Um projeto de lei recém-aprovado por parlamentares da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) tem preocupado pesquisadores e ambientalistas. Trata-se do PL nº 614/2018 que proíbe a pesca comercial dos tucunarés no estado para garantir a manutenção da espécie. Aos olhos leigos, a notícia pode até parecer boa. Só que uma informação muda todo esse contexto: os tucunarés são espécies exóticas invasoras em São Paulo, ou seja, não pertencem naturalmente aos rios paulistas e sua presença – ainda mais sem o controle exercido pela pesca – pode representar uma grande ameaça aos peixes nativos. Este é o alerta de pesquisadores que criticam a proposta, que aguarda análise, para sanção ou veto, do governador Rodrigo Garcia (PSDB).
O projeto é de autoria do deputado estadual Carlão Pignatari (PSDB), com coautoria de Gil Diniz (PL), e prevê a proibição da pesca comercial do tucunaré-amarelo (Cichla kelberi) e do tucunaré-azul (Cichla piquiti) com a finalidade de preservar as espécies e promover o repovoamento destes peixes nos rios e represas do estado. Além disso, a proposta visa fortalecer a pesca esportiva, que segue permitida pelo texto.
Além de serem espécies exóticas e invasoras no estado de São Paulo – são nativas das bacias Amazônica e Tocantins-Araguaia –, eles são peixes que podem chegar a até 1 metro de comprimento, com alto potencial de predação e de piscivoria. Ou seja, eles comem peixes menores. Um aumento na população de tucunarés pode ter impactos diretos e severos nas populações de peixes nativos, principalmente os de menor porte.
“Recentemente publicamos um artigo que reuniu informações de vários projetos e comprovou, numa grande escala geográfica [América do Sul], os impactos da introdução de tucunarés, por serem muito vorazes e piscívoros. Onde tem maior densidade de tucunarés introduzidos, você tem uma menor riqueza de espécies nativas e menor abundância também, especialmente das espécies de peixes de pequeno porte”, explica o especialista em peixes, Luciano Neves dos Santos, do Laboratório de Ictiologia Teórica e Aplicada (LICTA) da UNIRIO.
Representantes da comunidade científica em conjunto com pescadores assinaram uma nota de repúdio contra o projeto que “não tem qualquer respaldo jurídico e científico, representando lamentável retrocesso legislativo por ignorar as recomendações técnicas sobre o assunto”. O documento é assinado por mais de 90 representantes de universidades, institutos de pesquisa e de associações de pescadores.
“Se sancionada, a Lei 614 trará severas e irreversíveis implicações para a conservação da biodiversidade nativa do Estado de São Paulo, com efeitos negativos sobre a sustentabilidade da pesca e preservação dos recursos naturais. A comunidade científica se coloca à disposição das autoridades legislativas para prestar quaisquer esclarecimentos que assegurem a integridade, a conservação e a manutenção das espécies de peixes e de seus estoques pesqueiros no Estado de São Paulo”, diz trecho do documento (leia na íntegra).
A Sociedade Brasileira de Ictiologia reforçou a crítica ao projeto, em nota técnica publicada no dia 14 de julho. O documento lista as ameaças impostas pelo projeto de lei e reforça que “as consequências geradas com a perda de biodiversidade nativa são ignoradas ou mesmo mascaradas no PL614/2018 pelos ganhos econômicos de curto prazo associados à promoção da pesca esportiva, mas que culminam na perda de serviços ambientais essenciais (e.g., declínio da pesca comercial e de subsistência, perda de sustentabilidade da pesca, perda de peixes ornamentais, disseminação de vetores, parasitas e doenças, e perda de funções ecossistêmicas sustentadas por espécies nativas)”.
O especialista em peixes reforça ainda que a proposta estadual vai de encontro com a legislação federal do Brasil de proteção à fauna nativa. “O Brasil é signatário da Convenção da Diversidade Biológica desde 1992, nós temos várias leis de proteção da fauna nativa no Brasil, leis contra invasão biológica… existe um arcabouço legal, em nível federal. E essa legislação estadual, ela cria quase que um sistema de proteção de tucunarés não nativos, introduzidos no estado de São Paulo, e com isso fere várias leis à nivel nacional”, explica Luciano.
Existem 16 espécies de tucunarés reconhecidas pela ciência. Ele explica que a vinda dos tucunarés para a região sudeste, fora do seu habitat natural, foi consequência de uma percepção equivocada, que perdurou até o início dos anos 2000, de que, como as represas causavam impacto na ictiofauna, era necessário preencher esses nichos vagos com espécies que pudessem ocupar esses ecossistemas de águas paradas. “Isso fomentou a introdução de espécies não nativas nessas regiões, inclusive por agências governamentais e concessionárias de hidrelétricas, principalmente nessas bacias do sudeste, sul, onde tinham essas represas”, completa.
Posteriormente, com a maior compreensão científica sobre os efeitos dos tucunarés sobre a biodiversidade nativa, essas introduções “institucionalizadas” foram suprimidas. Os tucunarés, entretanto, ainda que em menor velocidade, seguem ganhando novos territórios. Seja pelos interesses dos setores ligados à pesca esportiva, seja pela própria disseminação natural dos peixes pelas conexões fluviais. “Depois que o tucunaré chega num determinado sistema, é mais fácil ser transportado e se disseminar”, resume Luciano.
Em sua justificativa, o deputado Carlão Pignatari defende que a proteção dos tucunarés visa fomentar o turismo e a economia nos municípios, através do ordenamento da pesca esportiva. O parlamentar cita ainda o tucunaré, de forma equivocada, como “integrante da fauna silvestre local”. Pois, segundo ele, o projeto tem como objetivo “compatibilizar o desenvolvimento econômico e social com a proteção da qualidade do meio ambiente e o equilíbrio ecológico, reconhece-se o Tucunaré, integrante da fauna silvestre local, como um dos animais símbolo da pesca esportiva nacional e mundial e também patrimônio natural”.
Ele alega ainda que a proibição da captura e comercialização dos tucunarés “não influenciará na renda dos pescadores profissionais, posto que existem diversas outras espécies de peixes nos rios e represas do Estado”.
O projeto de lei
O PL 614/2018 tramitava em regime de urgência na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP). Em fevereiro deste ano, as comissões de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e de Finanças, Orçamento e Planejamento aprovaram um substitutivo ao projeto. Este texto foi votado e aprovado pelos parlamentares na ALESP em sessão extraordinária no final de junho (29). Com isso, o PL seguiu para o governador, a quem cabe o veto ou a sanção do mesmo. Caso ele não se pronuncie sobre a proposta dentro do prazo de 15 dias úteis, a proposta é automaticamente sancionada, de forma integral, pela presidência da Alesp.
Se sancionada integralmente, a proposta irá proibir “a pesca, captura, embarque, transporte, comercialização e o processamento” dos peixes da espécie Cichla spp. no estado.
As proibições do projeto de lei não se aplicam, entretanto, para pesca na modalidade pesque e solte ou pesca esportiva, tampouco para pesca destinada ao consumo humano realizado no local da captura, onde fica estipulado o limite de até dois peixes por pescador, nas medidas mínimas de 30 centímetros e máxima de 40 centímetros. A pesca de tucunarés para fins científicos também segue permitida.
O descumprimento da lei é passível de punição com multa e apreensão do pescado e do equipamento utilizado, inclusive embarcações e motores.
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