sexta-feira, 19 de julho de 2024

Há dissonância entre as preocupações dos trabalhadores e as prioridades da esquerda, João Pereira Coutinho, FSP (definitivo) acertou em cheio!

 Podemos dizer tudo sobre o Donald. Mas não é possível negar a sua esperteza política. A escolha de J.D. Vance como vice é o exemplo mais fulgurante. Ali está o herdeiro do trumpismo?

Certo. Mas esse não é o ponto. O ponto é que a escolha de Vance consagra definitivamente os republicanos como o partido da classe trabalhadora branca nos Estados Unidos. A mudança é tão sísmica como a transformação do sul segregacionista e democrata (até 1950) em bastião dos republicanos (depois de 1950 e até hoje).

J.D. Vance, senador republicano de Ohio e agora candidato a vice-presidente ao lado de Donald Trump, durante a Convenção Nacional Republicana, em Wisconsin
J.D. Vance, senador republicano de Ohio e agora candidato a vice-presidente ao lado de Donald Trump, durante a Convenção Nacional Republicana, em Wisconsin - Joe Raedle/Getty Images via AFP

Aliás, se dúvidas houvesse, bastaria ler as palavras de Trump justificando a escolha: "Os trabalhadores e agricultores americanos na Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Ohio, Minnesota e muito além" terão em J.D. Vance o seu defensor.

Trump sabe que, para ganhar a Casa Branca, precisa da Pensilvânia (primeiro que tudo) e depois do Michigan e do Wisconsin, que votaram em Trump (em 2016) e em Joe Biden (em 2020). Como reconquistar ambos?
Escolhendo um legítimo filho dessa América abandonada.

Perante isso, a pergunta é óbvia: como foi possível que a esquerda americana (e não só) tenha alienado assim a sua tradicional base de apoio?

O economista (de esquerda) Daron Acemoglu tenta explicar o suicídio em entrevista ao alemão Der Spiegel.

Para começar, os políticos da "terceira via" (Bill Clinton, Tony Blair, Gerhard Schröder) renderam-se às promessas fáceis da globalização, na esperança ingênua de que ninguém ficaria para trás.

Sabemos hoje que esse otimismo foi excessivo, sobretudo para os trabalhadores menos qualificados.
A automatização crescente na agricultura e na indústria, desde a década de 70, já tinha feito os seus estragos. A deslocalização de postos de trabalho para mercados emergentes foi o golpe de misericórdia para a classe operária ocidental.

A esse respeito, lembro sempre as palavras de Francis Fukuyama no importante "Liberalismo e seus Descontentes": "Poucos eleitores pensam em termos de riqueza agregada. Eles não dizem para si mesmos: "Bem, posso ter perdido meu emprego, mas pelo menos há outra pessoa na China ou no Vietnã, ou um novo imigrante no meu país, que está proporcionalmente em situação muito melhor".

De fato. O trabalho tem uma importância pessoal e comunitária que nenhum subsídio, nenhuma transferência da previdência social, consegue substituir.

Que o liberal Fukuyama tenha entendido esse fato, ao contrário de outros liberais, só aumentou meu respeito por ele.

Por outro lado, Daron Acemoglu acerta em cheio ao relembrar a grande substituição que os progressistas americanos (e europeus) promoveram: no lugar da classe trabalhadora, colocaram as elites intelectuais e suas agendas minoritárias. Resultado?

Uma dissonância cognitiva entre as preocupações dos trabalhadores e as prioridades dos partidos progressistas.

O caso da imigração é o mais eloquente: se a imigração sem restrições é percepcionada como uma ameaça pelos trabalhadores nativos pouco qualificados, o mesmo não acontece entre as elites, que até precisam de motoristas ou empregadas domésticas.

Sem surpresas, o tema desapareceu das conversas civilizadas. Só "fascistas", na encantadora linguagem da esquerda mais radical, se preocupam com a imigração descontrolada.

A mensagem de Acemoglu é simples e certeira: se a direita populista é um problema para a democracia, então a esquerda desertora terá de voltar a sujar as mãos com a "cesta dos deploráveis".

Enquadrar a PM, Luís Francisco Carvalho Filho, FSP

O corregedor da Polícia Militar de São Paulo faz campanha eleitoral contra Guilherme Boulos, pré-candidato a prefeito pelo PSOL: "Ele não". Para a corporação, não é deslize grave: a mensagem foi compartilhada em "caráter temporário" e no perfil "particular" do oficial.

O pré-candidato a vice na chapa do atual prefeito, apoiado pelo governador e por Jair Bolsonaro, é coronel da PM.

Alunos do curso de soldados em São Paulo exaltam o massacre do Carandiru que resultou na morte de 111 presos em 1992 e são investigados pelo corregedor da PM. "Lá só tinha lixo", entoam os desinibidos novatos, décadas depois nas redes sociais, "corpos mutilados e cabeças arrancadas", canção que faz parte do currículo escolar informal.

A imagem mostra uma viatura da polícia azul com portas abertas estacionada em uma rua à noite. Dois policiais estão fora do veículo, um deles revistando duas pessoas à esquerda da imagem er o outro afastado segurando uma arma. A calçada é pavimentada com pedras portuguesas. No canto superior esquerdo, há o nome 'Gabriel' e no canto superior direito, a data '2024'.
Imagens de câmeras de segurança mostram PMs abordando com fuzis quatro adolescentes filhos de diplomatas no Rio de Janeiro - @GugaNoblatno X/Reprodução

Em 2006, o falecido coronel Ubiratan, comandante da chacina, também celebrou a "absolvição" (depois de ser condenado a 632 anos de prisão) em quartel da PM, que, em festa, exclamava "hip hurra", "hip hurra".

Com base em "critérios técnicos", o governador de São Paulo (que não se incomoda com a eliminação de suspeitos) nomeou para a assessoria da Administração Penitenciária oficial da reserva acusado de espancar presos rendidos na varredura de celas realizada após a chacina do Carandiru.

Projeto de lei que anistia os envolvidos na matança, de autoria do capitão Augusto (PL/SP), que se vangloria de ser o primeiro parlamentar a fazer uso de farda da PM na Câmara dos Deputados, tem parecer favorável do cabo Gilberto Silva (PL-PB), também oriundo da PM, na Comissão de Constituição e Justiça.

O governador do Rio de Janeiro (que não se incomoda com a eliminação de suspeitos) quer que a abordagem racista e arbitrária de jovens negros filhos de diplomatas, flagrada por câmeras de segurança, tenha investigação "séria", mas sem deixar de externar sua simpatia e compreensão: "É difícil para o policial saber quem é filho de rico".

Um dos soldados envolvidos na abordagem disse em depoimento (na presença protetora de oficial da PM e de agente da Corregedoria) que procurava por grupo suspeito que tinha "semelhança" com o grupo de jovens que inocentemente caminhava por Ipanema.

É frequente a ocultação e a plantação de provas (armas, drogas, "testemunhas") por policiais militares. Os comandos não afastam policiais que atiram e abusam.

Ainda no Rio, são absolvidos os autores da morte do garoto João Pedro, de 14 anos, por "legítima defesa". Licença judicial para matar, desde que "sem intenção".

Há pequena redução em relação ao ano anterior (0,9%), mas em 2023 o número de mortos por intervenções policiais no Brasil é 6.393, cerca de 17 por dia. Desde 2013, o crescimento é de 189%, informa o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

A matança não tem cor partidária. A polícia da Bahia, estado governado pelo PT desde 2007, é a que mais mata, 1.467 em números absolutos. Para o governador baiano (que não se incomoda com a eliminação de suspeitos), as forças de segurança atuam lá com firmeza e legalidade. A do Rio de Janeiro se mantém em segundo lugar.

Cada dia mais poderosa e influente, a PM é uma das calamidades políticas brasileiras, aparentemente insolúvel.

Só a tolerância zero pode fazer diferença. Não há bons ou maus policiais. Há policiais que tangenciam o mundo do crime, pela certeza da impunidade, e há policiais que tangenciam, por pudor, virtude ou medo, o mundo da lei. Pela falta de controle, a fronteira é estreita.