domingo, 1 de outubro de 2023

Lembra do Telmo?, Ruy Castro - FSP

 Telmo Martino morreu há 10 anos, no dia 3 de setembro. O silêncio da mídia fala tanto da nossa desmemória quanto do fato de que, no Brasil, o passado é um caixão sem alça, a ser levado nos ombros. Depois de ter sido, de 1971 a 1986, o colunista mais lido da imprensa paulistana —seu veículo era o Jornal da Tarde, no auge—, Telmo tem sido ignorado até em reportagens retrospectivas.

Fomos amigos por 45 anos. Conheci-o em 1968, na revista Diners, dirigida por Paulo Francis, aqui no Rio. A revista era um house organ para os assinantes do cartão, que a esnobavam, mas disputada pelos que viam nela a herdeira da lendária Senhor (1958-1964). Mês sim, mês não, Telmo fazia crítica de livros, implacável para com os medalhões. No dia a dia, no entanto, era a alma e a arma secretas da revista: compunha com Francis os insuperáveis títulos e subtítulos dos artigos e retocava o estilo de colaboradores como Joel Silveira, Glauber Rocha, Armando Nogueira.

No fim do ano, Francis foi preso no AI-5 e o Diners extinguiu a revista. Telmo foi ser ghost writer do colunista Daniel Más no Correio da Manhã, consagrando Daniel. Em 1971, o JT lhe ofereceu uma coluna assinada, e lá se foi Telmo para São Paulo, onde, com humor e sagacidade, criou seu panteão de personagens: os belos e deuses e os jecas e fakes, eleitos por ele. Isso lhe valeu amores e ódios, por fim reduzidos nos anos 90 a uma triste indiferença, provocada, em parte, pelo cansaço do próprio Telmo.

Não haverá futuro para ele. Telmo será esquecido, na razão direta de que, com exceções, as pessoas que ele endeusou ou demoliu também já estão sendo. Talvez porque fossem miragens que, pró ou contra, só existissem na sua coluna.

Ele pressentia esse fim. Certa vez, me telefonou: "Ruyzito, aqui é Telmo Martino, vivendo seus últimos dias". E eram mesmo. Mas que só chegariam em 2013 —e esse telefonema foi em 2006.

Foto (por Avani Stein), capa de revista (por David Zingg) e cartões de visita de Telmo Martino nos anos 80
Foto (por Avani Stein), capa de revista (por David Zingg) e cartões de visita de Telmo Martino nos anos 80 - Heloisa Seixas

Demétrio Magnoli Um Congresso de 11, FSP (definitivo)

 O longo voto de Rosa Weber pela descriminalização do aborto apresenta-se, quase inteiramente, como um discurso parlamentar. A agenda definida pela magistrada para o Supremo –drogas, marco temporal, aborto– forma uma pauta de deliberações apropriada ao Poder Legislativo. Por aqui, o STF produz legislação enquanto o Congresso dedica-se a distribuir verbas de emendas a clientelas eleitorais e a indicar ministros ou diretores de estatais.

A alegação dos juízes supremos de que apenas interpretam a Constituição não resiste nem mesmo a um escrutínio superficial. Interpretar a Constituição é derrubar o que não pode ser feito; legislar é decidir regras positivas sobre o que deve ser feito. Weber determinou o período de aborto descriminalizado (12 semanas), os magistrados procuram consenso interno sobre o peso exato da maconha de uso pessoal, Fachin elabora regras específicas para atribuição de terras aos indígenas.

Fachada da sede do STF (Supremo Tribunal Federal), em Brasília
Fachada da sede do STF (Supremo Tribunal Federal), em Brasília - Gabriela Biló - 3.mai.23/Folhapress

O STF embarcou no veleiro do neoconstitucionalismo, doutrina jurídica que, enfraquecendo a separação dos Poderes, atribui aos magistrados a missão de reformar a sociedade a partir de uma interpretação extensiva dos princípios constitucionais. O posto de timoneiro é ocupado por Barroso, um expoente da doutrina. Na equipe, Weber funciona como navegadora.

O neoconstitucionalismo equivale a uma declaração de guerra dos juízes contra Parlamentos conservadores ou reacionários que resistem à expansão de direitos sociais. Na sua fúria legiferante, o STF enxerga-se –e é enxergado– como representação do estrato mais progressista da sociedade. O problema é que, como os juízes não foram eleitos, sua campanha de reforma social tende a gerar consequências contraproducentes.

As regras de origem judicial são leis fracas, sujeitas a bruscos retrocessos. Na Itália, o aborto é um direito forte porque foi decidido pelo Parlamento e confirmado por plebiscito popular. Nos EUA, foi um direito fraco, estabelecido pela Suprema Corte em 1973 e revogado pelo mesmo tribunal, agora com maioria conservadora, ano passado. Ao celebrar o avanço dos juízes sobre prerrogativas parlamentares, os progressistas sacrificam o futuro no altar do presente.

Ruth Bader Ginsburg, icônica ex-magistrada progressista americana, identificou o equívoco. O crescimento explosivo do Movimento Pró-Vida, explicou, foi uma reação política ao voto da Suprema Corte de 1973. Concluiu daí que o caminho certo exigiria a articulação da maioria social para consagrar o direito ao aborto em legislação emanada do Congresso. Na prática, os progressistas que confiam suas pautas a juízes reformadores estão renunciando ao dever de persuadir os cidadãos.

No Brasil, os partidos de esquerda insistem nesse tipo de abdicação: Lula e Dilma recusaram-se a defender em campanha eleitoral o direito ao aborto ou a descriminalização da maconha. Na raiz do silêncio encontra-se a tese de que a maioria da sociedade é atavicamente conservadora –e, que, portanto, precisaria ser resgatada do inferno de suas próprias convicções pela mão providencial dos juízes.

Sondagens de opinião indicam maiorias contrárias à descriminalização do aborto e do uso recreativo de maconha. O Congresso espelha, de certo modo, essas inclinações gerais. Contudo, ideias arraigadas sobre tais temas podem mudar –com a condição de que as lideranças políticas progressistas tenham a coragem de reorganizar os termos do debate público. Impera, porém, o medo, que se traduz pela transferência da responsabilidade ao STF.

Quem ganha são os conservadores e, especialmente, os reacionários. Nos EUA, legislaturas estaduais engajam-se na criminalização irrestrita do aborto. Aqui, tenta-se reverter o direito à união homoafetiva. Nas eleições, ressoará o discurso do voto contra o "governo dos juízes". Um Congresso de 11 togados não reinventará o Brasil.


sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Os 50 anos da anticandidatura, Dimas Ramalho, OESP

 No momento em que o Brasil começa a julgar aqueles que atentaram contra nossa democracia no 8 de Janeiro, vale a pena recordar e, sobretudo, celebrar um outro tipo de ataque – este não contra, mas em favor da democracia – que neste dia 22 de setembro completa meio século.

O País e a política eram outros há 50 anos. Vivíamos, então, o fim do governo do general Emílio Garrastazu Médici, que sob a mão pesada do AI-5 produzira o mais duro período repressivo desde o golpe de março de 1964. Apesar da censura e da falta de liberdade, o crescimento gerado pelo chamado milagre econômico, somado à maciça propaganda ufanista, trazia respaldo popular ao regime.

O Movimento Democrático Brasileiro (MDB), a única oposição consentida no sistema bipartidário criado pelo AI-2, encontrava-se em frangalhos após derrotas fragorosas nas eleições legislativas de 1970 e nas municipais de 1972. Enfraquecido, com pouco espaço e ofuscado pela crescente popularidade governamental, o partido chegou ao ponto de discutir a própria dissolução.

Foi nesse contexto de grandes dificuldades e incertezas que, em 22 de setembro de 1973, a Convenção Nacional do MDB lançou o então deputado Ulysses Guimarães como “anticandidato” à Presidência da República, tendo como companheiro de chapa o jornalista e ex-deputado Barbosa Lima Sobrinho.

Tratava-se, em primeiro lugar, de uma provocação. Desde 1967, os presidentes e governadores eram escolhidos por Colégios Eleitorais compostos de poucas centenas de indivíduos, mecanismo que dava ao regime militar total controle do processo de escolha dos chefes do Poder Executivo. Assim, já que não havia qualquer possibilidade de triunfo, a candidatura da oposição seria, antes de tudo, uma postulação simbólica, com o objetivo de denunciar a farsa eleitoral e pressionar pela redemocratização.

Por mais inalcançável que fosse a vitória, a anticandidatura também não deixava de representar o mais ousado desafio à ditadura até então. Os militares sempre haviam concorrido sozinhos e, pela primeira vez, teriam de lidar com a situação em que alguém se atrevia a enfrentá-los. Por fim, embora isso só tenha ficado claro mais tarde, o movimento do MDB acabou por constituir uma astuta jogada política, que reenergizou o partido e o levou à ascensão.

O lançamento da anticandidatura de Ulysses Guimarães também ficou marcado pelo discurso proferido por ele no plenário da Câmara dos Deputados, sem dúvida uma das peças retóricas mais notáveis e flamejantes da política brasileira.

“Não é o candidato que vai percorrer o País”, diz uma de suas passagens mais célebres. “É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5, submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo habeas corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdece a Nação pela censura à imprensa, ao rádio, à televisão, ao teatro e ao cinema”.

Na conclusão de sua fala, em que criticou o AI-5, o processo eleitoral, a censura e as prisões arbitrárias promovidas pela ditadura, dr. Ulysses associou o sonho de um Brasil novamente democrático aos famosos versos de Fernando Pessoa “Navegar é preciso/Viver não é preciso”. “Posto hoje no alto da gávea, espero em Deus que em breve possa gritar ao povo brasileiro: Alvíssaras, meu capitão. Terra à vista! Sem sombra, medo e pesadelo, à vista a terra limpa e abençoada da liberdade.”

Empunhando as bandeiras da revogação do Ato Institucional n.º 5, do retorno do País ao Estado Democrático de Direito, da convocação de uma Assembleia Constituinte e da anistia de presos, cassados e banidos pelo regime, o candidato que não era candidato correu o País a falar com eleitores que não eram eleitores.

As restrições não foram poucas nem as dificuldades pequenas. Tendo as forças repressivas no encalço, Ulysses Guimarães realizou sua cruzada democrática majoritariamente em locais fechados, como clubes, teatros e universidades. Os canais de TV ignoraram as andanças, enquanto os jornais registravam-nas de maneira tímida. Mesmo assim, conseguiu mobilizar milhares de pessoas e, sobretudo, mostrar à população um MDB mais combativo, aguerrido e ativo.

Ao fim da jornada, o anticandidato decidiu submeter seu nome ao Colégio Eleitoral, contrariando, assim, parte do partido, que queria utilizar o processo apenas como denúncia e ato simbólico. Na visão desse grupo, a atitude acabaria legitimando o sistema vigente.

Num resultado mais do que previsível, no dia 15 de janeiro de 1974, Ulysses Guimarães foi derrotado pelo general Ernesto Geisel por 400 votos a 76. Entretanto, os três meses percorrendo o País – apontando a defasagem entre a linguagem da democracia e a realidade do controle político, disseminando os ideais do MDB e fortalecendo sua base eleitoral – representaram uma vitória indubitável.

Os resultados desse esforço não tardaram a chegar. Em novembro de 1974, na primeira eleição parlamentar depois da anticandidatura, o MDB obteve um resultado extraordinário. O voto popular deu ao partido 16 das 22 vagas do Senado e a quase maioria na Câmara, num triunfo fundamental para impulsionar a transição democrática.

Olhando retrospectivamente, pode-se dizer que naquele 22 de setembro de 1973 estavam sendo abertas as primeiras fendas na grossa cortina da ditadura. O resto, como sabemos, é história...

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É CONSELHEIRO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO