A degradação do espetáculo da política na televisão alcançou novos patamares nas últimas semanas. Nos EUA, durante um debate, Donald Trump falou que imigrantes haitianos estão comendo animais de estimação em uma pequena cidade em Ohio. Em São Paulo, também em um debate, em resposta a uma provocação, José Luiz Datena atirou uma cadeira em Pablo Marçal.
Não surpreende que os três protagonistas dessas cenas tenham muita experiência profissional no campo da comunicação. De forma consciente ou não, seguem a cartilha de Roger Stone, o consultor político que ajudou a eleger Trump em 2016, defendendo que o seu candidato apostasse num show que mistura desinformação e ultraje.
Em um artigo recente no The New York Times, Michael Hirschorn, diretor e dono de uma produtora de televisão, defendeu a tese de que esses personagens ultrajantes da política encontraram inspiração em reality shows.
Hirschorn recorre à trajetória do vencedor do "Survivor", reality pioneiro da era moderna, no ano 2000. Richard Hatch, abertamente gay, com postura arrogante e rude, foi o primeiro "jogador" de um programa desse tipo. Manipulou os adversários para sobreviver, fez alianças com "inimigos" e enganou a produção do programa para avançar em uma das rodadas da competição.
A certa altura do programa, Hatch parecia ser o homem mais odiado dos Estados Unidos. Ganhou a competição e saiu de Bornéu com um cheque de US$ 1 milhão.
O recado foi compreendido por produtores de TV em todo o mundo. O que funcionava em reality show eram pessoas se comportando mal, figuras que amamos odiar, sem medo da exposição, dizendo e fazendo coisas que muitos espectadores gostariam de poder fazer.
Escreve Hirschorn: "Os mais astutos sabiam como comandar e controlar a atenção, como estender seu momento sob os holofotes e construir sua marca —participação em outros programas, seguidores nas redes sociais, acordos de patrocínio, influência, poder. Nessa busca, a vilania, longe de ser um prejuízo, era cada vez mais um trunfo".
Vendo Trump falar sobre comedores de gatos, o autor observa: "A política, ao que parece, internalizou a lógica dos reality shows". E acrescenta: "Como ele pôde dizer todas essas coisas ultrajantes? Ele não sabe que as pessoas vão ficar chocadas? Bem, é claro, ele as diz especificamente por que as pessoas ficarão chocadas".
Sem tempo nenhum na propaganda eleitoral gratuita em rádio e televisão, Pablo Marçal (PRTB) entendeu que os debates poderiam ser uma ferramenta extremamente útil para a construção da imagem que deseja projetar. Ele busca fixar no eleitorado a ideia de que é o único a falar a verdade, que é um "de fora", sem compromissos com o supostamente corrompido mundo da política.
Até aí, pouca novidade. Bom de lábia, raciocínio rápido e abusando da arrogância, Marçal se posiciona como alguém que foi isolado pelos demais candidatos. Uma vítima do "sistema". Para enfrentar essa situação, o candidato à Prefeitura de São Paulo construiu um personagem ultrajante, que fala barbaridades e ofende os rivais sem alterar o tom de voz. Como um vilão de reality show.
Candidato por um partido nanico, sem nenhum representante no Congresso, Marçal não precisaria ser convidado a participar de debates na TV, segundo a legislação eleitoral. Mas sua presença, encarnando esse personagem, rende audiência.
Agradeço ao amigo Zeca Camargo a sugestão de leitura do artigo de Michael Hirschorn.
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