segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Mudar para sobreviver Por Tony de Marco. Meio Sábado

 Mudar para sobreviver

Por Tony de Marco

As corridas de carro existem desde a invenção do automóvel e hoje dividem-se em dezenas de categorias. Vão do Kart, cujos pilotos profissionais começam a correr a 60 km/h com apenas 6 anos de idade, até a Fórmula 1, onde velhinhos de 43 anos como o bicampeão Fernando Alonso (2005 e 2006) voam a 360 km/h. A F1 é a face mais vistosa do automobilismo, uma modalidade que muitos não consideram um esporte. Para acabar com essa dúvida, em 2011 o Comitê Olímpico Internacional reconheceu a FIA (Fédération Internationale de l’Automobile) como uma federação esportiva e incluiu o automobilismo como um esporte possivelmente olímpico.

Será que um dia teremos os três primeiros colocados em um pódio sem direito a champagne? Atletas do kickboxing, squash e caratê (outros esportes que também estão na fila do COI) tem mais chance de ganhar medalhas de ouro antes dos pilotos. Mas não é impossível que a popularidade acabe unindo as duas poderosas federações em alguma Olimpíada do futuro.

Tudo começou com o Rato
Mesmo sendo disputada desde 1950, para mim (e muitos outros brasileiros) a Fórmula 1 começou com Emerson Fittipaldi, quando ele ganhou o campeonato mundial em 1972 com a icônica Lotus preta e dourada, patrocinada pela John Player Special. Foi a primeira temporada com provas transmitidas para o Brasil via satélite (uma novidade) pelas TVs Tupi e Globo. Em 1973 o Grande Prêmio do Brasil, no autódromo de Interlagos, entrou no calendário da competição. Emerson ficou em segundo e, no ano seguinte, foi campeão mundial novamente pela McLaren.

O Brasil estava definitivamente apaixonado pelo “Rato”, apelido de Emerson, e pelo “circo” da Fórmula 1. O ano de 1975 trouxe mais emoção com um outro piloto brasileiro, José Carlos Pace (morto em em acidente aéreo em 1977), que venceu o Grande Prêmio do Brasil, com Emerson chegando na segunda posição, para delírio dos fãs. Fittipaldi terminaria o ano novamente em segundo no campeonato e tudo parecia bem até que o piloto entrou de cabeça num projeto faraônico: construir um carro brasileiro. Nascia a equipe Copersucar Fittipaldi, que produziu belos carros amarelos que nunca ganharam uma única corrida. Um segundo lugar em Jacarepaguá, em 78, e um terceiro lugar em 1980, nos Estados Unidos, foram seus melhores resultados.

Porém os brasileiros já tinham outro ídolo, Nelson Piquet, que chegou em segundo em 1980 e faturou o campeonato em 1981, pela Brabham. Piquet manteve o interesse da torcida vencendo também em 1983 e 1987. E então surgiu Ayrton Senna, também tricampeão em 1988, 1990 e 1991. Estes talvez tenham sido os anos mais loucos, com muita gritaria de Galvão Bueno, Tema da Vitória e um aumento de público, com velhinhos e crianças torcendo pelo ‘bom moço’. A festa acabou no dia primeiro de maio de 1994, quando Senna morreu após um acidente no Grande Prêmio de San Marino.

Daí para frente coube a Rubens Barrichello manter o interesse dos brasileiros pela competição. Mas mesmo com 68 pódios, a falta de um título mundial ofuscou o brilho do piloto. Ou seria o brilho excessivo de Michael Schumacher, seu companheiro na Ferrari, que faturou 5 títulos seguidos? Rubinho viu surgir Fernando Alonso (2 títulos), Lewis Hamilton (7 títulos), Sebastian Vettel (4 títulos) e saiu da categoria em 2011. Felipe Massa foi o último brasileiro a ter uma carreira sólida na F1, pilotando uma Ferrari após a saída de Barrichello e terminando a carreira na decadente Willams. Desde então o interesse dos brasileiros pelo esporte diminuiu, acompanhando um movimento global.

Após 40 anos sob o comando de Bernie Ecclestone, o púbico da Formula 1 estava estagnado e a categoria, endividada. Em 2017, o ‘Formula One Group’ foi vendido ao conglomerado Liberty Media por ‘apenas’ 8 bilhões de dólares. Um ótimo negócio para a empresa americana já que, no ano passado, rejeitou uma proposta de US$ 20 bilhões feita pelo fundo soberano da Arábia Saudita. Como tal valorização aconteceu?

Viva a revolução
Antes de apostar na F1, o Liberty Media já era dono da rede de estações de rádio Sirius XM e da produtora de eventos Live Nation. Decidida a modernizar o evento, a empresa ficou meses pesquisando os fãs e, principalmente, os potenciais novos fãs. O resultado apontou para uma mudança radical em relação às redes sociais, levando também à criação de uma série de produtos digitais e de serviços para o público que vai às corridas.

Ecclestone detestava as redes sociais e desestimulava seu uso pelos pilotos. Quando a Liberty Media assumiu, Lewis Hamilton mostrou dezenas de cartas enviadas pelos advogados de Bernie exigindo que parasse de postar vídeos das corridas em suas contas pessoais. O descaso era tanto que, em 2017, o Youtube da F1 tinha pouco mais de 270 mil inscritos. Sete anos depois já são quase 11 milhões. Hoje o canal apresenta o resumo das corridas, filmagens a bordo dos carros, a reação dos pilotos após as provas qualificatórias, transmissões ao vivo dos preparativos finais e até um resumo das etapas narrados por crianças. Agora pilotos e equipes são estimulados a aumentar sua presença nas redes. O antenado Hamilton colhe os frutos de sua teimosia com 37,5 milhões de seguidores no Instagram, enquanto o atual campeão mundial, Max Verstappen, tem “apenas” 12,5 milhões.

Sem medo de competir consigo mesmo, foi criado um serviço de streaming, a F1TV, rompendo com o histórico modelo de exclusividade de transmissão pelas redes de televisão. Além das corridas e treinos, o serviço tem programas exclusivos de entrevista e análise, documentários e um grande arquivo de competições. A própria transmissão das corridas ganhou mais emoção e informação. Os carros estão equipados com muitas câmeras: umas giram automaticamente para acompanhar as ultrapassagens, outras, instaladas no capacete, mostram o ponto de vista do piloto, algumas alteram a imagem para mostrar a inclinação de algumas curvas ou ficam apontadas para o rosto dos pilotos, mostrando suas reações. Para dar a sensação de estar dentro do carro, uma câmera de 360 graus pode ser controlada por quem assiste a esses vídeos no YouTube. Muita informação é apresentada em Realidade Aumentada, com gráficos e estatísticas projetados no painel dos carros. As equipes recebem dados de mais de 120 sensores e alguns são mostrados ao público, como velocidade, aceleração, ângulo da curva, consumo de combustível e até a força G a que o piloto está sentindo.

Correndo por fora
A ausência de mulheres no grid de largada sempre foi algo marcante. Das pilotas que tentaram se classificar para a categoria, apenas a italiana Lella Lombardi competiu e pontuou, correndo pelas equipes Brabham e March entre 1974 e 1976. Em 2023 começaram as provas da F1 Academy, uma categoria criada para descobrir e preparar as futuras pilotas, combater o sexismo e aumentar a diversidade dentro da pista. Para participar é preciso ter entre 16 e 25 anos e 110 mil dólares no bolso, já que apenas os custos dos carros são subsidiados. A primeira temporada foi vencida pela espanhola Marta García e, neste ano, a inglesa Abbi Pulling, de 21 anos, está liderando. E por falar em sexismo, em 2018 a organização finalmente acabou com as ‘grid girls’, que acompanhavam os pilotos com placas ou guarda-chuvas.

Além de ampliar, eles decidiram rejuvenescer seu público, e o vídeogame faz parte desta estratégia. Na década de 1970 a F1 já era jogada em arcades. Dos fliperamas pulou para o Atari, SEGA, Nintendo, MSX e outros, numa infinidade de versões. O game atual, chamado 'F1 24', da Electronic Arts, pode ser jogado no PC, PlayStation ou Xbox. Ou seja, pilotos não faltavam, bastava criar uma enorme competição. Nascia a Formula One Esports Series, recentemente rebatizada para F1 Sim Racing, que começou em 2017 quando mais de 60.000 jogadores tentaram se classificar para as finais da primeira temporada. Atualmente as equipes são as mesmas da corrida verdadeira, e o prêmio é de gente grande: 750 mil dólares.

Além dos ingressos, que não são baratos (US$ 640 para os três dias no Grande Prêmio do Brasil), foram criados camarotes VIP batizados de F1 Experiences. Neles é possível ver a lendas da Fórmula 1 de perto, assistir a prova no exclusivo F1 Paddock Club Lounge, comer pratos criados por chefs com estrelas Michelin, fazer caminhadas diárias no Pit Lane e beber até cair no Open Bar. Todo este conforto pode custar até US$ 7.000. Para sinalizar todas essas mudanças, adotaram uma nova música tema, redesenharam o logotipo e novas fontes tipográficas (incrivelmente belas) foram criadas unificando o visual do evento em todas plataformas.

Fórmula Netflix
No meio de tantas transformações, um produto é sempre apontado como decisivo para o sucesso: a série Drive to Survive (traduzido para Dirigir Para Viver) da Netflix. Foi com ela que me reconectei à competição após décadas de desprezo. Eu e a torcida do Flamengo, já que 30% público atual veio na boleia da série. Deixando de lado aspectos mais técnicos dos carros e focando nas pessoas, a série injetou um ingrediente novo: o drama. As brigas entre pilotos (muitas vezes da mesma escuderia), as tretas entre chefes de equipe, os escândalos financeiros dos dirigentes, os áudios cheios de palavrões, as tomadas de câmera exclusivas (a parada nos boxes, vista de cima, é a marca registrada da série), os comentário ácidos dos especialistas, o desespero das equipes menores em pontuar, tudo é ampliado para transformar a competição em entretenimento. Não importa se o campeonato será vencido pela Mercedes ou pela Red Bull. Hamilton, o campeão em 2018, mal aparece na primeira temporada da série.

O programa serve ainda para mostrar o apoio da família dos pilotos e de chefes de equipe, exibir ao máximo os patrocinadores e apavorar o público com trombadas cinematográficas. As primeiras temporadas abusam do carisma de Daniel Ricciardo, que troca a RedBull pela Renault e esta pela McLaren antes de sua carreira escorrer pelo ralo e de Guenther Steiner, o explosivo e engraçado chefe de equipe da Haas, infelizmente demitido em 2023. Ao longo da série, assistimos ao retorno da Red Bull à hegemonia e à ascensão de Max Verstappen, atual tricampeão da categoria. Não há melhor maneira de se atualizar sobre os últimos 5 anos da competição. Após maratonar a série (e fuçar a wikipedia atrás de mais informações sobre os personagens) eu estava pronto para acompanhar as provas. A boa notícia é que os anos de dominação da Mercedes e da Red Bull acabaram. Neste ano, Ferrari e McLaren estão disputando palmo a palmo as posições no grid de largada, no pódio e no campeonato de construtores. Haja coração, diria o Galvão.

IMAX e além
E se você acha que a corrida de automóveis atingiu seu pico de glamour, aguarde F1, o blockbuster da Apple e Warner Bros. Com o gostosão Brad Pitt, Kerry Condon, Damson Idris e Javier Bardem no elenco e um enredo sobre a criação da fictícia escuderia APXGP. A inédita parceria entre Hollywood e a Fórmula1 permite acesso da equipe de filmagem às corridas, gravando cenas antes das competições com a participação dos verdadeiros pilotos e o calor da torcida. Portanto vem aí mais tomadas de câmera absurdas, ensurdecedores roncos de motor, cenários paradisíacos, muito mais drama e... Guenther Steiner, desde já cotado para Oscar de melhor ator coadjuvante.

Você sabia?
• Para ser considerado um esporte olímpico, ele precisa ser praticado em pelo menos 75 países em quatro continentes diferentes.
• Em Portugal ainda se ouve a expressão “armado de Fittipaldi” para se referir a pessoa que dirige em alta velocidade.
• O Tema da Vitória, que embalou Piquet e Senna, foi gravado em 1981 pelo grupo Roupa Nova.

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