sábado, 30 de janeiro de 2021

O último Silveira, Sergio Augusto, Oesp

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo

30 de janeiro de 2021 | 03h00

Perdi mais um amigo de covid. Virou rotina. Cismei de contabilizar as perdas que mais intensamente me atingiram nos últimos 10 meses, e só me lembrei de três exceções ao flagelo virótico: Nirlando Beirão, Pete Hamill e Zuza Homem de Mello, abatidos por outras enfermidades. No início da semana, o vírus nos levou José Silveira, um dos últimos moicanos da era de ouro do jornalismo.

Não conheci ninguém que não o admirasse como profissional, e daria para contar nos dedos os que não têm ao menos uma história divertida com ou sobre ele dentro de uma redação ou fora dela. Em todos os jornais por onde andou – Última Hora, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, além do Estadão – muito ensinou até a quem acreditava já saber tudo sobre como fechar uma edição, encontrar o melhor título para uma reportagem, limpar as impurezas de um texto e cortar uma foto para dar mais realce gráfico à primeira página.     

Secretário de redação incomparável, uma de suas mais decantadas proezas – reduzir um artigo de oito laudas de Antonio Houaiss a duas, sem deixar nada de fora – entrou para o folclore do jornalismo, com ajuda suplementar de Paulo Francis, que adorava relembrá-la, até porque achava Houaiss verborrágico e rebuscado além da conta.

Tive o privilégio de conviver com três Silveiras memoráveis: o editor de livros Ênio Silveira (1925-1996) e os jornalistas José e Joel Silveira, que não eram parentes e até hoje são vez por outra confundidos por quem não é do ramo. O gaúcho Zé Silveira, que morreu quatro dias atrás, aos 87, não foi o “melhor repórter da imprensa brasileira em todos os tempos” conforme exaltado e pranteado por mais de um internauta, no meio da semana. O repórter aludido era o sergipano Joel, que se foi com um ano a mais de idade, em agosto de 2008.

Nunca soube se os dois chegaram a ser amigos. Conheci ambos na mesma época, começo dos anos 60, mas, no Correio da Manhã, convivi apenas com o Zé Silveira, que, levado por Jânio de Freitas, chefiou por alguns meses o copy desk do jornal. Reencontrei-o, pouco tempo depois, no Jornal do Brasil e, em 1981, a ele e Jânio, na sucursal carioca da Folha. 

Poucos colegas me inspiraram tanto respeito e reverente temor quanto ele. E eu nem trabalhava no copy; receava-o a distância. Suas observações, com frequência irônicas, eram microlições de sabedoria e acuidade jornalística. 

Ele era o manual de redação antropoide do JB. Corrigia palavras que, nos textos, sobravam ou descabiam. Em seu índex abundavam as banalidades e os chavões consagrados pela imprensa como “via de regra”, “abordado pela reportagem”, “morreu ao dar entrada no hospital”, “o morto deixou mulher e filhos”. Embora pudesse dizer que “via de regra é vagina”, como outros já haviam dito, apenas comentava: “As mulheres sabem do que se trata”. 

Para o “Seu Silveira”, repórter não aborda, os piratas sim; e as pessoas só morrem na entrada do hospital se nela houver uma guilhotina. “Mulher e filhos nunca são deixados pelo marido ao morrer; eles é que não quiseram ir com ele de jeito nenhum”, esclarecia, em tom quase professoral.

Chefiado por Alberto Dines, ele ajudou a bolar aquela histórica primeira página sem manchete e sem foto, só com um texto corrido sobre a morte de Allende, em setembro de 1973. A Censura do general Médici proibira a publicação de manchetes e fotos sobre o golpe no Chile. Sem desobedecer à ordem dos milicos, o JB logrou chegar às bancas com uma primeira página dez vezes mais impactante.

Seu parônimo sergipano glorificou-se como repórter, o melhor de sua geração. Comandou algumas redações, mas se esbaldava mesmo era gastando a sola dos sapatos e esquentando as orelhas ao telefone, na trilha de uma reportagem. Até o final da vida, lamentou haver desperdiçado a chance de entrevistar Hemingway e nunca haver descoberto o que Tancredo Neves, tão logo eleito presidente, foi conversar, sigilosamente, com o general Ernani Ayrosal, um dos esteios do golpe de 1964, em seu apartamento (dele, Joel), em Copacabana. Pior: em seu quarto de dormir.

Joel cobriu a Segunda Guerra para os Diários Associados, por escolha pessoal de Assis Chateaubriand, impedido pela ditadura do Estado Novo de enviar para o front o repórter Carlos Lacerda. Seus relatos da campanha na Itália têm momentos de alta ficção e podem ser lidos até hoje, em livros antológicos, entre os quais destaco O Inverno na Guerra, com um tocante desfecho cinematográfico.

Por conta, sobretudo, de duas brilhantes reportagens sobre hábitos e extravagâncias da elite burguesa paulistana, publicadas na revista Diretrizes, de Samuel Wainer, Joel acabou justamente consagrado como o pioneiro entre nós do que se convencionou chamar de “jornalismo literário”. 

Nunca apurei por que, mas sempre que me encontrava, abria os braços e exclamava: “Flor do Lácio!”, como se fosse mais um apelido do que um elogio. Era uma víbora, no sentido de maledicente, traço que Chateaubriand talvez tenha sido o primeiro a perceber e exaltar como sua segunda maior virtude. Adorava Beethoven e execrava turistas, alpinistas, “tocadores de cavaquinho gordos” – e João Gilberto. 

Dos colaboradores do Pasquim, ninguém enviava mais notas para a seção de Dicas. Não dava para publicar todas; mas ele jamais se queixou da seleção que eu, como editor da seção, era obrigado a fazer. Se não tinha a quem pichar, mandava um pau, o mais das vezes gratuito, no seu Bei de Túnis, João Gilberto. Mas é claro que não foi por isso que o prenderam sete vezes durante a ditadura militar.

É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’ 

HUMANOS DA FOLHA -Pacato, Lourenço Diaféria publicou crônica que gerou crise com militares, FSP

 Fábio Zanini

SÃO PAULO

O autor de um dos textos mais explosivos já publicados pela Folha nunca teve vocação para incendiário.

Lourenço Diaféria chegava na Redação, sentava-se num canto da bancada em “U” que correspondia à Ilustrada, entregava sua crônica e logo ia embora, lembra Helô Machado, editora do caderno no final da década de 1970.

O cronista Lourenço Diaféria, que irritou militares com uma coluna com menções a Duque de Caxias, em foto de 1978 - Folhapress

Oswaldo Mendes, que foi subsecretário de Redação, recorda-se dele como um sujeito pacato. Para Boris Casoy, que foi editor-chefe da Folha, Diaféria era um “cronista ingênuo”, sem viés político. “Se fosse um quadro, seria de arte naif”, diz.

Não foi pequeno o choque de seus colegas, portanto, que tivessem sido de sua autoria as 600 palavras que provocaram um terremoto no jornal no ano de 1977.

Publicado em 1º de setembro, o texto “Herói. Morto. Nós” começava rendendo elogios ao sargento do Exército Silvio Holenbach, que morreu após salvar um garoto que havia caído em um poço de ariranhas no zoológico de Brasília.

Seria apenas mais uma coluna lançando um olhar original sobre fatos do dia a dia, sua especialidade, se logo em seguida Diaféria não tivesse feito uma comparação que irritaria profundamente o regime militar.

“E, todavia, eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao Duque de Caxias”, escreveu, para, nos parágrafos seguintes, pisar no acelerador.

“O Duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua”, acrescentou, fazendo referência a uma estátua do patrono do Exército na praça Princesa Isabel, perto da Redação da Folha, no centro de São Paulo.

“O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal”, arrematou.

Coluna do jornalista Lourenço Diaféria do dia 1º.set.1977
Coluna do jornalista Lourenço Diaféria do dia 1º.set.1977 - Reprodução

Publicado na página 44 do jornal, tomando todo o espaço de uma coluna vertical, o texto provocou imediata reação da linha dura militar.

Boris lembra de ter recebido um telefonema do general Dilermando Gomes Monteiro, então comandante do Segundo Exército. À época editor da coluna Painel, ele tinha contato frequente com fontes militares.

“Me ligou dizendo que era muito importante, muito grave”, recorda-se. Ao ir ao encontro do general, soube que o texto havia sido considerado uma grave ofensa pelos militares, especialmente porque publicado perto da Semana da Pátria.

A coluna, recorda-se Boris, passou despercebida pelo comando da Redação, à época encabeçada pelo jornalista Claudio Abramo, talvez porque seu conteúdo não fosse visto como particularmente inflamável.

Era apenas mais uma crônica do paulistano Diaféria, que havia começado como redator no jornal em 1956, aos 23 anos, e escrevia colunas desde 1964.

Mas o caso acabou ganhando magnitude pelo contexto do momento. Havia uma disputa entre a linha-dura, representada pelo ministro do Exército, Sylvio Frota, e o presidente Ernesto Geisel, que promovia uma abertura controlada. Punir Diaféria virou um troféu para o grupo de Frota.

“Ficamos todos muito putos. Estava todo mundo a par do fato de que o Lourenço era só um bode expiatório naquele momento”, diz Mendes, que também foi editor do Folhetim, suplemento dominical de cultura.

Por causa do clima pesado na caserna, o regime não deu trégua, e no dia 15 de setembro Diaféria foi preso em sua casa e levado para um prédio da Polícia Federal na rua Piauí, em Higienópolis. Foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, com inquérito aberto a pedido de Frota.

A Folha reagiu já no dia seguinte, num ato que tornou ainda mais pesado o clima com os militares. Além de anunciar a prisão no alto da primeira página, tomou a atitude inédita de deixar em branco o espaço dedicado à coluna do colaborador preso.

Coluna censurada do jornalista Lourenço Diaféria do dia 16.set.1977
Coluna censurada do jornalista Lourenço Diaféria do dia 16.set.1977 - Reprodução

“Eu lembro de ter pensado: ‘nossa, mas que grande ideia’. Achei muito bacana. Mas depois veio um clima de terror. A mulher dele estava muito assustada”, diz Machado.

O gesto, visto como provocador pelo Exército, aumentou o temor de alguma retaliação contra Diaféria. “A gente tinha o caso recente do Vladimir Herzog [jornalista assassinado nas dependências do Doi-Codi em 1975]”, afirma ela.

O general Hugo Abreu, chefe da Casa Militar, chegou a telefonar para Octavio Frias de Oliveira, então publisher do jornal, em tom ameaçador, lembra Boris. O recado era claro: se a coluna saísse em branco mais uma vez, a própria sobrevivência da Folha estava em risco.

Em 17 de setembro, enquanto o jornal e o advogado do colunista tentavam libertá-lo, colegas publicaram na Folha um manifesto de solidariedade a ele.

Com 167 assinaturas, mas sem que os nomes fossem divulgados, dizia que Diaféria era “moderado e cordato” e demonstrava “não compactuar com radicalismos e não ter compromissos ideológicos com extremismos”.

O colunista acabou libertado em 20 de setembro, cinco dias depois de ser preso. Na saída, disse que foi tratado “com decência e dignidade”, sem sofrer torturas.

O episódio, embora efêmero, deixou marcas profundas no jornal, sendo a principal a substituição do marxista assumido Abramo por Boris, que nada tinha de esquerdista.

Outro efeito, lembra Boris, foi que a personalidade serena do colunista deu lugar a uma pessoa mais fechada.

“Ele sofreu um trauma emocional. Era um homem voltado para o fraterno, o divino, a amizade, a ecologia. Não era um lutador pela redemocratização. Ele destoava da Redação, que era muito politizada, muito de esquerda”, diz.

Machado diz que Diaféria nunca usava seu espaço como plataforma de oposição. “Ele escrevia com o coração. Falava das coisas de forma leve, delicada, meio engraçada”. O texto polêmico, avalia, foi escrito sem que ele imaginasse as consequências que poderia gerar.

Diaféria seguiu colaborando com o jornal após o episódio, mas de maneira mais pontual.

Mendes, que depois seguiu carreira como ator e autor de teatro, lembra de ter pautado o colunista para uma das últimas entrevistas dadas por Nelson Rodrigues, em 1979. “Ele era muito popular com os leitores, então a gente teve a ideia de pedir que fizesse a entrevista, porque o Nelson viria a São Paulo para a estreia de sua peça ‘A Falecida’. Era uma ocasião importante”, afirma.

Ao se afastar aos poucos do jornal na década de 1980, Diaféria seguiu sua carreira de escritor, publicando diversos livros de crônicas, até morrer em 2008, aos 75 anos.

Mais de quatro décadas depois de ter se tornado personagem acidental da luta contra a ditadura, seu texto mais controverso não envelheceu. A estátua de Duque de Caxias continua oxidada no centro de São Paulo, ignorada pela multidão que percorre a avenida Rio Branco, atraindo pombas ao entardecer.

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30/01/2021 | 05h00

 Por Gillian Friedman - The New York Times