sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Os 50 anos da anticandidatura, Dimas Ramalho, OESP

 No momento em que o Brasil começa a julgar aqueles que atentaram contra nossa democracia no 8 de Janeiro, vale a pena recordar e, sobretudo, celebrar um outro tipo de ataque – este não contra, mas em favor da democracia – que neste dia 22 de setembro completa meio século.

O País e a política eram outros há 50 anos. Vivíamos, então, o fim do governo do general Emílio Garrastazu Médici, que sob a mão pesada do AI-5 produzira o mais duro período repressivo desde o golpe de março de 1964. Apesar da censura e da falta de liberdade, o crescimento gerado pelo chamado milagre econômico, somado à maciça propaganda ufanista, trazia respaldo popular ao regime.

O Movimento Democrático Brasileiro (MDB), a única oposição consentida no sistema bipartidário criado pelo AI-2, encontrava-se em frangalhos após derrotas fragorosas nas eleições legislativas de 1970 e nas municipais de 1972. Enfraquecido, com pouco espaço e ofuscado pela crescente popularidade governamental, o partido chegou ao ponto de discutir a própria dissolução.

Foi nesse contexto de grandes dificuldades e incertezas que, em 22 de setembro de 1973, a Convenção Nacional do MDB lançou o então deputado Ulysses Guimarães como “anticandidato” à Presidência da República, tendo como companheiro de chapa o jornalista e ex-deputado Barbosa Lima Sobrinho.

Tratava-se, em primeiro lugar, de uma provocação. Desde 1967, os presidentes e governadores eram escolhidos por Colégios Eleitorais compostos de poucas centenas de indivíduos, mecanismo que dava ao regime militar total controle do processo de escolha dos chefes do Poder Executivo. Assim, já que não havia qualquer possibilidade de triunfo, a candidatura da oposição seria, antes de tudo, uma postulação simbólica, com o objetivo de denunciar a farsa eleitoral e pressionar pela redemocratização.

Por mais inalcançável que fosse a vitória, a anticandidatura também não deixava de representar o mais ousado desafio à ditadura até então. Os militares sempre haviam concorrido sozinhos e, pela primeira vez, teriam de lidar com a situação em que alguém se atrevia a enfrentá-los. Por fim, embora isso só tenha ficado claro mais tarde, o movimento do MDB acabou por constituir uma astuta jogada política, que reenergizou o partido e o levou à ascensão.

O lançamento da anticandidatura de Ulysses Guimarães também ficou marcado pelo discurso proferido por ele no plenário da Câmara dos Deputados, sem dúvida uma das peças retóricas mais notáveis e flamejantes da política brasileira.

“Não é o candidato que vai percorrer o País”, diz uma de suas passagens mais célebres. “É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5, submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo habeas corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdece a Nação pela censura à imprensa, ao rádio, à televisão, ao teatro e ao cinema”.

Na conclusão de sua fala, em que criticou o AI-5, o processo eleitoral, a censura e as prisões arbitrárias promovidas pela ditadura, dr. Ulysses associou o sonho de um Brasil novamente democrático aos famosos versos de Fernando Pessoa “Navegar é preciso/Viver não é preciso”. “Posto hoje no alto da gávea, espero em Deus que em breve possa gritar ao povo brasileiro: Alvíssaras, meu capitão. Terra à vista! Sem sombra, medo e pesadelo, à vista a terra limpa e abençoada da liberdade.”

Empunhando as bandeiras da revogação do Ato Institucional n.º 5, do retorno do País ao Estado Democrático de Direito, da convocação de uma Assembleia Constituinte e da anistia de presos, cassados e banidos pelo regime, o candidato que não era candidato correu o País a falar com eleitores que não eram eleitores.

As restrições não foram poucas nem as dificuldades pequenas. Tendo as forças repressivas no encalço, Ulysses Guimarães realizou sua cruzada democrática majoritariamente em locais fechados, como clubes, teatros e universidades. Os canais de TV ignoraram as andanças, enquanto os jornais registravam-nas de maneira tímida. Mesmo assim, conseguiu mobilizar milhares de pessoas e, sobretudo, mostrar à população um MDB mais combativo, aguerrido e ativo.

Ao fim da jornada, o anticandidato decidiu submeter seu nome ao Colégio Eleitoral, contrariando, assim, parte do partido, que queria utilizar o processo apenas como denúncia e ato simbólico. Na visão desse grupo, a atitude acabaria legitimando o sistema vigente.

Num resultado mais do que previsível, no dia 15 de janeiro de 1974, Ulysses Guimarães foi derrotado pelo general Ernesto Geisel por 400 votos a 76. Entretanto, os três meses percorrendo o País – apontando a defasagem entre a linguagem da democracia e a realidade do controle político, disseminando os ideais do MDB e fortalecendo sua base eleitoral – representaram uma vitória indubitável.

Os resultados desse esforço não tardaram a chegar. Em novembro de 1974, na primeira eleição parlamentar depois da anticandidatura, o MDB obteve um resultado extraordinário. O voto popular deu ao partido 16 das 22 vagas do Senado e a quase maioria na Câmara, num triunfo fundamental para impulsionar a transição democrática.

Olhando retrospectivamente, pode-se dizer que naquele 22 de setembro de 1973 estavam sendo abertas as primeiras fendas na grossa cortina da ditadura. O resto, como sabemos, é história...

*

É CONSELHEIRO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO

Nenhum comentário: