Não é comum a troca de escritores de uma temporada para outra de uma série, menos ainda se ela estiver sendo bem-sucedida. É compreensível, portanto, que os fãs de "Pico da Neblina" estivessem apreensivos com as mudanças na sala de roteiro.
A produção da HBO passa no teste. Não que a saída de Chico Mattoso e parte da equipe não tenha efeito —ela teve. Ainda que inferior à temporada inicial, entretanto, este segundo ano da produção a mantém como uma das melhores séries feitas no Brasil recentemente.
Os diálogos bem dosados continuam lá, com as suas gírias paulistanissímas, enquanto o tom de crítica social mordaz esmaeceu um pouco.
O Brasil fictício onde a maconha foi liberada pelo Congresso e seu impacto sobre o tráfico, o crime, o comércio, as empresas já nos foi apresentado por meio da história dos amigos Biriba (Luís Navarro) e Salim (Henrique Santanna), e a nova temporada parte para questões mais individuais.
O primeiro foi absorvido pelo novo (e ultrapublicitário) mercado legal, o segundo está cada vez mais embrenhado nas fileiras do crime organizado, sem que as duas coisas sejam totalmente dissociadas. No meio está Vini (Daniel Furlan), filho de empresário que faz de Biriba seu sócio e logo cai em desgraça.
O crime pequeno, claro, é trucidado pelo crime organizado, seja aquele comandado por grandes organizações fincadas em favelas e bairros pobres, seja aquele que se pratica em jantares e mesas de negócios de escritórios luxuosos. Esse era o mote em 2019.
Agora essa história fica no fundo, junto com a maconha. Ganha terreno o drama familiar dos dois amigos, cada um a seu modo, e a trama policial que se desenrola em torno do personagem CD (Dexter).
Casado com a irmã mais velha de Biriba, Kelly (Leilah Moreno), CD é oficial de média patente em uma organização à la PCC. Está na mira da polícia e de seus correligionários, e todos se voltam para seu cunhado como forma de atingi-lo mais rápido.
Por causa das atuações excepcionais de Dexter e Moreno, ambos egressos da música, é difícil dar atenção a qualquer outro aspecto da trama.
A relação dos dois, com a evolução da ambição pessoal de Kelly, ganha a cada episódio novas camadas —dramática, cômica e também realista em relação a como se espraia um relacionamento tóxico e seus mecanismos econômicos e familiares. Eventualmente, no limiar do suspense.
Talvez por estar voltada também a um crescente mercado externo, contudo, a série perde os traços que a tornavam tão representativa do Brasil. Algo do humor resiste, mas as cenas emprestam cada vez mais elementos visuais e de edição de "Breaking Bad", "Sopranos" e outros sucessos do gênero, o que reforça o crescimento do personagem CD como o anti-herói da vez.
Há mais de meia temporada pela frente, ainda, e não dá para saber se "Pico da Neblina" enveredará pela redenção que tanto agrada ao público brasileiro. Se for se espelhar nas pares americanas, não.
A segunda temporada de 'Pico da Neblina' está na HBO, com novos episódios aos domingos
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