Patrícia Villela Marino
Saúde e segurança deveriam ser direitos comuns a todos, conforme garante a Constituição, não um privilégio exclusivo da elite branca.
O Brasil está cada vez mais dividido. Vivemos uma escalada descontrolada de violência construída a partir do racismo cultural, segregador e secular, que teve origem na colonização escravagista. A população negra é a maior do país —56% dos 212 milhões de brasileiros— e também a mais vitimizada —78% das pessoas assassinadas à mão armada são negras, segundo pesquisa do Instituto Sou da Paz realizada em 2019. Nove de cada dez brasileiros não possuem condições de pagar um plano de saúde, de acordo com levantamento da Ipso.
Nos últimos dois anos, sob a justificativa de que o brasileiro precisa se proteger, o Governo Federal flexibilizou a compra de armas por meio de dois decretos sucessivos, que aqueceram imediatamente o mercado.
Entre fuzis, carabinas, metralhadoras e submetralhadoras, foram importadas 1.211 armas em 2020. No ano seguinte, esse número pulou para 8.160, um aumento de 574%. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a elevação de circulação de armas interrompeu dois anos consecutivos de queda nos índices de homicídios, que nesse período subiu quase 5%.
Mesmo assim, tramita no Senado um PL (projeto de lei 3.723/2019) que flexibiliza as regras do porte e do registro de armas.
Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro e a bancada evangélica impedem o avanço do PL 399/2015, que regulamenta o cultivo e a comercialização do cânhamo, nome dado a um tipo de Cannabis usado pela indústria que tem apenas 0,3% THC (tetrahidrocanabidiol, substância psicoativa da planta). É uma planta que não serve para o tráfico.
Com comprovada capacidade terapêutica, a Cannabis é responsável por um ciclo sustentável de negócio, totalmente ESG (sigla em inglês que significa governança ambiental, social e corporativa), que começa nos campos de cultivos, de onde sai como matéria-prima para diversas indústrias, como a farmacêutica, a de alimentos, a têxtil e a de construção.
São negócios que geram investimentos de impacto no mercado de ações da Bolsa de Nova York e de Toronto. Nos EUA, essa nova economia foi considerada essencial durante o lockdown provocado pelo coronavírus. Assim como supermercados e farmácias, os dispensários de Cannabis estavam na lista dos negócios com permissão para funcionar durante o período em que o mundo estava trancado em casa para se proteger da contaminação.
Os norte-americanos reconhecem o impacto positivo da Cannabis na saúde, no tratamento dos sintomas da depressão, do pânico e da epilepsia e nas dores do câncer, entre tantas outras doenças. Nos EUA, o óleo de CBD pode ser comprado com quase a mesma facilidade com que se compra um analgésico.
Infelizmente, essa não é a realidade brasileira.
Aqui, os pacientes pagam até R$ 1.200 por um vidro de 30 ml. A maioria, sem poder de compra, recorre à Justiça. Alguns para conseguir liminar para o autocultivo, outros para que o governo custeie o tratamento, que em muitos casos é o único a resolver sintomas graves de doenças raras. Ao contrário do projeto das armas, o PL 399 dá qualidade de vida.
O Brasil tem tudo para a economia da Cannabis deslanchar. É um país com vocação para o agronegócio, com extensão territorial e clima para ser líder da nova commodity.
Mesmo sem legislação específica, farmacêuticas já produzem CBD. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou a comercialização de 19 produtos nas farmácias brasileiras. E o mais importante: temos uma lei pronta, resultado de um ano de pesquisa de uma comissão de deputados que viajaram pelo mundo para construir uma regulação abrangente e segura que dê mais acesso aos medicamentos de Cannabis.
Enquanto o projeto das armas tramita no Senado, o PL 399/2015 continua engavetado e ameaçado de veto pelo presidente. A boa notícia é que estamos a poucos meses da eleição, na hora certa de escolhermos legisladores afinados com as questões humanitárias e com o desenvolvimento baseado na ciência e na tecnologia.
Vamos dizer sim a vida e não a morte.
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