segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Inconsciência conveniente, José Renato Nalini OESP

 José Renato Nalini*

18 de outubro de 2021 | 12h00

José Renato Nalini. FOTO: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

O planeta está preocupado com a mudança climática, efeito do aquecimento global causado pela danosa ação humana. O planeta todo? Aparentemente os países que mais precisariam estar aflitos continuam alienados. Precisa dizer quem é o “pária ambiental” que não está envolvido nas estratégias de mitigação das catástrofes?

Poucas as vozes sensatas que lembram o brasileiro, residente no quinto país que mais emite gases venenosos do efeito estufa, de que ele precisa mostrar ao governo quem é o verdadeiro titular da soberania. Das emissões tupiniquins, mais de 90% derivam de desmatamento e queimadas. Estas não acontecem por acaso. Os devastadores, verdadeiros exterminadores do futuro, ouviram e observaram o recado do “soltar a boiada”. Trabalham num ritmo alucinante e o resultado será um cenário de terra arrasada.

Não é só a Amazônia que está sendo extinta. Todos os biomas estão sofrendo. Imagine-se que o Pantanal mato-grossense, região naturalmente coberta por água em boa parte do ano, também entrou em combustão. E a Mata Atlântica, da qual pouco resta em São Paulo, cedeu lugar a um clima saariano, desértico. Até fenômenos dos solos áridos agora acontecem. Várias tempestades de areia e poeira se formam, derrubam casas, árvores, quebram fios elétricos, matam! Pelo menos cinco mortos resultaram desse evento que só acontece no Saara.

Estes dias, o biólogo Roberto Saack, presidente do Conselho do Instituto Arapyaú, alertou que o Brasil está jogando fora a oportunidade de voltar a um protagonismo que já teve, a partir da década de setenta. Ele participou do movimento “Uma Concertação pela Amazônia”, que congrega mais de quatrocentos empresários, economistas, pesquisadores, alguns poucos políticos e lideranças da sociedade civil. O governo é não só omisso, mas conivente com os infratores. Estes são incentivados, anistiados, recebem carta branca para levar madeira de lei para a exportação ilícita, invadem terras indígenas para explorar o garimpo, deixam destruição e morte por onde passam.

É ilusório acreditar que um governo que já se mostrou nefasto para a natureza, agora abra diálogo com os ambientalistas que eles consideram fanáticos, pagos pelo comunismo internacional, a serviço da conspiração que quer sufocar a soberania brasileira. Esta é invocada como razão para que o Brasil destrua sua cobertura vegetal, já que ‘outros povos o fizeram há muito tempo. Agora chegou a nossa vez!”.

O ceticismo daqueles que tiram proveito da inércia e da omissão criticam o conceito ESG, que seria apenas uma espécie de marketing da sustentabilidade, mas que não se sustentará por muito tempo. Especialistas pagos pelos que têm a vocação de fabricar desertos, fazem “estudos” e se dedicam a palestras – pagas, é óbvio – para dizer que o Brasil tem um excesso de área verde. Chega-se a defender que esta Nação possui mais área verde do que sua própria dimensão territorial. Acredite quem quiser. Pesquise-se a serviço de quem se faz esse tipo de bizarrice, travestida de artigo científico.

Não se espere gesto sadio de parte do governo. Quem precisa agir é o empresariado, a Universidade, a Academia, as pessoas de bem, os brasileiros que não se conformam com o que está sendo reservado para as suas proles e a descendência que dela provirá.

Nós precisamos fazer com que haja mais Chicos Mendes, que Marina Silva e Fábio Feldman voltem a ocupar espaço na mídia espontânea, suscitar o surgimento de nossas “Gretas”. É impossível acreditar que não tenhamos crianças e jovens preocupados com o espetáculo de terror que ocupa todos os dias o noticiário, a relatar o crime que se perpetra em relação ao maior patrimônio brasileiro. Um patrimônio que está sendo eliminado, muito antes de se conhecer a sua real potencialidade como fator de resgate de uma economia combalida e deficitária, outro maléfico fruto da antipolítica perpetrada nestes tempos sombrios.

As redes sociais que têm servido para a polarização da sociedade brasileira, que disseminam falsidades, meias verdades, que ridicularizam figuras públicas, que semeiam ódio e secessão, precisam ser utilizadas para boas causas. A melhor e a mais urgente causa contemporânea é o meio ambiente. O Brasil já errou muito e está pagando por esses erros. Abandonou a ferrovia, para endeusar o automóvel. Usa combustível fóssil, um veneno que mata. Não dá educação de qualidade para suas crianças, que crescem também como se fossem inimigas do ambiente. Os seres racionais e sensatos – e eles ainda existem, por incrível que pareça – devem assumir a liderança dessas comunicações em rede, para acordar o Brasil. Enquanto é tempo. Há quem diga que o ponto de inflexão já foi superado. Mas vamos acreditar na possibilidade de mitigação dos males impostos ao ambiente, reajamos e deixemos de lado, para sempre, essa inconsciência conveniente. Estamos com as cabeças enterradas na areia e pretendemos não ouvir o que está acontecendo ao nosso lado.

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022

Bolívia vira santuário do Narcosul, o cartel da droga do PCC, Marcelo Godoy, OESP

 Marcelo Godoy, O Estado de S. paulo

18 de outubro de 2021 | 05h00

A dificuldade de atuação da Polícia Federal (PF) no país vizinho e a localização geográfica central na América do Sul transformaram a Bolívia no santuário do Narcosul, como os investigadores chamam o cartel que reúne representantes da cúpula do Primeiro Comando da Capital (PCC) e associados no tráfico internacional de drogas. Eles investem em joias, clínicas médicas, restaurantes, fazendas e passeiam em segurança com as famílias na região de Santa Cruz de La Sierra, centro do poder do grupo e rota de passagem da droga que, vinda do Peru e da Colômbia, se junta à cocaína propriamente boliviana.

Dali, os “narcos” brasileiros se locomovem em aviões e helicópteros para passar férias nas praias do Nordeste, onde fecham negócios com as ndrine, as famílias que integram a ’Ndrangheta, a máfia da Calábria. Mais poderosa das organizações criminosas da Itália, ela fica com 40% de toda a droga que o PCC negocia na Europa. Esse é o imposto para que os carregamentos de cocaína da América do Sul possam circular pelo continente. Ali, o quilo da droga, adquirido em Santa Cruz de La Sierra por US$ 1 mil, alcança até US$ 35 mil.

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Tráfico
No mês passado, após alerta da PF, autoridades bolivianas apreenderam Acetato de Etila utilizado no refino de cocaína Foto: Polícia Federal

Fotografias e mensagens inéditas apreendidas nos telefones celulares do traficante Anderson Lacerda Pereira, o Gordo, e informações das inteligências do sistema prisional, da PF e da Polícia Civil paulista mostram a ostentação e o cotidiano dos líderes do cartel. Dono de uma rede de clínicas médicas em São Paulo, Gordo estaria investindo no mesmo ramo na Bolívia.

“O Narcosul, o cartel do PCC, é a organização criminosa que mais cresce hoje no mundo”, afirma o procurador de Justiça Márcio Sérgio Christino, responsável em 2002 pela primeira denúncia contra a cúpula da facção, quando Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, começava a ascender ao topo do grupo.

LUCRO

Depois disso, muita coisa mudou. O lucro com o tráfico internacional de drogas, estimado em mais de R$ 1,5 bilhão por ano, cresceu tanto que a facção decidiu, em agosto passado, suspender a cobrança de mensalidade de R$ 950 de seus integrantes em liberdade.

Essa contribuição, chamada de Cebola, era obrigatória desde os anos 1990, e servia para manter despesas como o PCC TUR, os ônibus que levam de São Paulo familiares de encarcerados até presídios no oeste do Estado. Também era usada para pagar os serviços da Sintonia dos Gravatas, o departamento jurídico da facção, cestas básicas e outros serviços do chamado “populismo carcerário” da organização.

“Isso só foi possível graças ao tráfico internacional”, diz o promotor Lincoln Gakiya. Ameaçado de morte pelo PCC, Gakiya é responsável pela Operação Sharks, que identificou os chefes da facção que assumiram o controle da organização nas ruas depois do acerto de contas que matou, em 2018, Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue. O principal deles é Valdeci Alves dos Santos, o Colorido, de 49 anos.

Colorido é o responsável pela logística do tráfico feito em nome do grupo. Homens do PCC e seus associados podem comprar, transportar e vender da “família”, mas também mantém negócios pessoais. “Eles se unem para transportar em um mesmo caminhão, avião ou contêiner droga de mais um traficante”, afirma Gakiya.

Crime
Polícia achou fotos de aviões no celular de chefe do tráfico Foto: Polícia Civil

Integrantes da Polícia Federal ouvidos pelo Estadão apontam três razões para que o PCC aja com desenvoltura na Bolívia, apesar de o Brasil manter acordo de colaboração policial com o País. O primeiro seria a resistência da Polícia Nacional boliviana em atuar em parceria com a DEA, a agência antidrogas americana. A segunda, uma certa rivalidade com o Brasil e, por fim, a possibilidade de os narcotraficantes contarem com a proteção de policiais e militares corruptos.

Caso exemplar envolve a prisão de Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, sócio de Marcola e líder do Narcosul. Ele permaneceu 20 anos foragido e só foi apanhado em 2020, em Moçambique, por meio de uma ação que contou com a ajuda da DEA. Fuminho estava na África desde março de 2018 abrindo novas rotas de tráfico para o Oriente e para a Europa com a ajuda de nigerianos. O objetivo seria se livrar do pedágio da ’Ndrangheta e, assim, aumentar seus lucros.

Antes, morava na Bolívia sem ser incomodado. Comprou uma fazenda e produzia folhas de coca modificadas geneticamente, tornando-se sócio de produtores bolivianos. “Uma vez, uma equipe de investigadores brasileiros chegou a tê-lo a cinco metros de distância, na Bolívia, mas não pôde fazer nada”, conta Gakiya.

A Bolívia, segundo ele, ocupou a posição que nos anos 1990 era do Paraguai. Exemplo disso é que Marcola foi preso em 1999, em São Paulo, quando voltava do Paraguai, onde comprara uma fazenda. É na Bolívia que a facção mantém sua frota de aeronaves. “Fuminho tinha um Citation avião fabricado pela Cessna com o qual se deslocava”, diz Gakiya.

Hoje, essa frota é controlada por Colorido e pelos associados, como o Gordo. Nascido em Jardim de Piranhas, no Rio Grande do Norte, Colorido está foragido desde 2014, quando saiu do presídio de Valparaíso, interior paulista, após receber o benefício da saída temporária no Dias dos Pais.

Ele foi preso pela primeira vez em 1993, em Atibaia (SP), acusado de uma lesão corporal. Nos dez anos seguintes, seria acusado meia dúzia de vezes por tráfico, receptação, formação de quadrilha, falsidade ideológica e homicídio, até ser preso. Passou onze anos na cadeia, envolveu-se em duas rebeliões e ascendeu na facção. “Ele se tornou o principal articulador do tráfico internacional do PCC”, afirma Gakiya.

Na Bolívia, Colorido controla ainda uma frota de caminhões para o transporte da droga. Tem como braço direito Sérgio Luis de Freitas, o Mijão. Mijão seria dono de um restaurante em Santa Cruz de La Sierra. Outros traficantes da facção também investem parte do dinheiro na Bolívia. Nos quatro celulares de Lacerda, o Gordo, apreendidos pelo 4.º Distrito Policial de Guarulhos, em 2020, a perícia achou fotografias dele inspecionando aviões em Santa Cruz de La Sierra, além de festas e passeios de sua família no País. Ele ainda fotografou sedes de empresas e até mesmo reuniões com supostos fornecedores de droga em um bar. “As imagens mostram uma rotina absolutamente tranquila dele na Bolívia”, conta o delegado Fernando Santiago, que comandou a Operação Soldi Sporchi e está no Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc). 

Traficantes como Gordo usam criptomoedas nas transações internacionais. “Eles pagam até US$ 20 mil por ‘voo cego’ feito por pilotos de aeronaves para o Brasil”, afirma Lacerda. Gordo integra o grupo que cresceu na Baixada Santista, com laços fortes com a estiva do Porto de Santos. É aqui que entra aquele que é apontado pela PF como o maior traficante de drogas ligado à facção: trata-se de André de Oliveira Macedo, o André do Rap, que conta entre seus associados Suaélio Martins Leda, o Canam, e Moacir Levi Correia, o Bi da Baixada. Gordo, Leda, Correia e André do Rap foram soltos por decisões judiciais entre 2016 e 2020 – dois por meio de habeas corpus, um em razão da covid-19 e outro recebeu o direito de responder ao processo por tráfico em liberdade. “Todos estão operando a partir da Bolívia”, conta o delegado Rodrigo Costa, responsável pelo núcleo da PF que investiga a facção em São Paulo.

REFÚGIO

A Bolívia ainda é apontada como o refúgio de Marcos Roberto de Almeida, o Tuta, outro investigado na Operação Sharks. Tuta era adido comercial do consulado de Moçambique em Belo Horizonte e é apontado pela inteligência prisional como o chefe da facção nas ruas. O país africano era o destino de um carregamento de 5 toneladas de cocaína que a PF surpreendeu no dia 5, no porto do Rio. Escondida em caixas de sabão em pó, a carga foi a maior apreensão da história do Rio.

Da África, a droga iria para Las Palmas, na Espanha. A passagem por Moçambique era uma forma de driblar a vigilância das cargas vindas da América do Sul em portos europeus. Ela indica ainda uma nova rota do cartel – além dos portos de Santos e Itajaí (SC), a facção costuma usar Fortaleza, Recife e Natal para escoar a droga para Europa, África, Ásia e Estados Unidos. Recentemente, a facção teve um carregamento descoberto em Buenos Aires e, agora, no Rio.

Opinião Desesperança - OESP

 A imigração é uma faceta indissociável da identidade nacional. No século 19, à matriz de indígenas e descendentes de africanos e portugueses juntaram-se outras comunidades europeias, como alemães e italianos, acrescidas, no século 20, de imigrantes de partes mais distantes do mundo, como Síria, Líbano ou Japão. A partir da década de 60, o País deixou de ser um vasto celeiro de imigrantes e passou a exportar trabalhadores. Mas, então, a população ainda era jovem e as taxas de natalidade eram altas. As projeções para o século 21 são de que ela envelhecerá e encolherá. Mais do que nunca, seria o momento de implementar políticas para reter os brasileiros e estimular a imigração. Mas o que se vê é o contrário: o Brasil não só é cada vez menos atraente aos estrangeiros, como a fuga de brasileiros está se acentuando a níveis dramáticos.

Segundo o Ministério das Relações Exteriores, o número de brasileiros morando no exterior cresceu 35% na última década. Em 2010, eram 3,1 milhões. Em 2020, 4,2 milhões. O levantamento revela que o crescimento se concentrou nos últimos anos da década. Entre 2018 e 2020, a população de brasileiros morando fora do País teve acréscimo de 625 mil pessoas.

Em junho, o estudo Atlas das Juventudes, coordenado por várias entidades em parceria com a FGV Social, diagnosticou que, entre os jovens de 15 a 29 anos, 47% desejavam sair do Brasil, caso tivessem oportunidade. Segundo a pesquisa Broken-System Sentiment in 2021, realizada pela consultoria Ipsos em 25 países, a sociedade brasileira está no topo do ranking mundial de desalento. Para 69% dos brasileiros entrevistados, o Brasil é um país “em declínio”.

A desesperança parece se espraiar por todas as faixas etárias e sociais. É cada vez mais comum brasileiros de classe média e alta fugindo da violência para países como Portugal. A “fuga de cérebros” também se acentuou em meados da década. Só em 2020, os vistos de permanência nos EUA aos chamados “profissionais excepcionais” brasileiros cresceram 36% – enquanto os demais vistos caíram 48%.

A pandemia agravou o mal-estar. Entre outubro de 2020 e agosto de 2021, 47 mil migrantes brasileiros foram detidos na fronteira dos Estados Unidos com o México. É mais do que a soma dos 14 anos anteriores, quando 41 mil tentaram cruzar a fronteira. Isso mesmo com todas as dificuldades impostas pela pandemia. Historicamente, 90% dos brasileiros sem documentação ingressavam nos EUA com visto de turista e ficavam no país. Sem o recurso do visto de turista, os brasileiros passaram a enfrentar os riscos mortais das rotas ilegais, combinando vias terrestres, aéreas e marítimas. E isso a um custo muito mais alto.

Como mostrou reportagem do Estado, na rede mineira de “coiotes” – os criminosos que vendem a possibilidade de entrada ilegal nos EUA –, por exemplo, cobra-se R$ 40 mil por pessoa na modalidade “sem seguro” e R$ 80 mil “com seguro”. Com seguro, o migrante dá um valor de entrada e, se não conseguir ficar nos EUA, não paga mais nada. Sem seguro, seja qual for o resultado, fica-se com a dívida.

Por outro lado, as recentes ondas de imigrantes recebidas pelo Brasil decorrem muito menos da esperança de criar uma família e desenvolver uma carreira no Brasil do que do desespero em relação aos seus países. É ele que motiva as dezenas de milhares de bolivianos, venezuelanos e haitianos que vêm buscando refúgio no Brasil.

Esses dados mostram uma triste reversão. O Brasil – em que pese as cicatrizes de seu passado escravocrata – é uma das maiores democracias multiétnicas do mundo, só comparável aos EUA em diversidade. Mas o seu grau de miscigenação é incomparável. Na era da globalização, esse deveria ser um ativo para atrair cada vez mais estrangeiros, ampliando continuamente a riqueza da pluralidade. Mas, longe de ser um País acolhedor aos estrangeiros, o Brasil gera cada vez mais desesperança em seus próprios cidadãos. Às vésperas de novas eleições nacionais, esse mal-estar deveria motivar um profundo exame de consciência por parte de todos os brasileiros, em especial daqueles que se propõem a liderar o País.