domingo, 10 de julho de 2022

A casa abandonada e a história, José Henrique Mariante, FSP

 "Parentes da 'mulher da casa abandonada' são investigados por abandono de incapaz"; "Entenda por que a mulher da casa abandonada não pode ser presa"; "A Mulher da Casa Abandonada: como está a saúde de cães resgatados"; "A Mulher da Casa Abandonada: saiba como estão os personagens do caso"; "Por que o FBI não pode prender a 'mulher da casa abandonada?"; "A Mulher da Casa Abandonada: Veja novas fotos do interior da mansão"; "'Acabou a paz': o impacto do podcast da 'casa abandonada' em Higienópolis".

"A Mulher da Casa Abandonada" é um podcast produzido pela Folha, de autoria do jornalista Chico Felitti. A explicação só serve para quem estava em Marte nas últimas semanas. A novela "true crime", que conta a incrível e hedionda história de um casal que escraviza uma mulher, explodiu em audiência sem mesmo ter chegado ao fim, e deixou de ser uma reportagem do jornal para habitar títulos de outros muitos sites jornalísticos (uns nem tanto), como os do parágrafo anterior, e de um oceano de postagens em redes sociais. E as preocupações de leitores e moradores do bairro paulistano onde a casa está abandonada. Ou estava.

"A gente imaginava que poderia ser grande, mas não desse jeito. É um marco do podcast no Brasil", afirma Magê Flores, editora de Podcasts da Folha e coordenadora do projeto escrito por Felitti, um colaborador antigo do jornal, conhecido pela rara capacidade de desvendar personagens absolutamente incomuns no meio da paisagem dura de São Paulo. Gente anônima ou nem tanto, para quem a maioria olha de lado. É dele a reportagem que virou livro sobre o Fofão da Augusta, credencial que jornal e jornalista usam na apresentação do podcast.

Felitti é o observador que narra a história em primeira pessoa. Sua curiosidade em torno de uma casa visualmente abandonada, no bairro em que mora, e da excêntrica proprietária transporta os ouvintes para um enredo que aos poucos vai ganhando contornos cinematográficos. A descrição dos capítulos está publicada na Folha desde o início da série. Os inúmeros detalhes, porém, consomem a audiência. Rapidamente, a curiosidade já não é do repórter apenas. Isso explica quase todo mundo sair dos primeiros episódios vasculhando o Google atrás de mais informações. E, obviamente, o sucesso do programa.

A coisa, no entanto, já está em outro patamar. O policialesco Cidade Alerta mantinha link ao vivo na frente da casa na última semana. O departamento de cenografia da TV Record montou uma réplica do interior da residência, a partir de fotos e informações retiradas de um volumoso inventário da família, e o apresentador em certo momento disse ter recebido uma informação exclusiva de sua própria mãe. Um garoto passou a narrar no Instagram a convivência com o vizinho de apartamento, que seria filho da protagonista. A história, claramente, já saiu das mãos de Felitti e da Folha, mas e as consequências?

Ilustração mostra microfone preto entre parênteses, colchetes e chaves
Carvall

"Tomamos todos os cuidados, mas é uma história que ficou escondida por muito tempo, causa comoção e, infelizmente, esse ímpeto de justiça com as próprias mãos", diz Magê. "E que continua acontecendo agora, na nossa frente."

PUBLICIDADE

Um leitor escreveu ao ombudsman para saber se o jornal está consciente dos riscos que a mulher e a casa correm em tempos conturbados como os atuais, tão violentos e polarizados. Uma leitora, moradora de Higienópolis, se queixou da presença ruidosa de curiosos e da mídia, das tentativas de invasão, pichações e escaladas de árvores do entorno, da "quebra da segurança coletiva em homenagem ao direito a informação". Questionada, a Secretaria de Redação diz enfatizar, na abertura de cada episódio, "o caráter técnico e jornalístico da reportagem de notório interesse público e o repúdio a qualquer forma de perseguição". Também por isso o jornal estaria sendo "cuidadoso ao noticiar os impactos da veiculação do documentário no cotidiano do bairro, embora sem ignorar que esses efeitos existem e merecem tratamento jornalístico".

Folha, no entanto, fez uma única reportagem até aqui sobre o fenômeno, quando noticiou também o resgate de animais da casa no último fim de semana. É muito pouco.

"A Mulher da Casa Abandonada" mexe com o inconsciente da cidade, com seu passado aristocrático e racista mal resolvido. Higienópolis, cenário principal da novela, é o lugar que um dia temeu uma estação de metrô e a gente diferenciada que viria pelos trens. Em que o delegado deputado abateu bandido a tiros em plena avenida e foi aplaudido. E, desde o advento do podcast, o bairro da milionária que vive em petição de miséria, dentro de um casarão, assombrada por sua própria existência. Não entender que tudo isso faz parte de um mesmo enredo é recusar a história. O jornal não pode se dar tamanho luxo.

Nenhum comentário: