segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Ninguém precisa ganhar dos outros, basta funcionar, Suzana Herculano-Houzel - FSP

 

Suzana Herculano-Houzel

Bióloga, neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA) e colunista da Folha

Compartilho com o leitor Fábio Portela L. Almeida uma preocupação importante: a ascensão da anti-ciência, que ele teme que eu esteja alimentando ao questionar Darwin e seu legado. Ser mal-interpretado é um osso do ofício de cientistas e escritores, mas nem por isso devemos deixar de fazer questionamentos devidos —ou a ciência jamais avançaria.

O próprio Fábio toma equivocadamente minha crítica ao pilar do darwinismo, o "aperfeiçoamento das espécies por adaptação através de seleção natural", escrito preto no branco no livro "Origem das Espécies", como uma interpretação distorcida e simplista, na qual "tudo serve para alguma coisa", o que ele chama de espantalho conceitual.

O cientista britânico Charles Darwin em 1880, dois anos antes de sua morte - Reprodução/Reprodução

Um "espantalho conceitual" é a expressão em inglês (strawman argument) para um argumento obviamente falso, levantado apenas para ser destruído. Ora, não há espantalho quando o problema é real: o darwinismo moderno continua buscando explicação adaptacionista para tudo o que vê, atribuindo propósito às características das espécies, e tanto biólogos quanto o público operam sob a expectativa de que tudo na vida serve para alguma coisa.

É praticamente impossível publicar um artigo em ciências biológicas sem que um colega revisor exija um acréscimo ao texto detalhando "para que serve" tal característica. Como explicar o aumento do cérebro humano, as dobras do córtex cerebral, a falta de reconexão da medula, mas não dos nervos, sem seleção natural, sem que isso tenha servido para alguma coisa?

Como Fábio menciona, a biologia moderna reconhece, sim, que há acasos, contingências históricas, e constrangimentos mecânicos e energéticos às possibilidades da vida —mas sempre como concessões dentro da narrativa da "sobrevivência do mais apto".

E este é o problema. Esta expressão genial, cunhada por Herbert Spencer para sintetizar a evolução darwiniana pelo "aperfeiçoamento por seleção natural das características adaptadas", não só não se sustenta como é, para mim, a mais vil da civilização. Basta olhar para a história das guerras, genocídios e disputas travadas em nome da suposta superioridade de algum grupo.

A evolução é um fato; teorias são narrativas de como esses fatos vieram a ser. É hora de mudar a narrativa da evolução em prol de uma nova teoria baseada no que o próprio Fábio reconhece: não é preciso ser perfeito nem melhor do que os outros.

É o que eu aprendi em meus 20 anos de pesquisa sobre evolução do cérebro. Tantas de suas características que se supunham conferir vantagens e servir para alguma coisa apenas são o que são, fruto de contingências genéticas, limitações físicas e oportunidades energéticas.

É com base nesses achados que já propus em várias colunas na Folha que a evolução não é a história restritiva da sobrevivência do mais apto e sim a história expansiva de todas aquelas formas de vida que funcionaram, que vingaram porque puderam, não importa se eficientes ou dispendiosas, simples ou complexas. Esta é a teoria do "basta funcionar" (Whatever Works, no original em inglês), que apresento no livro homônimo que estou preparando.

Comparada ao darwinismo, "basta funcionar" é uma forma muito mais abrangente e inclusiva de ver a vida e também o mundo, que celebra a diversidade e não a extinção dos mais fracos e das minorias —algo de que o mundo moderno está muito precisado.

Nenhum comentário: