Por pouco, Brasília poderia ter sido bem diferente do que é. O projeto de Rino Levi para a capital do país previa complexos de torres organizados ao largo de uma linha reta, um atrás do outro, salpicando de concreto a paisagem virgem do cerrado.
Cada complexo teria oito edifícios de 300 metros de altura —cerca de 80 andares—, cortados por ruas internas de 400 metros de extensão, onde estariam comércios, creches, centros de saúde e praças, acessíveis a pé. Os carros ficariam estacionados no térreo.
Era uma proposta radical, e Levi acabou ficando em terceiro lugar no concurso para o Plano Piloto de Brasília. Mesmo assim, seu projeto teve bastante reconhecimento por arquitetos e é lembrado até hoje.
Agora, o desenho e uma maquete do projeto podem ser vistos numa exposição em São Paulo que recupera a vida e a obra deste expoente da arquitetura moderna brasileira, responsável por mudar, em seus mais de 60 anos de vida, a forma da capital paulista.
Em paralelo à exposição, a editora Monolito lança o "Rino Levi - Designer", com uma biografia de Levi ilustrada por fotos de época. A publicação dá destaque à uma habilidade menos conhecida do arquiteto, a de designer de móveis, e serve como texto de introdução ao sofá Olivo, desenhado por ele e posto no mercado recentemente, pela primeira vez.
Na mostra, na Chácara Lane, organizada por Abilio Guerra e Renato Anelli, ambos estudiosos do trabalho de Levi e professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, o público vê quatro fases da obra do arquiteto —seus projetos não realizados, os que foram construídos e depois demolidos, os preservados e restaurados, e aqueles que ainda estão em pé, porém em ruínas.
Em fotos, vídeos, maquetes e textos, entendemos a pluralidade do vocabulário arquitetônico de Levi. Como um profissional de mercado, ele desenhou prédios para diferentes fins —por exemplo, os hospitais Albert Einstein e A.C. Camargo, os edifícios residenciais Prudência e Higienópolis, uma sede do banco Itaú, os cinemas Ipiranga e Art-Palácio e o teatro Cultura Artística, talvez sua obra mais conhecida.
Recém-reaberto após anos em restauro, o Cultura Artística ganha uma seção especial no segundo andar. Há farto material de quando o teatro foi inaugurado, imagens do fogo que o consumiu e também uma reprodução, em escala realista, da mão de uma das musas do painel de Emiliano Di Cavalcanti instalado na fachada. "Quem chega perto de um mural desses?", questiona Guerra, um dos organizadores.
Em outra sala, vídeos mostram imagens de drone dos prédios de Levi abandonados e fotografias de seus interiores aos pedaços, feitas por Cristiano Mascaro e Nelson Kon, que tiveram acesso ao Cine Art-Palácio, hoje pichado e com pedaços das paredes caindo.
Ruínas à parte, a exposição pretende apresentar "um arquiteto que é pouco conhecido do público, mas que contribuiu tanto para a construção da cidade do jeito que ela é hoje", nas palavras de Anelli, o outro organizador.
Filho de imigrantes italianos radicados em São Paulo, Levi não cresceu nem na burguesia, nem na periferia. Seus pais tinham recursos suficientes para enviar o jovem para a Itália —sua formação em arquitetura aconteceu em Milão e Roma, de 1921 a 1926, em meio ao desenvolvimento do movimento racionalista, que propunha construções despojadas de ornamentação e com superfícies envidraçadas.
"Ele volta para o Brasil em 1927 com ideias em ebulição, mas não completamente maduras. Foi pegando os serviços que conseguia", conta Anelli, acrescentando que foi a partir de 1930, depois de Levi visitar a Casa Modernista de Gregori Warchavchik, na Vila Mariana, que o arquiteto se deu conta de que havia público interessado em projetos mais radicais. Só então começou a praticar o que aprendeu na Europa.
Em 1934, Levi inaugurou o edifício Columbus, considerado o primeiro prédio residencial de luxo de São Paulo e também um marco na cidade que se modernizava —o arquiteto foi um dos principais agentes no processo de verticalização da capital. O prédio foi demolido para dar lugar à uma garagem.
Ele também empregava em suas obras um conceito hoje muito em voga, a fachada ativa, mas que na época não levava esse nome e era apenas parte de um bom projeto, que consiste na integração da base do prédio com a rua e os pedestres.
Um exemplo, cita Guerra, é o edifício de escritórios, hoje ocupado pelo banco Itaú na avenida Paulista, na esquina com a rua Frei Caneca, em que a fachada de vidro do térreo se relaciona com a calçada. O prédio também "tem a marquise que protege as pessoas da chuva, uma gentileza urbana que só acontece no Conjunto Nacional", diz ele, ao comentar o legado de Levi para a cidade.
Levi também desenhava casas particulares, a exemplo da que criou para o industrial Olivo Gomes, no início dos anos 1950. Mas seus projetos eram mais do que a estrutura —os desenhos traziam o layout dos ambientes, incluindo móveis fixos e soltos para comporem os interiores.
Para esta casa em São José dos Campos, no interior de São Paulo, ele projetou um sofá longo e sem braços, com o assento de almofadas soltas e o encosto meio flutuando. Sofás semelhantes, com a estrutura em madeira ou aço, apareceram também em outras casas desenhadas pelo arquiteto, mas sempre foram peças únicas, sem nunca ter uma produção em série vendida em lojas.
Até aquele momento, sua peça de mobília mais conhecida era a cadeira do auditório do Cultura Artística, com um sistema de molas que recolhia o assento para liberar espaço no corredor. Esta poltrona não é mais a do teatro hoje.
"Ele nunca se enxergou como designer de mobiliário, nunca valorizou sua produção como designer. Ele criava isso como peça para compor os ambientes dele", afirma Fernando Serapião, autor do livro "Rino Levi - Designer", acrescentando que na época não havia uma indústria brasileira produzindo designs locais. "Havia dificuldade, nos anos 1950, de comprar peças com qualidade estética no mercado nacional."
Levi costumava importar os móveis do casal Eames e de Alvar Aalto para mobiliar as casas que desenhava, conta Serapião, de modo que algumas das peças, de tão usadas pelo arquiteto, passaram a ser confundidas como se fossem de sua autoria. Ele projetou espreguiçadeiras e cadeiras de jantar.
Especializada em móvel assinado brasileiro, a Dpot fez um resgate histórico e passou a produzir e a vender este ano o sofá Olivo, tal como desenhado por Levi. Um exemplar está em exposição na Chácara Lane, não como peça de museu, mas como parte da mobília de uma sala. E é possível sentar, tornando a peça útil, assim como o arquiteto imaginou.
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