A Marcha para Jesus acontece desde 1993. Todos os presidentes que o Brasil teve depois desse ano de estreia foram convidados para se juntar a seus idealizadores, o apóstolo Estevam Hernandes e a bispa Sonia Hernandes.
Fernando Henrique Cardoso (PSDB) não quis. Lula (PT) chegou a instituir o Dia Nacional da Marcha para Jesus, mas em oito anos de Presidência nunca deu as caras no maior evento do calendário evangélico do continente. Dilma Rousseff (PT) também não foi. Michel Temer (MDB) ficou pouco tempo no cargo e não o usou para marchar com o casal Hernandes.
Em 2019, no primeiro ano de seu mandato, Jair Bolsonaro (PL) se tornou o primeiro inquilino do Palácio do Planalto a comparecer ao evento conduzido pelos fundadores da Renascer em Cristo, mas que mobiliza dezenas de igrejas num país cada vez mais pentecostal.
O presidente passa longe da unanimidade no segmento, como mostra pesquisa Datafolha de junho que o coloca só um pouco à frente da maior pedra no seu caminho rumo à reeleição. Tem 40% do eleitorado evangélico com ele, contra 35% que declaram voto em Lula. Esse bloco cristão responde por 27% da população adulta brasileira.
Mas evangélicos ainda são uma trincheira de popularidade para o chefe do Executivo federal, dando-lhe números mais generosos do que a média geral. O escândalo no Ministério da Educação que envolveu dois pastores não pareceu escangalhar sua imagem perante esse público.
Em compensação, Bolsonaro vem intensificando sua participação em atos religiosos, inclusive em versões regionais da Marcha para Jesus. Neles, martela a narrativa do "bem contra o mal". Coloca-se, claro, no lado nobre da causa.
A caminhada que lotou avenidas de São Paulo com centenas de milhares de fiéis neste sábado (9) esbugalha o avanço da direita sobre os evangélicos. Uma bem-sucedida tentativa de monopolizar o imaginário evangélico nacional, como se apenas os políticos de direita se importassem com os crentes.
É a reprise de um discurso que entrou na moda neste quadriênio bolsonarista: o de que um cristão de verdade jamais é de esquerda. A fórmula tem adesão de líderes influentes, como o bispo Edir Macedo e o pastor Silas Malafaia. Que tenham os dois apoiado o PT no passado é uma amostra de como o campo progressista deixou escorrer por suas mãos um diálogo que já conseguiu estabelecer com a cúpula pastoral do país.
Resta ver se é uma batalha perdida ou a guerra toda. Uma eventual vitória lulista, hoje a hipótese mais provável segundo as pesquisas eleitorais, deixará mais claro se o distanciamento entre PT e evangélicos é definitivo ou se ainda há margem de manobra para evitar um repeteco de 2018, quando todos os grandes pastores do Brasil respaldaram Bolsonaro.
Estevam Hernandes, é verdade, não compactua com a premissa de que o verdadeiro cristão não pode se reconhecer esquerdista.
"Acho que isso não tem nada a ver do ponto de vista espiritual", diz à Folha. "Primeiro porque a Bíblia fala que Deus não faz distinção de pessoas. As pessoas têm suas opções. Agora, não quer dizer que porque o cara é de esquerda Deus vai riscar ele do céu, que ele não possa estar na igreja."
Mas também não esconde a mágoa com governantes que por anos esnobaram o evento que idealizou três décadas atrás, após ter tido o que chama de sonho profético. "É uma falha muito grande", afirma sobre a ausência de FHC, Lula, Dilma e Temer em edições anteriores.
"Por exemplo, nós, no governo Lula, insistimos porque ele assinou a lei da Marcha. Eu orei por ela [Dilma]." Nessa hora, bispa Sonia interrompe o marido: "Foi antes de ela se candidatar, ela estava com câncer".
E nada de Dilma na marcha nos cinco anos e meio em que chefiou o Planalto, até sofrer um impeachment apoiado por muitos desses mesmos evangélicos que antes fizeram campanha por ela —como o ex-senador Magno Malta e o deputado Marco Feliciano, os dois presentes na caminhada de 2022.
"Bolsonaro, nós convidamos e ele veio", finaliza Estevam. Veio e levou uma penca de aliados, como a deputada Carla Zambelli, o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e seu apadrinhado para o governo de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Em cima do trio elétrico, amigos do presidente sugeriram mais "quatro anos", uma nada discreta alusão à sua busca pela reeleição.
Claro que o bailado eleitoral não se resume a pastores ressentidos com a pouca atenção dispensada por progressistas. Há todo um jogo de interesses políticos, e também afinidades ideológicas, na mesa. As chamadas pautas identitárias não por acaso ganharam músculos na mesma década em que lideranças evangélicas foram se afastando de candidatos de esquerda.
Mas, se quer voltar a ter relevância num grupo religioso que se diferencia dos demais pelo alto engajamento de seus membros, não faria mal à esquerda ocupar mais os espaços de fé.
Acertadamente, células cristãs progressistas vão à Parada LGBTQ+ para reforçar que nem todos os evangélicos são contrários à comunidade. Cadê eles na Marcha para Jesus, para mostrar que muitos crentes não andam juntos com o bolsonarismo? Não é esse o recado que desejam passar?
Deu para ver, aqui e acolá, demonstrações solitárias de apreço pela causa lulista, como um punhado de fiéis que fez o "L" de Lula quando Bolsonaro entrou no palco. Ainda assim, nenhuma representação mais institucional da esquerda estava lá, como não esteve em anos prévios.
Lula tem dito que quer se enturmar com os evangélicos da base, sem necessariamente recorrer aos pastores que hoje torcem o nariz para ele. O ex-presidente acerta ao lembrar que essa base está também nas pequenas igrejas de periferia. São elas que formam boa parte da malha evangélica, até mais do que denominações maiores, como a Universal, abertamente antipática à candidatura petista.
Acontece que esses fiéis vão à Marcha, seguem megapastores em redes sociais, veem a Record do bispo Edir Macedo. Se encontram apenas a direita ali, como vão se convencer de que a esquerda se importa com eles? Enquanto isso, Bolsonaro declara para uma multidão a perder de vista: "Você sabe, vivemos num país laico, mas o seu presidente é cristão".
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