A esta altura do campeonato, se algum habitante do interior de São Paulo consegue tirar da cabeça o cheiro onipresente de matéria vegetal queimada e a cor perpetuamente baça do céu, a única coisa a fazer é parabenizar a pessoa em questão pela sua capacidade sobre-humana de tapar o Sol com a peneira. Como não tenho esse superpoder, faz algumas semanas que me sinto enlutado. E o medo é que chuva nenhuma, por mais torrencial que seja, consiga dissolver de todo a mortalha que nos cobre.
O cenário de "Mad Max" do interior é só um pedaço de um problema muito maior, lógico. Da capital paulista à Amazônia, de Minas ao pantanal, mais ou menos 60% do país (para não falar de nossos vizinhos sul-americanos) está debaixo da atual pluma de fumaça. E talvez o mais angustiante —excetuando-se, é claro, a dificuldade de respirar— seja a impressão de que a ficha não está caindo. De que as pessoas não estão se dando conta de quão fora da curva é o ponto em que viemos parar.
Pode ser que a culpa caiba, ao menos em parte, a um casamento desastroso entre falta de memória coletiva e desconexão com a terra. Com efeito, o Brasil do século 21 é o filhote de dois processos igualmente brutais: a urbanização vertiginosa e a ocupação da "fronteira agrícola" (releve-se aqui o fato de que a tal ocupação passou e continua passando por cima de quem já estava na dita fronteira).
Combinadas, as duas coisas produziram dezenas e dezenas de milhões de famílias que conhecem o lugar onde vivem há apenas uma geração, ou até menos. É difícil evitar a impressão de que tamanho desenraizamento, operado num piscar de olhos histórico, tem consequências sérias. Um processo tão rápido e impiedoso faz com que muita gente não perceba as dimensões do buraco climático e ambiental em que nos enfiamos.
É por isso que precisamos desesperadamente de um tipo visceral de memória. Não há negacionismo climático que pare de pé diante de quem é capaz de se recordar como era a terra em que seus avós cresceram. Nestes dias de treva, foi esse conselho que me voltou à cabeça.
Ouvi pela primeira vez a ideia, tão simples e poderosa, conversando certa vez com a oceanógrafa americana Sylvia Earle, hoje com 89 anos. Quando perguntei como ajudar as pessoas a compreenderem, de forma intuitiva, a magnitude do que está acontecendo com os ambientes à nossa volta, eis o que ela disse:
"Eu incentivo todo mundo que conheço a conversar com alguém mais velho, um avô, tia ou tio, e perguntar quais plantas e animais eles costumavam ver sempre quando crianças e quais não são mais vistos por aí. Pergunte a um pescador idoso que peixes ele pega hoje e quais pegava vinte ou trinta anos atrás. Observe fotografias antigas de um lugar e as compare com as de hoje. O ritmo em que as mudanças ocorreram é absurdo."
Talvez a frase tenha calado fundo porque "pescador idoso" é justamente a descrição de ambos os meus finados avôs desde que me entendo por gente —ambos lamentando o sumiço dos peixes que tanto gostavam de fisgar no rio Mogi-Guaçu.
Mas não precisei viver tanto quanto eles para já saber nos meus ossos que este calor, em vários "invernos" seguidos, não é o normal para a terra onde nasci e onde meus filhos nasceram. Que sejamos capazes de ouvir quem é capaz de perceber que algo está muito errado, e de perceber o custo gigantesco da inação.
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