Quando Art Spiegelman começou a criar "Maus", uma história em quadrinhos sobre como seus pais sobreviveram a campos de concentração que retrata judeus como ratos e nazistas como gatos, ainda não estava cimentada toda essa profusão de abordagens literárias do Holocausto.
Era, portanto, naquela década de 1970, um livro de liberdade criativa pulsante, o que culminou num inédito prêmio Pulitzer há exatos 30 anos e no firmamento de "Maus" como marco cultural instantâneo.
Agora, uma obra que nasceu controversa e caminhou para ter a leitura incorporada "por alunos do colegial e em aulas de pós-graduação", como se orgulha seu autor durante esta entrevista, voltou a inflamar um debate inesperado.
Em janeiro, uma junta escolar do estado americano do Tennessee decidiu banir o livro do currículo de seus colégios alegando que havia nele nudez e palavrões.
Não foi um caso isolado, e as polêmicas candentes sobre o veto a livros nos Estados Unidos coincidem com o momento em que Spiegelman lança no Brasil o ambicioso "Metamaus", que destrincha com detalhismo e franqueza incomuns todo o processo criativo por trás do quadrinho que agora é alvo de proibição.
O artista lembra uma citação de William Faulkner enquanto fala ao repórter de sua casa, fumando um cigarro eletrônico de ponta verde, bebendo uma caneca de café e ostentando um cavanhaque grisalho. "O passado nunca está morto. Nem sequer passou."
‘Maus’ já era um livro bastante metalinguístico, em que o senhor se coloca na página elaborando a história que estamos lendo. Não temia que dissecar a obra em ‘Metamaus’ a deixasse com menos poder?
Eu sempre preferi os truques de mágica que você pode mostrar como são feitos e ainda assim mantêm sua sensação de mágica. Os ilusionistas que revelam para você onde estão os espelhos e, quando você vê o truque de novo, não os enxerga.
Nunca fiz "Maus" com a ideia de manipular o público. Fico exausto quando sinto que um filme faz isso comigo. Então "Metamaus" é uma continuação da mesma ideia. Há mais material disponível se você quiser ler, incluindo coisas que eu também estava descobrindo naquele momento.
Por exemplo, agora descubro quão fundo a história ressoa no presente, por causa do que está acontecendo nos Estados Unidos, e é claro que muito do ultraje dirigido ao livro tem mais a ver com o presente que com o passado.
De fato, ‘Maus’ se viu envolto em controvérsia no começo do ano, quando uma junta escolar no Tennessee o baniu de seu currículo. Como recebeu a notícia?
Bem, me surpreendeu muito. Era tarde da noite quando recebi uma ligação de um conhecido âncora de telejornal, que tem uma vida secreta de cartunista, me pedindo para comentar.
Pedi tempo para ler a reportagem e, quando falei de novo com o jornalista, fiz mais perguntas que respostas. Ele me deu a transcrição da reunião do conselho escolar e só então eu comecei a entender que diabos estava acontecendo.
Você sabe, estamos vivendo num período que parece o pré-Guerra Civil nos Estados Unidos, com dois países separados pela linguagem. Não entendem as mesmas coisas. Não têm as mesmas fontes de informação. E o banimento de livros foi crescendo como um resultado disso.
Mas raramente o Holocausto era o objeto desses banimentos. Normalmente no centro estão as questões envolvendo gênero, como uma graphic novel chamada "Gender Queer" sobre um artista tentando identificar quem é. É isso que enlouquece as pessoas.
Agora que eu fui atropelado por essa guerra cultural, percebi que é uma grande questão fazer as escolas públicas parecerem perigosas aos pais, como se estivessem expondo crianças a coisas que vão fazer com que virem gays, mudem de sexo ou se sintam culpadas por terem nascido brancas. Estimular essa ansiedade toda pode tirar o dinheiro das escolas públicas e fortalecer as de ensino religioso.
Ainda assim, acho que o que aconteceu com "Maus" não foi especificamente antissemita. Pareceu uma boa chance de dizer "espere, isso não é o que queremos que as nossas crianças possam acessar".
Alguns membros do conselho nem devem ter lido o livro, mas estavam felizes em o exorcizar das escolas. Pareciam estar incomodados com o fato de o personagem de Art não ser respeitoso com seus pais, então focaram trechos com palavrões e xingamentos.
Pessoas autoritárias gostam de autoridades, e minha relação com meus pais era bem combativa, mas não é um modelo para ninguém. Não fiz "Maus" para ensinar ninguém, exceto a mim mesmo.
E ‘Maus’ não foi o único caso de livro banido no país nos últimos anos.
Não, de jeito nenhum. Outra coisa enorme acontecendo em estados sulistas são leis que estabelecem que todo livro em bibliotecas públicas tem que ser aprovado pelos bibliotecários, que precisam atestar que ele é adequado para crianças.
Se cometem algum erro e disponibilizam um livro que não deveriam, podem ser multados pessoalmente —e bibliotecários não ganham muito.
"Maus" está na lista de livros proibitivos em alguns estados, o que quer dizer que muita gente evita colocar o livro à disposição porque pode ser perigoso para elas.
Eu nunca havia acompanhado esses processos de perto, mas lembro quando "Maus" não foi apenas vetado, mas queimado na Polônia como protesto. Muita gente achou que o retrato dos poloneses [que são porcos no livro] não era justo, e fizeram uma fogueira em frente à janela do meu editor. Ele apareceu com uma máscara de porco acenando para eles. Além disso, foi banido na Rússia de Putin por ter uma suástica na capa.
É justo dizer que estamos vendo uma regressão da liberdade de expressão nos Estados Unidos?
Com certeza. E é parte de um projeto maior que está tentando nos levar de volta pelo menos a 1860. Banir o aborto é apenas o primeiro passo, parte dos juízes da Suprema Corte são até contra métodos contraceptivos.
Há um muro sólido que separa a esquerda e a direita, e banir livros é uma parte importante da agenda da direita. São tempos muito assustadores nos Estados Unidos. Nunca vivi nada tão regressivo.
Histórias sobre os horrores do Holocausto têm sido onipresentes na indústria cultural, mas isso não impediu que grupos supremacistas brancos estejam aparecendo mesmo em países como os Estados Unidos e a Alemanha. O que aconteceu?
É uma guerra cultural, algumas culturas estão melhores, outras piores. Agora, os Estados Unidos
estão quase em fase terminal.
Mas, como disse, não acho que esse seja o motivo do que aconteceu no Tennessee —há assassinatos terríveis perpetrados por pessoas que odeiam judeus e ponto, mas essa não é a linha de frente.
A linha de frente são pessoas que têm problemas com gênero, cor da pele e imigração. O grande medo não é os judeus roubarem seu dinheiro, como na Alemanha nazista, mas que negros ou mexicanos tomem o seu lugar no trabalho.
Um dos brados contra judeus está sendo usado de novo, "você não vai nos substituir". Eles têm medo de que o privilégio que faz mesmo um branco pobre e analfabeto ter status mais alto que uma pessoa negra esteja ameaçado.
Eu me lembro de ver camisetas com a frase "se votar importasse, não nos deixariam fazer isso". Bem, agora parece que estão de fato tentando impedir que pessoas marginalizadas se registrem para votar.
Há uma página em ‘Metamaus’ na qual você se desenha sob a estátua enorme de um roedor e diz ‘por mais que eu corra, não consigo escapar da sombra desse rato!’. Você se incomoda com a proporção que ‘Maus’ tomou em sua carreira?
Não tenho escolha. Claro, me incomodou por um tempo, pensava que se continuasse com meus trabalhos de teor mais sexual dos anos 1970 isso ia interferir na recepção de "Maus". Tentei muita coisa sob pseudônimos, fiz "The Wild Party", que tinha um lado mais sexy, proibido, que não pude incluir em "Maus".
Mas tive de desistir. Sabe, estou na casa dos 70 anos. Faço o que quiser hoje. Sei que, de qualquer jeito, "Maus" virou canônico e tenho de deixar que faça seu trabalho.
E agora que estou tendo de explicar esse livro de novo e de novo, percebi que joguei a toalha. Não estou sendo seguido por um rato gigante. Eu me tornei o rato gigante.
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