O autor de um dos textos mais explosivos já publicados pela Folha nunca teve vocação para incendiário.
Lourenço Diaféria chegava na Redação, sentava-se num canto da bancada em “U” que correspondia à Ilustrada, entregava sua crônica e logo ia embora, lembra Helô Machado, editora do caderno no final da década de 1970.
Oswaldo Mendes, que foi subsecretário de Redação, recorda-se dele como um sujeito pacato. Para Boris Casoy, que foi editor-chefe da Folha, Diaféria era um “cronista ingênuo”, sem viés político. “Se fosse um quadro, seria de arte naif”, diz.
Não foi pequeno o choque de seus colegas, portanto, que tivessem sido de sua autoria as 600 palavras que provocaram um terremoto no jornal no ano de 1977.
Publicado em 1º de setembro, o texto “Herói. Morto. Nós” começava rendendo elogios ao sargento do Exército Silvio Holenbach, que morreu após salvar um garoto que havia caído em um poço de ariranhas no zoológico de Brasília.
Seria apenas mais uma coluna lançando um olhar original sobre fatos do dia a dia, sua especialidade, se logo em seguida Diaféria não tivesse feito uma comparação que irritaria profundamente o regime militar.
“E, todavia, eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao Duque de Caxias”, escreveu, para, nos parágrafos seguintes, pisar no acelerador.
“O Duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua”, acrescentou, fazendo referência a uma estátua do patrono do Exército na praça Princesa Isabel, perto da Redação da Folha, no centro de São Paulo.
“O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal”, arrematou.
Publicado na página 44 do jornal, tomando todo o espaço de uma coluna vertical, o texto provocou imediata reação da linha dura militar.
Boris lembra de ter recebido um telefonema do general Dilermando Gomes Monteiro, então comandante do Segundo Exército. À época editor da coluna Painel, ele tinha contato frequente com fontes militares.
“Me ligou dizendo que era muito importante, muito grave”, recorda-se. Ao ir ao encontro do general, soube que o texto havia sido considerado uma grave ofensa pelos militares, especialmente porque publicado perto da Semana da Pátria.
A coluna, recorda-se Boris, passou despercebida pelo comando da Redação, à época encabeçada pelo jornalista Claudio Abramo, talvez porque seu conteúdo não fosse visto como particularmente inflamável.
Era apenas mais uma crônica do paulistano Diaféria, que havia começado como redator no jornal em 1956, aos 23 anos, e escrevia colunas desde 1964.
Mas o caso acabou ganhando magnitude pelo contexto do momento. Havia uma disputa entre a linha-dura, representada pelo ministro do Exército, Sylvio Frota, e o presidente Ernesto Geisel, que promovia uma abertura controlada. Punir Diaféria virou um troféu para o grupo de Frota.
“Ficamos todos muito putos. Estava todo mundo a par do fato de que o Lourenço era só um bode expiatório naquele momento”, diz Mendes, que também foi editor do Folhetim, suplemento dominical de cultura.
Por causa do clima pesado na caserna, o regime não deu trégua, e no dia 15 de setembro Diaféria foi preso em sua casa e levado para um prédio da Polícia Federal na rua Piauí, em Higienópolis. Foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, com inquérito aberto a pedido de Frota.
A Folha reagiu já no dia seguinte, num ato que tornou ainda mais pesado o clima com os militares. Além de anunciar a prisão no alto da primeira página, tomou a atitude inédita de deixar em branco o espaço dedicado à coluna do colaborador preso.
“Eu lembro de ter pensado: ‘nossa, mas que grande ideia’. Achei muito bacana. Mas depois veio um clima de terror. A mulher dele estava muito assustada”, diz Machado.
O gesto, visto como provocador pelo Exército, aumentou o temor de alguma retaliação contra Diaféria. “A gente tinha o caso recente do Vladimir Herzog [jornalista assassinado nas dependências do Doi-Codi em 1975]”, afirma ela.
O general Hugo Abreu, chefe da Casa Militar, chegou a telefonar para Octavio Frias de Oliveira, então publisher do jornal, em tom ameaçador, lembra Boris. O recado era claro: se a coluna saísse em branco mais uma vez, a própria sobrevivência da Folha estava em risco.
Em 17 de setembro, enquanto o jornal e o advogado do colunista tentavam libertá-lo, colegas publicaram na Folha um manifesto de solidariedade a ele.
Com 167 assinaturas, mas sem que os nomes fossem divulgados, dizia que Diaféria era “moderado e cordato” e demonstrava “não compactuar com radicalismos e não ter compromissos ideológicos com extremismos”.
O colunista acabou libertado em 20 de setembro, cinco dias depois de ser preso. Na saída, disse que foi tratado “com decência e dignidade”, sem sofrer torturas.
O episódio, embora efêmero, deixou marcas profundas no jornal, sendo a principal a substituição do marxista assumido Abramo por Boris, que nada tinha de esquerdista.
Outro efeito, lembra Boris, foi que a personalidade serena do colunista deu lugar a uma pessoa mais fechada.
“Ele sofreu um trauma emocional. Era um homem voltado para o fraterno, o divino, a amizade, a ecologia. Não era um lutador pela redemocratização. Ele destoava da Redação, que era muito politizada, muito de esquerda”, diz.
Machado diz que Diaféria nunca usava seu espaço como plataforma de oposição. “Ele escrevia com o coração. Falava das coisas de forma leve, delicada, meio engraçada”. O texto polêmico, avalia, foi escrito sem que ele imaginasse as consequências que poderia gerar.
Diaféria seguiu colaborando com o jornal após o episódio, mas de maneira mais pontual.
Mendes, que depois seguiu carreira como ator e autor de teatro, lembra de ter pautado o colunista para uma das últimas entrevistas dadas por Nelson Rodrigues, em 1979. “Ele era muito popular com os leitores, então a gente teve a ideia de pedir que fizesse a entrevista, porque o Nelson viria a São Paulo para a estreia de sua peça ‘A Falecida’. Era uma ocasião importante”, afirma.
Ao se afastar aos poucos do jornal na década de 1980, Diaféria seguiu sua carreira de escritor, publicando diversos livros de crônicas, até morrer em 2008, aos 75 anos.
Mais de quatro décadas depois de ter se tornado personagem acidental da luta contra a ditadura, seu texto mais controverso não envelheceu. A estátua de Duque de Caxias continua oxidada no centro de São Paulo, ignorada pela multidão que percorre a avenida Rio Branco, atraindo pombas ao entardecer.
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