda mais que a ciência, requer um raro equilíbrio de liberdade e contenção. É dessa luta contra proibição e restrição que nasce a originalidade. Agora que tudo é permitido, a imaginação foi privada de sua função.
Na superfície, a maioria das pessoas se comporta bem. Mas à medida que aprendem a comercializar sua privacidade em público, em especial na internet, elas estão cultivando um novo tipo de privacidade subterrânea. Estamos na era da vida dupla, na qual, por baixo da aparência de contenção, as pessoas se entregam sem restrições a cada apetite seu. Por trás da aparência tranquilizadora de Bernie Madoff espreitava um monstro amoral. Por trás de um médico chamado Sidney Gilman, com uma carreira respeitável de especialista no tratamento da demência - como The New York Times reportou recentemente -, estava um homem que usava sua pesquisa para se envolver no uso ilegal de informações sigilosas no mercado acionário. Por trás do que vizinhos descreveram como a "graça incomum" de Nancy Lanza existia uma pessoa tragicamente cega e voluntariosa que treinou seu filho desequilibrado para matar. Sempre houve uma distância por vezes fatal entre aparência e realidade. Agora, essa distância foi aperfeiçoada. Graças à internet, ela até possui sua própria tecnologia.
Enquanto escrevo, americanos temem que o país caia no chamado "abismo fiscal" se democratas e republicanos não chegarem a um acordo sobre como equilibrar o orçamento no começo do próximo ano. Uma grande massa de americanos está preocupada também com a chegada iminente do fim do mundo segundo o calendário maia. Fico pensando se não haverá uma conexão entre os dois tipos de ansiedade. Fico pensando se o sentimento de proximidade de um fim confere às pessoas a ilusão de escapar das más liberdades que as sufocam. Fico pensando se essa sensação de fim iminente não é de fato uma simulação terapêutica de algum tipo de restrição jubilosa, alguma fronteira extrema que está faltando nas vidas das pessoas.
O mundo felizmente continuará no próximo ano. O problema é que continuará tal como é.
TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
LEE SIEGEL É ESCRITOR E CRÍTICO CULTURAL AMERICANO. ESCREVE PARA O JORNAL THE NEW YORK TIMES, AS REVISTAS HARPER'S, NEW YORKER E THE NATION. NO BRASIL, ONDE É COLUNISTA EXCLUSIVO DE O ESTADO, PUBLICOU VOCÊ ESTÁ FALANDO SÉRIO? (PANDA BOOKS)