Não se deixe levar pelas críticas que virão a seguir: vale a pena assistir a minissérie sobre psicodélicos "Como Mudar Sua Mente", de Michael Pollan, autor do best seller de mesmo título. É bem boa --mais pelo que mostra do que pelo que deixa de mostrar, como ayahuasca e ibogaína.
São três os pontos fortes no que o documentário apresenta para o público. Primeiro, e mais importante, os depoimentos tocantes de pessoas com transtornos mentais profundos que se curam com psicodélicos. É com justiça que ganham o primeiro plano, em detrimento das experiências do autor com as substâncias.
Depois vem a admirável pesquisa de arquivo, que desenterrou várias imagens e cenas da história da psicodelia, antes e depois das proibições baixadas nas décadas de 1970 e 1980. Por fim, entrevistas com personagens marcantes dessa história, como as de Ann Shulgin (morta no último dia 9), Rick Doblin e Annie e Michael Mithoefer.
São quatro episódios, dedicados respectivamente a LSD (ácido), psilocibina (cogumelos "mágicos"), MDMA (ecstasy) e mescalina (cactos peiote). O quarto e último capítulo não deriva daquele livro de 2018, mas da obra seguinte de Pollan, "Esta é sua Mente sob o Efeito de Plantas" (2021).
Nada melhor que o LSD para introduzir o contexto e retraçar o percurso que estigmatizou psicodélicos. Após descobertas suas propriedades lisérgicas em 1943, pelo químico Albert Hofmann, a droga foi amplamente distribuída pelo laboratório suíço Sandoz a quem quisesse fazer experimentos científicos e clínicos com ela.
Milhares de pacientes tomaram o ácido para se tratar, legalmente, nas décadas de 1950 e 1960, com bons resultados. Até a CIA se interessou pelo LSD, e é quase certo que foi responsável, na origem, por sua adoção pelo movimento hippie. A voga contestatória assim deflagrada levou à proibição e, em 1970, à Guerra às Drogas de Richard Nixon.
Essa pré-história científica dos psicodélicos precisa ser conhecida, para que o público entenda por que se fala hoje de um renascimento psicodélico e que a pesquisa com essas substâncias poderosas de uso milenar foi abortada por motivação política autoritária.
A minissérie decola de verdade no segundo capítulo, sobre psilocibina. Outra história rica, contada com copioso material de arquivo, mas é com o depoimento de um paciente com transtorno obsessivo compulsivo (TOC) que o documentário se revela cativante.
O rapaz conta ter sofrido muito, na adolescência, com a morte de um amigo próximo. Sob efeito do psicodélico, viu-se caindo com ele no abismo, até que o outro se estatela no chão, enquanto o psiconauta segue em queda, atravessando o chão que lhe parecia concreto.
Quando chega ao piso de outra realidade, renasce como muda de árvore que cresce e, como planta, contempla a própria família a passear. Compreende então a desimportância das manias que o afligem. Com uma única dose de psilocibina, os sintomas de TOC ficam meses sem reaparecer.
O episódio seguinte, sobre MDMA, traz o testemunho mais chocante, de uma mulher com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). O irmão morrera de overdose, a mãe matou duas pessoas e depois suicidou-se, a moça viu sua casa arrasada pelo furacão Katrina, depois foi estuprada, engravidou e abortou.
Com ajuda do MDMA, consegue reconstruir a vida. Parece milagre, e com efeito a série peca por veicular visão talvez excessivamente positiva do potencial dos psicodélicos para tratar os males da mente.
Pollan faz ressalvas, verdade. Menciona que não devem ser usados por pessoas com tendências psicóticas e que nem todos se beneficiam nos estudos clínicos, mas alguma ênfase adicional sobre limitações viria a calhar.
Outro ponto fraco é a perspectiva estreita, norte-americana. Câmeras e microfones só deixam o território dos EUA em curtas excursões ao México, para falar dos danos culturais e ecológicos da descoberta dos cogumelos e cactos alteradores da consciência pelos conterrâneos de Pollan.
O documentário abre exceção também para o Reino Unido, com a excelente entrevista com Ben Sessa, do Imperial College de Londres, explicando o mecanismo de ação de MDMA. Nada que não soe familiar a americanos, sotaque inclusive.
É de lamentar que a minissérie passe ao largo de outros continentes psicodélicos, como os domínios da dimetiltriptamina (DMT), na América do Sul, e da ibogaína, originária da África e muito usada no Brasil para tratar dependência química. Salvo engano, a palavra "ayahuasca" só é pronunciada uma vez em quase quatro horas.
Quem já teve oportunidade de viajar com psicodélicos poderá incomodar-se com animações e efeitos deformadores de imagens a que o documentário recorre para ilustrar depoimentos sobre experiências de doentes e do próprio Pollan. Não é raro que pareçam quase infantis, se não kitsch.
Mais incômodo pode surgir com as menções de Pollan a usos "irresponsáveis" de psicodélicos, seja no tempo dos hippies, seja no uso adulto clandestino ("recreativo", diz quem se alinha com a proibição legal ainda vigente). Decerto eles não são isentos de riscos psicológicos, e mesmo físicos, ainda que pequenos e controláveis, mas as perorações soam algo moralistas.
São defeitos dignos de nota. Quem sabe, o preço a pagar para tornar viável um produto visual com apelo para um público amplo e ingênuo sobre psicodélicos, quando não preconceituoso, após meio século de propaganda proibicionista.
Isso não justifica, entretanto, que se deva privilegiar a medicalização à americana dos psicodélicos. Eles têm história e raízes muito mais profundas fora dos EUA.
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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira"
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