segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A gramática bélica da segurança


Daniel Hirata e Vera Telles
No centro das manchetes dos principais meios de comunicação do País, a crescente onda de violência em São Paulo nos últimos meses é mais que inquietante. Mas também inquieta o modo como, em geral, o assunto é tratado, alimentando as imagens correntes de uma "guerra urbana", um confronto entre polícia e bandidos que mais parece cenário de faroeste urbano - no mais das vezes, uma composição de evidências (a contabilidade diária de mortes) e montagem de cenas de violência que embaralham fatos e circunstâncias que ainda precisam ser mais bem esclarecidos, e entendidos. Mortes de policiais, mortes de moradores em bairros periféricos da cidade, queima de ônibus, os chamados comboios da morte, confrontos, toque de recolher, tudo isso e mais alguma coisa aparece indistintamente como evidências de uma violência generalizada. Acontece que não são a mesma coisa. E as diferenças não são triviais, muito pelo contrário. É esse o ponto que assinala o problema político posto na situação atual.
Em nome da assim chamada "guerra ao crime", os supostos confrontos e a dita "resistência seguida de morte" mal escondem práticas de execução sumária operadas pela polícia fardada, ao mesmo tempo que na lógica do revide pelos policiais mortos multiplicam-se mortes que acontecem sob o modus operandi próprio de grupos de extermínio, que não surgiram agora, vêm de longa data, mas voltam com especial vigor e agressividade.
A violência policial não é novidade, sabemos disso. Não é o caso, aqui, de discutir as razões e circunstâncias que fazem dela um componente persistente em nossa história. Quanto aos acontecimentos atuais, não são poucos os analistas que procuram deslindar os fatores que teriam desencadeado esse ciclo de violência - desajustes no equilíbrio precário que rege acordos entre forças policiais e o crime organizado, tendo como ponto de partida as circunstâncias nebulosas que presidiram a morte de integrantes do PCC em maio deste ano. Muito provavelmente, assim como nos eventos de maio de 2006, foi assim que as coisas aconteceram. No entanto, quer nos parecer que, neste momento, o importante é entender a lógica política que preside e alimenta esse ciclo de violência.
As palavras não são inocentes. O uso recorrente da expressão "guerra urbana" assim como a postulação de uma "guerra ao crime" atestam a gramática bélica, cada vez mais militarizada, que vem pautando as políticas de segurança de São Paulo, construindo um campo nebuloso que alimenta e avaliza a ação extralegal, quando não abertamente criminosa, de forças policiais, como recurso de gestão da ordem.
As chacinas e extermínio que vêm acontecendo, na maioria das vezes após as mortes de policiais, atingindo as populações nos locais em que ocorrem, é o lado sinistro dos fatos recentes, ainda mais porque é a questão que fica nas bordas das discussões, tal como acidentes de percurso em um cenário de "guerra urbana". Mas isso não são detalhes desimportantes. É intolerável. É intolerável no sentido de que as forças policiais não podem fazer uso de meios extralegais como instrumento de gestão da ordem. É isso que introduz e aprofunda a insegurança que afeta os cidadãos desta cidade, mais ainda aqueles moradores dos bairros periféricos em que esses fatos acontecem. Nesse terreno, todos viram alvos passíveis de morte violenta, todos igual e indiferenciadamente extermináveis.
Nos últimos anos, a estratégia oficial parece ter sido a chamada incapacitação por meio do encarceramento, de que é evidência o acirramento das políticas punitivas e o aumento exponencial da população carcerária em São Paulo. Mais recentemente, parece que estamos presenciando uma guinada ainda mais perversa, que se sobrepõe à anterior, sem substituí-la, pondo em ação a incapacitação pela morte, fazendo uso de instrumentos extralegais de controle e, talvez, de puro extermínio dos "supranumerários". Quando o governador afirma que "quem não reagiu está vivo", de alguma maneira está avalizando essas práticas, no mínimo porque passa por cima das leis que supostamente governam o País, se atribuindo um poder de julgar que não cabe a ele, tampouco à polícia, que, a rigor, recebe e vem recebendo algo como uma licença para matar.
Em todos os lugares em que a lógica bélica da "guerra ao crime" foi implementada, os resultados foram devastadores. É isso que estamos presenciando em São Paulo. Em vez de desativar a lógica da violência, essa lógica militarizada de gestão da ordem termina por acionar o ciclo infernal dos revides e vinganças, ao mesmo tempo que repõe agora, em pleno século 21, esse terreno que esfumaça, no limite, a diferença entre a lei e o crime.
* DANIEL HIRATA É PESQUISADOR DO NÚCLEO DE ESTUDOS DA CIDADANIA, CONFLITO E VIOLÊNCIA URBANA (NECVU-UFRJ); VERA TELLES É PROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA USP

Sob o controle de quem?


FERNANDO SALLA
O Brasil é mesmo um país surpreendente! Em 2006, quando a cidade de São Paulo foi terrivelmente abalada por atentados de variada natureza e um confronto entre criminosos e autoridades se desencadeou, acreditávamos que tínhamos passado pela pior crise da história da segurança pública do País. Naquele momento, um dos centros das atenções foi o sistema prisional paulista, de onde teriam partido as ordens para os ataques dos criminosos.
Há 30 anos, organizações civis já apontavam os horrores dos presídios - Ronaldo Bernardi/Agência RBS
Ronaldo Bernardi/Agência RBS
Há 30 anos, organizações civis já apontavam os horrores dos presídios
Mas eis que chegamos em 2012 e estamos no meio de mais uma crise na segurança pública em São Paulo que, não há a menor dúvida, é muito mais grave que a de 2006, a começarpela duração e amplitude. Ano eleitoral, julgamento do "mensalão", declaração do ministro da Justiça sobre as prisões brasileiras - só criaram um ambiente ainda mais efervescente em torno dessa grave crise.
Os componentes da atual crise parecem ter maior complexidade: disparam os números dos homicídios na cidade de São Paulo e região metropolitana e descem pelo ralo os exercícios explicativos com as variáveis estatísticas, com os indicadores socioeconômicos, com os indicadores das políticas de segurança como fatores decisivos para compreender o comportamento das taxas de homicídio; emergem como focos relevantes de análise para a compreensão da atual crise as dinâmicas do mundo do crime e as formas de repressão sobre ele.
Mas falar das dinâmicas da criminalidade no Brasil, e particularmente em São Paulo, significa falar também das prisões, pois ali os grupos criminosos nasceram e se fortaleceram e continuam a manter porosamente suas relações ilícitas para além dos muros. Talvez pouca atenção tenha se dado a esse grave aspecto que diz respeito às falhas das autoridades em conduzir adequadamente os espaços prisionais ao longo de décadas. Lógico que as coisas se tornaram mais graves num país que entre 2000 e 2010 dobrou a sua população carcerária (estamos atualmente com cerca de 500 mil presos).
O fato é que as prisões, nesta crise de 2012 em São Paulo, não eram o foco do debate, pois segundo as autoridades tudo estava sob controle: as lideranças dos grupos criminosos estão isoladas em presídios de segurança máxima, a penitenciária de Presidente Bernardes onde funciona o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) está com vagas disponíveis e não existem rebeliões no sistema, apesar da superlotação e das condições subumanas em dezenas de centros de detenção provisória e em penitenciárias.
Pois bem, de uma hora para outra, nos termos da cooperação entre o governo do Estado e o governo federal, surgem essas propostas de transferência de presos de São Paulo para presídios federais. Mas as lideranças das facções não estão já isoladas? Por que não mandá-las então para o RDD de Presidente Bernardes? O que está acontecendo com os esquemas de contenção dos grupos criminosos no sistema penitenciário paulista?
Parece que a proposta de transferência de alguns presos é uma satisfação para a opinião pública de que algo está sendo feito. Porém, na certeza de que tal intervenção deve ter pouca influência sobre o que é central na atual crise: a dinâmica do mundo do crime e como o sistema repressivo tem atuado sobre ele. Temos aqui o ponto crucial que não é enfrentado de forma robusta pelas autoridades desde que o País saiu do regime militar e tenta construir uma sociedade democrática. Nossas instituições voltadas para o controle social continuam a ser autoritárias, sem transparência, sem accountability. Reproduzem um padrão de punição largamente aceito na sociedade brasileira que se expressa tanto na indiferença em relação a cidadãos executados (quando pobres, moradores da periferia) quanto em relação ao destino dos milhares de presos provisórios e definitivos que abarrotam as prisões.
Policiais e agentes penitenciários têm sido vítimas diretas da criminalidade em São Paulo. Mas também indiretamente dos efeitos de décadas de autoridades omissas ou coniventes com a atuação daqueles agentes públicos que nem sempre está amparada pelos moldes legais. Desmandos, corrupção, arbitrariedades, truculência desencadeiam "relações perigosas" com o mundo do crime e comprometem a capacidade de todos aqueles dispostos a conduzir corretamente as suas tarefas, o seu trabalho no policiamento ou no interior das prisões.
Quando organizações da sociedade civil, como a Comissão Teotônio Vilela, começaram a visitar prisões e manicômios em 1983 - 30 anos atrás! - e traziam a público os horrores que ali encontravam; quando chamavam, desde aquela época, a atenção da sociedade para a necessidade de colocar as agências de controle social sob os trilhos rigorosos da legalidade que a redemocratização cultivava, lançavam alguns dos principais desafios políticos e institucionais para a área da segurança pública que o País não conseguiu, até agora, equacionar.
Se não é ocioso, é pelo menos cansativo ouvirmos autoridades despejando seus argumentos umas contra as outras. Para todos os que perderam amigos ou familiares assassinados, para todos os que são vítimas de uma criminalidade que se amplia e para aqueles que têm que pagar suas dívidas com a sociedade em nossas prisões, tais argumentos têm sido irrelevantes.
FERNANDO SALLA É PESQUISADOR SÊNIOR DO NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Poder mandar não significa mandei


FERNANDA LARA TÓRTIMA -ADVOGADA CRIMINAL, MESTRE EM DIREITO PENAL PELA UNIVERSIDADE DE FRANKFURT AM MAIN (ALEMANHA) - O Estado de S.Paulo
Recentemente, o professor emérito da Universidade de Munique Claus Roxin, o grande especialista na teoria do domínio do fato, citada no julgamento da Ação Penal 470, concedeu algumas poucas entrevistas a respeito da teoria em questão, publicadas em periódicos brasileiros. Foi o suficiente para que se passasse a insinuar que o eminente jurista teria censurado nosso Supremo Tribunal Federal.
Relator e revisor. Barbosa e Lewandowski duelaram durante o julgamento - Ed Ferreira/Estadão
Ed Ferreira/Estadão
Relator e revisor. Barbosa e Lewandowski duelaram durante o julgamento
Nada menos verdadeiro. Pensar que Roxin teria criticado diretamente os votos proferidos durante o citado julgamento é, no mínimo, pueril. E divulgar essa ideia é leviano. É evidente que, apesar de nos ter brindado com uma breve visita ao Rio de Janeiro, para evento acadêmico, no final do mês de outubro, não teve oportunidade de ouvir, a respeito do processo, mais do que algumas explicações superficiais. Suas manifestações limitaram-se à reprodução, em caráter abstrato, de ideias que já vinham sendo por ele divulgadas há aproximadamente cinco décadas em diversas publicações científicas.
Por outro lado, as entrevistas por ele gentilmente concedidas, se observadas corretamente, como fonte de doutrina, fazem ver que a teoria do domínio do fato parece ter sido utilizada equivocadamente durante o julgamento da Ação Penal 470.
A bem da verdade, não é tarefa fácil compreender a forma como a teoria em questão serviu ao resultado condenatório. Falou-se, de forma descontextualizada, a respeito de domínio "final" ou "funcional" do fato; chegou-se a invocar a formulação dos aparelhos organizados de poder e, ao que parece, pretendeu-se inserir os enunciados da teoria na análise da prova dos autos, a ponto de se fazer crer que a identificação da posição hierárquica de alguns acusados dentro da estrutura de poder poderia contribuir para a presunção de que teriam eles participado de determinadas condutas criminosas. Em outras palavras, passou-se a impressão de que a mera circunstância de alguém ocupar elevada posição hierárquica fundamentaria a responsabilidade pela prática do crime.
Essa utilização da teoria do domínio do fato seria absolutamente incorreta. Não se pode, de forma alguma, mesclar suas premissas com a análise da prova de que alguém tenha concorrido para a realização de um crime. A teoria do domínio do fato serve exclusivamente à distinção entre autores e partícipes de um crime, após ter sido devidamente demonstrado terem os acusados concorrido para sua realização. A tese não é complexa: uma vez comprovado - e somente após isso - que determinado acusado contribuiu para a prática criminosa, verifica-se se ele o fez dominando os fatos. Em caso positivo, atuou ele como autor; caso contrário, como simples partícipe (mandante, isto é, instigador, ou cúmplice).
Não se pretende aqui afirmar que não existiam provas para a condenação de qualquer um dos que figuram como acusados no processo em questão. Também não se pretende concluir serem inadmissíveis condenações em ações penais em geral com base em provas indiciárias. Mas o que não se pode conceber é que a teoria do domínio do fato seja utilizada para finalidades para as quais não foi desenvolvida. E ela não foi criada para fins de comprovação de que determinado acusado tenha participado de condutas criminosas.
Também se fez menção, em passagens do julgamento da AP 470, à formulação relativa aos aparelhos organizados de poder, desenvolvida por Roxin no âmbito da teoria do domínio do fato. A formulação fora corretamente utilizada no julgamento do ex-presidente Alberto Fujimori pela Corte Suprema peruana. Lá não se mesclou o uso da teoria com a análise da prova dos autos, apenas condenou-se Fujimori como autor, e não mero partícipe, considerando-se ter ele exercido, por meio de uma estrutura organizada de poder, o domínio da vontade dos autores que realizaram o tipo pelas próprias mãos (imediatos). Sem a teoria do domínio do fato, Fujimori não teria sido absolvido, mas condenado como partícipe.
Aqui, ao contrário, passou-se ao menos a impressão de que o decreto condenatório de determinados acusados - e não apenas a designação deles como autores ou partícipes - decorreu da aplicação da teoria do domínio do fato, o que, como se viu, importa em incontornável equívoco.
A teoria do domínio do fato ainda é pouco utilizada em julgados brasileiros. Não se pode deixar de lamentar que aparentemente se tenha recorrido ao seu uso de forma equivocada em um julgamento de tamanha repercussão. A preocupação não é apenas com as consequências do erro no caso de que estamos falando, mas sim com sua reprodução, possivelmente também errônea, em milhares de decisões judiciais a serem proferidas no País. A teoria do domínio do fato assumiu no julgamento da Ação Penal 470 ares de novidade. A adoção de teorias aparentemente herméticas, e, de toda sorte, conhecidas por uma parcela pequena da população e mesmo da comunidade jurídica, costuma servir de álibi para drásticas alterações de orientação de entendimento jurídico. A culpa passa a ser da "nova" teoria, como se ela não existisse antes, e como se servisse aos fins para os quais foi utilizada.