Cerca de 28% dos adolescentes apresentam critérios para diagnóstico de TJI (transtorno de jogo pela internet), quadro em que há uso excessivo de videogames, com prejuízo de atividades como comer e estudar. O número foi revelado em uma pesquisa de doutorado do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) e supera as taxas encontradas em países como Canadá (9,4%), França (17,7%) e Reino Unido (19,9%).
De acordo com o estudo, o primeiro a quantificar o TJI em adolescentes brasileiros, jovens do sexo masculino, usuários de tabaco e álcool, que praticam ou são vítimas de bullying e que têm dificuldade para se relacionar com os colegas são mais associados ao transtorno. Problemas de conduta e sintomas de hiperatividade também estão mais relacionados a essa condição.
"Como quem tem TDAH [transtorno de déficit de atenção com hiperatividade] possui dificuldade de se engajar em atividades pouco motivadoras, o videogame casa perfeitamente. O indivíduo tende a ficar mais estimulado pelo videogame e tem mais dificuldade de autocontrole para conciliar o jogo com fazer a lição ou sair na hora que o pai chama", afirma a psicóloga clínica Luiza Chagas Brandão, autora da pesquisa.
Pessoas com TJI geralmente dedicam ao videogame oito ou mais horas por dia e ao menos 30 horas por semana. Segundo a APA (Associação Americana de Psiquiatria), elas frequentemente ficam longos períodos sem dormir ou se alimentar e negligenciam obrigações relacionadas à escola, ao trabalho e ao ambiente doméstico, por exemplo.
Caso sejam impedidos de jogar, indivíduos com TJI ficam agitados e revoltados, e qualquer tentativa de redirecioná-los para outras atividades encontra forte resistência.
O quadro foi reconhecido como patologia nos últimos anos: a APA classificou a doença e a acrescentou ao Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) em 2013 e, em 2018, a OMS (Organização Mundial da Saúde) incluiu o uso patológico de videogames na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID).
"De repente, as pessoas têm milhares de jogos gratuitamente na mão, no celular, e nem sabem que isso é prejudicial. Elas acham que o uso de videogames é um problema só na casa delas, quando é um fenômeno por conta das características da nossa sociedade e dessa mídia em si", afirma a psicóloga.
Além do fácil acesso, jogar para esquecer ou aliviar problemas da vida real também é uma das razões e foi apontada por 57% dos adolescentes, segundo a pesquisa. Brandão considera que aspectos como violência urbana e acesso restrito a outras opções de lazer contribuem para esse fenômeno.
O estudo considerou as respostas dadas por alunos de oitavo ano de 73 escolas públicas em Eusébio (CE), Fortaleza e São Paulo ao questionário do projeto #Tamojunto 2.0, ação do Ministério da Saúde que visa prevenir o consumo de álcool e drogas por adolescentes. A equipe da iniciativa inclui as professoras Márcia Helena da Silva Melo e Zila van der Meer Sanchez Dutenhefner, orientadora e coorientadora de Brandão, que abriram espaço para a inclusão de perguntas sobre uso de videogames na investigação nacional.
As nove questões sobre os jogos foram adaptadas do DSM-5 e podem ser consideradas como um termômetro da relação com os videogames. Os adolescentes que marcaram "sim" para cinco ou mais perguntas no estudo tiveram o uso classificado como problemático. Dos 3.939 alunos que responderam essa parte da pesquisa, 3.396 afirmaram ter jogado videogame nos últimos 12 meses e 1.077 atingiram critérios de TJI, o equivalente a 85,85% e 28,17% considerando a média do intervalo de confiança.
"O uso problemático geralmente envolve famílias que já estão com um nível de conflito alto porque o adolescente não está cumprindo outras atividades. Além disso, raramente o uso problemático vem sozinho. Ele costuma trazer outros sintomas de saúde mental que contam que, se esse adolescente está tendo problema com jogo, há chances de outras coisas também não estarem legais, então é importante pedir ajuda de um profissional de saúde mental", aconselha.
Mãe de cinco filhos, três deles adolescentes, a babá Alexandra convive com videogames há anos. Nos últimos meses, contudo, o filho de 16 anos começou a passar mais tempo conectado. "Ele mudou a rotina de dormir, de se alimentar. Ele não interage com a família. Já houve situações em que saímos para passear ou para visitar parentes e ele preferiu ficar em casa para jogar, jogar, jogar", relata. A Folha não divulga o sobrenome dela para preservar a identidade do jovem.
"Minha maior preocupação é o desapego ao cotidiano da família. Também tem a questão de com quem ele conversa. Não sei quem está ali, se tem segundas intenções", acrescenta.
De acordo com a pesquisadora, o tipo de jogo, o conteúdo e a frequência modificam os efeitos sobre os jogadores. "Nem todo jogo é igual. É um universo imenso", lembra.
Ela explica que pesquisas anteriores indicaram dois tipos de jogos mais problemáticos: os games violentos, considerando o conteúdo, e os MMORPGs (do inglês Massively Multi-User Online Role-Playing Game), considerando as características estruturais, de simulação de papéis. "MMORPG é o tipo que mais tem relação com adição", aponta a psicóloga.
Alexandre Inforzato percebeu isso na prática. Gamer desde os anos 80, o biotecnólogo viu jogos do tipo MUD (Multi-user dungeon), predecessores dos MMORPGs, afetarem seu cotidiano. "Eu ficava horas e horas jogando isso em detrimento da minha vida acadêmica, negligenciei minhas aulas, provas", conta.
Após meses dedicando grande parte do tempo aos games, ele percebeu que era preciso dar mais atenção às aulas e à vida profissional e mudou o relacionamento com os jogos. Hoje, continua jogando RPG de mesa, mas não a versão online para múltiplos jogadores. "Eles condicionam o jogador com pequenas recompensas e eu desaprovo essa estratégia porque jogos assim não necessariamente fomentam a socialização. O foco é manter a pessoa jogando", opina. Ele também não joga games para celular.
Como os cerca de 44% dos adolescentes que afirmaram jogar videogames, Inforzato era vítima de bullying e, em parte, acredita que jogava para esquecer o que acontecia na escola.
"Quando o adolescente joga por escapismo, é importante entender do que ele está escapando, qual problema o jogo alivia. Por exemplo, se o adolescente vai mal na escola e nas outras áreas, mas no videogame vai bem, ele pode não querer se dedicar às outras coisas", afirma a psicóloga.
No caso de Inforzato, o saldo foi mais positivo do que negativo. Ele fez amigos, desenvolveu interesse pelo inglês e se tornou professor do idioma. Hoje, usa os jogos como uma forma de enriquecer as aulas e a convivência com os alunos. "Para mim, os jogos são uma forma de arte. Você pode ser exposto a universos novos de ideias, estéticas e experiências quando consome literatura e cinema, por exemplo. O mesmo vale para os videogames."
Nenhum comentário:
Postar um comentário