10 de julho de 2022 | 03h00
Muita gente leu, no Ensino Médio, O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Menos pessoas leram um texto anterior do maranhense: O Mulato.
A estética da obra é o Naturalismo. As coisas são apresentadas de modo mais cru do que o público estava acostumado. O ambiente é o Maranhão no fim do Império. Raimundo é o mulato, filho de uma mulher negra escravizada e de um português. O menino vai estudar no exterior e volta à província, para a casa do tio. Seu pai fora assassinado. Lá se apaixona pela prima, Ana Rosa. As críticas ao preconceito são duras, e a análise das hipocrisias tem tom ácido. Ao pedir a mão da amada, encontra uma dura recusa. O motivo? “Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor é filho de uma escrava! – O senhor é um homem de cor! – O senhor foi forro à pia, e aqui ninguém o ignora! – O senhor não imagina o que é por cá a prevenção contra os mulatos!”
Não contarei mais para não dar spoiler de uma obra de 1881...
O capítulo 14 contém a dor da consciência do preconceito, no século que criou o racismo como sistema: “Raimundo, ali, no desconforto do seu quarto, sentia-se mais só do que nunca; sentia-se estrangeiro na sua própria terra, desprezado e perseguido ao mesmo tempo. ‘E tudo, por quê?... pensava ele, porque sucedera sua mãe não ser branca!... Mas do que servira então ter-se instruído e educado com tanto esmero? Do que servira a sua conduta reta e a inteireza do seu caráter?... Para que se conservou imaculado?... para que diabo tivera ele a pretensão de fazer de si um homem útil e sincero?...’ E Raimundo revoltava-se”.
A dor de Raimundo, mais culto e ético do que aqueles que o desprezavam, era originada de um não pertencimento à terra que lhe negava plena cidadania. O racismo criava uma exclusão estética, política e social. Sobre o sistema escravista, diz o doutor humilhado em São Luís: “E ainda o governo tinha escrúpulo de acabar por uma vez com a escravatura; ainda dizia descaradamente que o negro era uma propriedade, como se o roubo, por ser comprado e revendido, em primeira mão ou em segunda, ou em milésima, deixasse por isso de ser um roubo para ser uma propriedade!”. Argumento jurídico irrefragável!
Vamos a um ponto fora do espectro analisado pelo autor ludovicense. O termo mulato tem origem em mula. A mula é o cruzamento da égua com o jumento. Estéril por natureza. Ainda na Idade Moderna, o termo foi sendo associado aos filhos de negra com branco. O tom é depreciativo. Os militantes do movimento negro condenam a palavra.
Volto no tempo. Nosso célebre jesuíta colonial, padre Antonil, disse que “o Brasil é inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas”. Além da origem pejorativa, os mulatos eram vistos como beneficiados do sistema, sedutores, malandros, erotizados. O padre ainda advertiu para que se cuidasse em não alforriar as mulatas, pois, mesmo livres, seriam a perdição de muitos. O mulato teria a inteligência do branco e a esperteza do negro. Era um perigo!
A escola do jesuíta vingou. Os postais das praias do Rio, na minha juventude, ostentavam nádegas de mulatas em biquínis ousados, convidando os turistas ao deleite das belezas disponíveis. O show que Osvaldo Sargentelli promovia pertencia ao mesmo campo. O corpo da mulata era território livre.
O termo (repito) tem origem pejorativa. Além disso, é uma maneira de dividir os negros em categorias mutuamente excludentes e rivais entre si. Os argumentos seriam suficientes para eliminar o uso da palavra?
Caetano Veloso seguiu outro caminho. Seu pai era mulato. Ele, Caetano, acha um purismo excessivo evitar a palavra. O baiano ainda diz que, mesmo se for derivado de mula, ele não tem nada contra o animal.
Vou ao campo pessoal. Tenho uma norma: mesmo que a mim não soe ofensivo o nome ou o grupo em que eu coloco alguém, o uso é determinado pela pessoa. Dúvida de gênero? Consulte a pessoa. A língua é viva e incorpora conceitos culturais. Na minha infância, nenhuma pessoa com Down era chamada assim. Não havia uma aluna plus size ou alguém com identidade não binária. Os termos eram sempre ofensivos e brutais. A língua incorpora cuidados, sabendo que palavras ofendem, deprimem e até matam. A violência começa na fala e abre portas.
“Hoje em dia tudo é ofensa, é muito mimimi.” Quando alguém diz isso, sei que há uma chance grande de ser branco, hétero e homem. Não se trata de politicamente correto, ainda que a palavra correto não possa ser atacada, pois, afinal, é correta. Para mim, trata-se de humanidade. Eu tenho direito a pensar qualquer coisa. No trato social, eu devo evitar ofensa. Isso se chama humanismo, mas não politicamente correto. Eu já errei no campo das palavras. Quero aprender e mudar sempre. Vivo das palavras e sei do seu poder. Quero ser crítico e nunca ofensivo. Tenho esperança de que todos entendam o poder do que é dito ou escrito.
P.S.: Agradeço a leitura crítica prévia de Djamila Ribeiro.
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