É preciso ter um coração de granito para não lamentar o fato de que, desde a semana que passou, vivemos num mundo sem Jane Goodall. A perda, claro, é toda nossa. Ela partiu aos 91 anos, levando a vida cheia de propósito que sempre desejou, dividida entre os chimpanzés que amava e as plateias encantadas que iam vê-la por onde passava. Parafraseando uma frase famosa de Peter Pan (e poucas idosas tinham mais alma de criança do que ela), a primatóloga costumava dizer que a morte seria sua próxima grande aventura.
E é de magia que desejo falar para me despedir dela. Gostaria que todos os seres humanos tivessem acesso ao pó de pirlimpimpim (para citar Peter Pan mais uma vez) que concedeu a Goodall seus poderes de feiticeira. Isso significa que, num mundo perfeito, em que as considerações logísticas, ambientais e de segurança pudessem ser resolvidas num passe de mágica, toda pessoa deveria ter a chance de apertar as mãos de um grande símio ao menos uma vez na vida.
Repare que eu não disse "ver um grande símio" –um chimpanzé, bonobo, orangotango ou gorila– uma vez na vida. Essa experiência ainda é possível para muita gente em alguns zoológicos, por vezes ao preço de empobrecer o cotidiano dos macacos com um espaço limitado ou o estresse causado pela falta de educação dos visitantes. (Destaco aqui, para evitar qualquer interpretação equivocada, que muitos zoológicos fazem o melhor que podem com recursos escassos, e que sua importância para a educação e a conservação não pode ser negligenciada de forma alguma.)
Maravilhoso mesmo seria ter a sorte de encontrá-los num ambiente em que suas necessidades básicas de espaço, alimento e, principalmente, elos familiares e sociais estivessem satisfeitas. Foi nessas condições, no Santuário dos Grandes Primatas de Sorocaba (SP), que pude encontrá-los duas vezes como repórter desta Folha. Mesmo num lugar como o santuário, que abriga, em muitos casos, o equivalente símio de refugiados –animais que outrora tinham enfrentado maus-tratos em casas de particulares, circos ou coisa pior–, é impossível chegar perto dos bichos e não reconhecer sua dignidade.
Falei em apertar as mãos deles –poderia ter falado de seu olhar, ou dos contornos delicados das orelhas– porque há algo de tremendamente individual nas mãos humanas, como sabemos. E, apesar da diferença de proporções e curvatura dos dedos, nunca vou esquecer como o traçado das linhas na palma das mãos deles é indistinguível do que vemos nas nossas. É um pensamento bastante absurdo, eu sei, mas lá vai: videntes seriam perfeitamente capazes de "ler as mãos" de um chimpanzé.
Há muitos outros detalhes que não hão de me sair da cabeça enquanto eu viver. A maneira como eles arfam quando estão contentes, de um jeito que Goodall, é claro, adorava imitar; os filhotes querendo brincar. Não me entenda mal: chimpanzés adultos, em especial os machos, podem ser absolutamente aterrorizantes, em especial quando o visitante percebe a força tremenda que há em braços e mandíbulas, ou quando os vê de pelos eriçados. Até aí, porém, não há nada que eles não façam, em seus piores momentos, que nós também não façamos, e com consequências bem mais sérias.
Goodall abriu a janela que enfim nos permitiu enxergar tudo isso. Graças aos olhos dela, estamos muito menos sozinhos do que um dia estivemos.

Nenhum comentário:
Postar um comentário