Um grande avanço na educação, com a criação da Universidade de São Paulo (USP), maior participação da mulher brasileira em todas as esferas da sociedade, inclusive na política, e o empreendedorismo que tornou São Paulo um “país” industrial são alguns dos legados da Revolução Constitucionalista de 1932 para o Brasil de hoje, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão. Embora tenha sido uma guerra de brasileiros contra brasileiros, o conflito reforçou a ideia de unidade nacional. Um paralelo possível do Brasil atual com o de 1932, na opinião dos analistas, é a necessidade de reforçar a importância da Constituição e da democracia. O risco agora, dizem, é de que tenhamos perdido a ousadia que tiveram os paulistas da época.
A Revolução de 32, que completa 90 anos neste 9 de julho, no Estado de São Paulo tinha por objetivo derrubar Getúlio Vargas e convocar uma Assembleia Nacional Constituinte. Getúlio assumira a Presidência do governo provisório nacional após um golpe de Estado decorrente da Revolução de 1930, que derrubou o então presidente da República, Washington Luís, e impediu a posse do seu sucessor eleito em março de 1930, o paulista Júlio Prestes.
Após quase três meses de intensos combates em quatro frentes do Estado, o conflito foi encerrado em 2 de outubro de 1932, com a rendição do Exército Constitucionalista. Até dois dias depois, houve combates. O saldo oficial é de 934 mortos nos 87 dias de conflito, embora os pesquisadores estmam que houve mais de 2 mil vítimas.
O desembargador Octavio Augusto Machado de Barros Filho, coordenador do Museu do Tribunal de Justiça de São Paulo, lembra uma frase do discurso proferido pelo ministro Manoel da Costa Manso, então presidente do TJ, em 31 de agosto de 1932, quando ele afirmou que São Paulo não pegou em armas para se separar do Brasil, mas unicamente para apressar a volta do País ao regime constitucional. "Essa é a lição que não deve ser esquecida, depois de transcorridos 90 anos da Revolução Constitucionalista de 32", afirma.
Continuamos a ser um povo que aspira e respira democracia e liberdade”
Para o historiador da USP Francisco Quartim de Moraes, autor do livro 1932 – A História Invertida e pesquisador do tema, a mobilização popular em torno das pautas dos políticos paulistas que levaram a uma guerra civil fratricida sempre servirá de lição para os brasileiros evitarem um confronto armado em que o “inimigo” é parte do mesmo povo. Segundo ele, “os desafios de nossos dias passam por equilibrar diferentes forças políticas”, afirma.
Rodrigo Gutenberg, diretor da Sociedade de Veteranos de 1932 – MMDC, avalia que o risco de ruptura institucional, hoje, é menor. "Em 1932 era forte a instabilidade no Exército. Hoje, temos um Exército mais organizado e estável", diz. "Porém, as preocupações de como o sistema político deve ser ainda são as mesmas. Continuamos a ser um povo que aspira e respira democracia e liberdade."
A Revolução deixou claro que a população civil e parte da elite não tinham medo do governo central, segundo a pesquisadora carioca Juliana Bezerra, mestre em História pela Universidade de Alcalá, na Espanha. "32 poderia servir para nos lembrar de que o povo brasileiro é capaz de se mobilizar e sabe lutar pela sua liberdade quando a percebe ameaçada", diz.
32 poderia servir para nos lembrar de que o povo brasileiro é capaz de se mobilizar e sabe lutar pela sua liberdade quando a percebe ameaçada”
RUMOS PARA O PAÍS
O conflito de 32 abriu as portas para outras mudanças no Brasil de então. O esforço dos empresários e dos próprios cidadãos paulistas para suprir de armas, munição e víveres os combatentes entrincheirados em pontos distantes da capital fez com que o Estado desenvolvesse a logística do transporte, já que o trem foi muito utilizado nos combates, além da aviação e da indústria em geral.
"Um fato interessante é que o próprio Exército acabou utilizando para si as experiências de guerra de montanha, tão comum em 1932. Afinal, muitos dos soldados que lutaram contra São Paulo cerca de uma década depois seguiram até a região montanhosa da Itália para lutar contra os nazistas (na 2ª Guerra Mundial)", lembra o pesquisador Eric Apolinário, diretor do Museu Histórico de Itapira e autor do livro Inverno Escarlate sobre as batalhas de 32 no front Leste.
A mobilização geral para a guerra, que envolveu desde catedráticos das universidades até juízes, além de jornalistas, industriais e comerciantes, acabou “turbinando” os conhecimentos e a economia no Estado, que na época tinha uma população de 7 milhões de pessoas – hoje são 42 milhões.
"Eram pessoas que, na revolução, faziam de tudo, desde serviços de retaguarda até atendimento a feridos. A indústria paulista se organizou para construir inúmeros equipamentos de guerra, munições, capacetes de aço, máscaras de gás, granadas de mão", diz Gutenberg, do MMDC.
A pesquisadora Juliana Bezerra destaca o papel das mulheres, que se organizavam para fazer trabalho social de amparo às famílias carentes, costurar fardas e servir na enfermagem. Também atuaram em fábricas e algumas até foram à luta. "Hoje a mulher brasileira tem um protagonismo inegável, algo que engatinhava na década de 1930. A conquista feminina estimulou outros setores, como o movimento da população LGBTIQIA+, a reivindicar direitos, algo impensável naquela época", diz a professora.
Responsável pela direção do departamento de assistência aos feridos na capital, Carlota Pereira de Queiroz foi eleita a primeira deputada federal do Brasil no ano seguinte à guerra. Algumas conquistas daquele período, como o sufrágio feminino, são praticamente irreversíveis, avalia Quartim de Moraes. "Depois dos anos 30, a participação das mulheres brasileiras em todas as esferas da sociedade, mas especialmente na política, representou importante avanço", afirma.
Outro fruto da revolução foi a construção da identidade paulista. "Ao longo do século 20, o levante de 1932 foi várias vezes retomado para simbolizar essa paulistanidade", diz o historiador. Na década de 1930, São Paulo vivia uma efervescência cultural e, embora derrotado em combate, destaca ele, o Estado se impôs pela educação, com resultados como a criação da Universidade de São Paulo. A USP nasceu em 1934 do ideal do jornalista Julio de Mesquita Filho, então diretor de O Estado de S. Paulo – que já defendia uma reforma do ensino havia cerca de dez anos.
"A criação da USP foi um dos muitos frutos da Revolução. É hoje uma das principais instituições de ensino e pesquisa do Brasil e da América Latina", afirma Rodrigo Gutenberg. No QS World University Ranking, divulgado em junho, a universidade aparece entre as 120 melhores do mundo.
VIGILÂNCIA
Juliana aponta ainda a importância da Constituição como principal legado. "A Constituição de 34 é o fato determinante, pois Getúlio Vargas governava desde 1930 de maneira provisória. A situação era insustentável, pois à falta de uma Carta Magna, Vargas exercia o poder de maneira não democrática."
O pesquisador Eric Apolinário avalia que o movimento constitucionalista ensinou ao País a força da manifestação popular. "“Em muito pouco tempo, teve a adesão de todas as classes, inclusive o operariado, que seguiu para as trincheiras, associações religiosas, mulheres, jovens e adolescentes. Todas as cidades se mobilizaram enviando voluntários, donativos, agasalhos, alimentos e dinheiro."
A principal lição de 32 foi a ideia de que o povo unido, congregado e se manifestando, consegue fazer com que prevaleçam seus direitos, embora atento aos seus deveres, segundo Gutenberg. "A segurança com suas eleições, com a prática da democracia, das liberdades individuais e do sufrágio universal, inerentes a um sistema de governo democrático, torna-se a grande aspiração da população brasileira. Uma das maiores lições da Revolução de 1932 é a importância do Estado democrático de Direito."
Quartim de Moraes ressalta, porém, que é preciso manter a vigilância, como fizeram os paulistas de 32, para evitar retrocessos em conquistas, como as trabalhistas, que vieram com a Revolução, mesmo com a derrota. "Infelizmente o clima de polarização de nossa sociedade atual guarda similaridades com a polarização dos anos 30. Nos resta a esperança de que o Brasil de agora não entre em uma batalha similar."
ANÁLISE
SECRETÁRIO-GERAL DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E SÓCIO DA PENTEADO MENDONÇA E CHAR ADVOCACIA
SÃO PAULO PERDEU A REVOLUÇÃO, MAS GANHOU A GUERRA
A Revolução de 1932 completa 90 anos. Em julho daquele ano, os paulistas foram à guerra para depor Getúlio Vargas. O que estava em jogo eram as ameaças às conquistas da população do Estado, social e economicamente muito à frente das demais unidades da Federação e sob risco de retrocesso, pela forma como São Paulo era tratado pelo governo federal.
São Paulo perdeu a Revolução, mas, no campo do desenvolvimento socioeconômico, ganhou a guerra. A grande vitória veio com a criação da Universidade de São Paulo (USP), com a missão de formar uma elite preparada ética e profissionalmente para a política, os negócios, a educação e a saúde da população.
O resultado foi o Estado se distanciar ainda mais da realidade nacional. Este cenário ainda é válido e se destaca na comparação com a média do País. A exceção é o campo político, que se aproximou da realidade brasileira.
Em 1932, as bandeiras eram a liberdade de empreender, a formação intelectual e profissional e um sistema de saúde pública de qualidade. Sob estes aspectos, o Brasil se afastou dos ideais de 32. Na comparação com a segunda metade da década de 1990, o País regrediu. Todos os indicadores estão piores – com ênfase nos políticos – e não há nada que indique mudança nos próximos anos.
EXPEDIENTE
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