Muita gente tem afirmado que a democracia está sob ataque, que Bolsonaro está perto de dar um golpe (se é que já não deu, se é que ele não "é o próprio golpe", como defendem alguns) e por isso é urgente defender as instituições.
Outros preveem que bolsonaristas, depois da eleição, tentarão uma fanfarronice similar à invasão do Capitólio, nos Estados Unidos.
Não sei o que se passa na cabeça desse presidente: se ele vai dar um golpe eu não tenho a menor a ideia.
E se a ameaça à democracia significar uma dúzia de malucos vestindo capacetes com chifres tentando invadir o Congresso, para desistir assim que a polícia chegar, pelo menos o mal é identificável e controlável (e merecedor de boas piadas).
Mas há forças antidemocráticas mais poderosas, que corroem nossa democracia aos poucos e causam danos mais profundos que um ou outro mandatário. Dispersas, elas são mais difíceis de serem identificadas ou combatidas. Não rendem manifestos ou cartas de repúdio.
Uma delas é o "rent-seeking", a pressão política de minorias em buscas de privilégios.
Como grupos pequenos e homogêneos se organizam com mais facilidade, conseguem com frequência impor seus interesses contra a vontade de grupos maiores com interesses difusos.
Por exemplo, a maior parte dos brasileiros deve ser a favor de menos alíquotas de importação, mais concorrência no setor de ônibus interestaduais, avaliação de desempenho de professores de escolas públicas e fim de privilégios da elite do funcionalismo.
Mas os grupos de pressão dessas áreas são mais organizados. Emplacam medidas contrárias à vontade da maioria: mais taxas de importação (para o fabricante nacional continuar vendendo produtos ruins e caros por aqui), barreiras a startups de fretamento de ônibus, avaliações de desempenho de mentirinha nas escolas públicas e manutenção dos penduricalhos no salário de funcionários públicos.
Ao atender privilégios de tantos grupos, a democracia se transforma no seu oposto: o sistema de governo de minorias organizadas. Resulta no "capitalismo de compadres", um motor de desigualdade. O poder não "emana do povo", mas de quem tem mais amigos em Brasília.
Outra força que vem minando a legitimidade da nossa democracia é a pressão para tirar decisões das mãos dos eleitores e transmiti-las às cortes.
Como observa o diplomata Gustavo Maultasch em "Contra Toda Censura" (um espetáculo de livro lançado dias atrás) esse fenômeno ocorre principalmente quando a elite urbana e escolarizada tem preferências diferentes da maioria dos eleitores.
É o caso de aborto, porte de armas e maioridade penal. Nesses temas, a elite "democrática" tenta mover a instância decisória para o Judiciário. A vontade popular de repente é estigmatizada, perde a importância. E muitos acham superdemocrático o STF se atribuir o papel de legislador.
Às 23h59 o ativista assina a carta em defesa da democracia; à 0h pede ao STF derrubar decisões legais tomadas por representantes do povo.
Às 23h59 o democrata defende a independência e a harmonia dos poderes; à 0h concorda com a decisão de Fachin de suspender a isenção de impostos de importação de armas (apesar de pertencer ao Executivo a decisão sobre alíquotas de importação).
É difícil acreditar que essas duas forças antidemocráticas vão arrefecer nos próximos anos. Com o autor de "rachadinhas" ou com o líder do petrolão, nossa democracia ainda vai precisar de muitos outros manifestos em sua defesa.
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