segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Pandemia deixou óbvio que vivemos em um país desgovernado, diz Frei Betto, FSP

 Fernanda Canofre

BELO HORIZONTE

Os meses de pandemia do novo coronavírus no Brasil têm sido de isolamento para Frei Betto, 76. Dividindo-se entre o convento dominicano, em São Paulo, e um sítio, entre palestras virtuais e a escrita, ele conta que sai apenas esporadicamente para ir a consultas médicas de rotina.

As reflexões sobre os primeiros três meses deste período foram reunidas recentemente em “Diário de Quarentena – 90 dias em Fragmentos Evocativos”, publicado pela editora Rocco.

Este é o mais recente da lista de 69 livros assinados pelo frade dominicano, reunião de ensaios, artigos, registros de notícias sobre o avanço da Covid-19, poemas, memórias da ditadura e de pessoas próximas, como frei Tito, amigo que foi torturado pelo regime.

“Colocar no papel ou computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico”, diz ele, em um dos trechos, onde sugere escrever um diário entre as dicas de como enfrentar a reclusão forçada, lembrando os dias em que foi mantido em solitárias nos Dops (Departamento de Ordem Político Social) de Porto Alegre e de São Paulo.

Apenas no estado de São Paulo, ele conta que ainda foi mantido no quartel-general da Polícia Militar, no Batalhão da Rota, na Penitenciária do Estado, no Carandiru e na Penitenciária de Presidente Venceslau.

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A lista de dicas é endereçada a um homem, casado há mais de 20 anos, hipertenso, e que resiste a ficar em casa, para angústia da mulher. Os dois aparecem em entradas variadas pelo diário, e ele acaba contraindo o vírus no decorrer do primeiro mês de uma quarentena que ainda teria muito tempo pela frente.

Homem de camisa rosa e óculos com jardim ao fundo
Frei Betto, frade dominicano e escritor, que lançou o livro 'Diário de Quarentena: 90 Dias em Fragmentos Evocativos' - Karime Xavier/Folhapress

Ao pedido de entrevista da Folha, Frei Betto preferiu que a conversa fosse por email, pelo qual respondeu sobre a pandemia e questões políticas do cenário nacional, como as eleições municipais e o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), a quem chama de BolsoNero, em referência ao imperador de Roma.

Frei Betto, que foi assessor especial da Presidência da República em 2003 e 2004, no governo Lula, diz no "Diário" que a mineirice o preservou de ambições políticas e que o maior erro da esquerda foi o abandono do trabalho de base.

“Lembre-se de que jamais fui militante de qualquer partido político. A meu respeito correm duas lendas sem respaldo na verdade e na realidade: a de que sou sacerdote (sou apenas um religioso leigo) e militante partidário”, ressaltou ele durante a correspondência virtual com a reportagem.

O seu livro mais recente, de um total de 69 publicados, traz textos que o senhor escreveu num período de três meses de quarentena. O senhor acha que alguma lição foi tirada da pandemia? Ficou óbvio que vivemos num país desgovernado, cujos quase 200 mil mortos pela pandemia foram vítimas de um presidente que sofre de tanatomania.

O Brasil voltou a registrar mais de mil mortos em um único dia em decorrência do novo coronavírus. Como estamos encarando essas mortes? Parece que a nossa população sofre também de isolamento psicológico. Esse genocídio, causado pelo descaso do governo, bem como as tragédias de Mariana Brumadinho, deveriam suscitar grandes mobilizações populares, como ocorreu nos casos George Floyd e, aqui, João Alberto. Perdemos a empatia. O sofrimento do outro não dói em nós. Mas devemos guardar o pessimismo para dias melhores.

O senhor se considera otimista, então, hoje? Tudo que os demolidores, como BolsoNero, querem é que percamos o ânimo e fiquemos à mercê de seus arroubos autoritários. Quando constato que, numa cidade conservadora como São Paulo, Guilherme Boulos passou para o segundo turno e teve mais de 2 milhões de votos, a esperança renasce. O bolsonarismo foi o grande derrotado nessas eleições municipais, como será varrido do mapa em 2022.

Em entrevista recente ao jornal argentino Página 12, o senhor disse que as eleições deste ano seriam um termômetro interessante para avaliar o olhar do população. Pela primeira vez desde 1985, o PT ficou sem governo nas capitais. Qual a leitura o senhor faz desse resultado? Enquanto os partidos progressistas não tiverem consenso em torno de um Projeto Brasil, continuarão sem condições de produzir uma alternativa de poder. E precisam retomar o trabalho de base popular. A cabeça pensa onde os pés pisam. ​

Qual foi o erro que levou a esse resultado em 2020? Em 2018, a direita soube manipular muito bem, em especial pelas redes digitais, o antipetismo alimentado pelas tramoias da Lava Jato que fomentaram uma narrativa moralista capaz de induzir muitos a esquecerem os avanços, sobretudo na área social, dos 13 anos de governo do PT. Já em 2020 PT, PSOL e PC do B deveriam ter feito mais alianças. Agora, é hora de retomar o trabalho de base popular e definir estratégias na guerra digital.

O que o PT precisa fazer para reverter isso em 2022? E como o senhor vê a figura do ex-presidente Lula nesse contexto? Lula é o mais importante líder popular do Brasil. Tem o papel fundamental de articular esse Projeto Brasil criando, agora, um fórum de partidos e movimentos sociais progressistas.

Lula deveria articular esse projeto em torno de si ou com um novo nome? Quem o senhor vê hoje como sucessor dele? Para 2022 a oposição, se lograr unidade, conta com ótimos candidatos: Lula, Boulos e Flávio Dino são três exemplos. Considero Lula um ótimo candidato a presidente em 2022 [o ex-presidente, porém, hoje está barrado pela Lei da Ficha Limpa]. Quanto ao Projeto Brasil, deverá resultar da articulação entre os partidos progressistas e os movimentos sociais.

Em 2021, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) completa cinco anos. O senhor chegou a dizer que Lula devia estar arrependido por não ter sido ele o candidato em 2014. Continua pensando assim? Sim, Lula deveria ter sido candidato em 2014. Com o patrimônio de dois mandatos presidenciais e 87% de aprovação, o PT não teria que, de novo, começar do zero. Dilma foi bem no primeiro mandato, mas perdeu o rumo no segundo.

Quais lições ficaram destes últimos cinco anos? Fora do povão não há salvação. O afastamento dos partidos progressistas das periferias, favelas e zonas rurais pobres, o refluxo das comunidades eclesiais de base, devido aos pontificados conservadores de João Paulo 2º e Bento 16, abriram espaço, no universo dos marginalizados e excluídos, ao fundamentalismo religioso que alavancou a eleição de BolsoNero.

Temos que fortalecer os movimentos sociais e começar a sinalizar que é uma falácia candidaturas de centro à Presidência da República.

Todos que, agora, se fantasiam de centro são, na verdade, convictos defensores das pautas políticas e econômicas da direita, como a prevalência da apropriação privada da riqueza sobre os direitos coletivos e o 'direito' de as empresas brasileiras sonegarem mais de R$ 400 bilhões por ano. Nenhum deles aprovará uma reforma tributária progressiva, que afete a fortuna dos mais ricos e favoreça os mais pobres.

Bolsonaro sempre tentou se aproximar do voto cristão, de católicos e evangélicos. Como um religioso, o que o senhor acha dessa postura? Ele usa e abusa do nome de Deus em vão. Um presidente que libera armas, que matam, e trava vacinas, que salvam vidas, se compara àqueles que Jesus qualificou de 'sepulcros caiados'.

Em um discurso deste ano na ONU, ele falou sobre "combate à cristofobia". Existe cristofobia no Brasil? Só na cabeça dele, que ainda procura assustar o povo com o fantasma do comunismo, mantém um ministro que passa a boiada por cima de todos os princípios de preservação ambiental e um outro que isola o Brasil, agora órfão da tutela da Casa Branca.

O senhor viveu a repressão da ditadura militar e teve pessoas próximas mortas pelo regime. Como encarou a eleição de Bolsonaro? Como uma tragédia consentida pelo Judiciário, pois como apologista da tortura, da ditadura, do racismo, da misoginia e do golpismo, deveria ter sido impedido de se candidatar.

No último texto que publicou nesta Folha, em outubro deste ano, o senhor critica a decisão judicial que proibia o uso de "católicas" no nome do grupo Católicas pelo Direito de Decidir. O senhor também publicou aqui uma carta de uma neocristã que fez um aborto. Qual a posição do senhor sobre o tema? Aprovo o sistema francês, no qual tudo se faz para evitá-lo mas, em última instância, a decisão é da mulher. Já propus a várias jovens que, surpreendidas com uma gravidez inesperada, vieram ao convento com seu drama de consciência: tenham o filho e tragam aqui que eu crio. Nenhuma, que eu saiba, abortou. E ganhei um monte de afilhados...

O senhor também fez parte do Fome Zero. Como vê a questão do enfrentamento à fome hoje? Um dos escândalos da atualidade é o fato de a Covid-19 já ter matado quase 1,7 milhão de pessoas no mundo, o que provoca fantástica mobilização em busca da erradicação do vírus, enquanto a fome mata cerca de 24 mil pessoas por dia, 9 milhões por ano, e quase ninguém se mobiliza. Por quê? Porque a fome faz distinção de classe, a Covid não.

O Brasil saiu do mapa da fome em 2014 e, agora, corre o risco de retornar. Segundo a Oxfam, 5,2 milhões de pessoas passam fome no Brasil, sem contar os que não ingerem os nutrientes essenciais, como proteínas e vitaminas.

A fome é o retrato mais cruel da desigualdade social no Brasil. E, apesar disso, o governo Bolsonaro erradicou o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] e mantém total indiferença à questão da segurança alimentar, embora o nosso país seja considerado 'celeiro do mundo'.

RAIO-X

Frei Betto, 76
Frade dominicano e escritor, nasceu em Belo Horizonte. Preso duas vezes durante a ditadura militar, foi assessor especial da Presidência da República no governo Lula, de 2003 a 2004, e coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero. Tem 69 livros publicados. É assessor de movimentos sociais e da FAO/ONU para questões de soberania alimentar e educação nutricional

O QUE A FOLHA PENSA Filme antigo, FSP

 A tese é recorrente na esquerda brasileira: faz-se necessária uma frente ampla contra o adversário da vez, sem restrições a variadas forças políticas —desde que eu esteja à frente da iniciativa.

O eu em questão é o PT de Luiz Inácio Lula da Silva, ainda o principal partido do campo no Brasil, apesar do encolhimento de sua relevância demonstrado pelo minguado resultado eleitoral em 2020.

A sigla orbita a figura de Lula, flertando perigosamente com um ocaso personalista de sua maior liderança, que parece ter perdido o norte político após deixar a cadeia.

O sectarismo e o anacronismo pautam a vida partidária, com a presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, servindo de advogada de defesa da indesculpável ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela sempre que a oportunidade se coloca.

A dirigente chegou a criticar o futuro presidente americano, Joe Biden, dizendo que Barack Obama havia acobertado casos de corrupção dele nos tempos de vice.

O motivo? Em livro, o ex-presidente afirmara ter ouvido falar das suspeitas de corrupção de Lula.

Quando o cacique petista foi condenado e preso, impedido legalmente como ainda está de participar de eleições, a sigla preferiu insistir no embuste de apresentá-lo na disputa ao Planalto em 2018.

Fernando Haddad assumiu o papel de poste e a chapa surfou nos votos que Lula ainda era capaz de amealhar, sendo derrotada por Jair Bolsonaro no segundo turno sem conseguir apoios expressivos.

Talvez esperançoso por uma nova chance, Haddad lançou no fim do ano passado a candidatura do ex-chefe em 2022, algo que depende de um complexo arranjo legal.

Preterido pelo PT, o terceiro colocado em 2018, Ciro Gomes (PDT), responsabiliza corretamente o partido pela desunião da esquerda. Esse é um filme antigo para todos os que negociaram alianças com Lula.

Assim, desponta como oportunidade a disputa pela presidência da Câmara, que oporá uma aliança de centro-direita —apoiada pelo atual ocupante da cadeira, Rodrigo Maia (DEM-RJ)— e o candidato de Bolsonaro, o prócer do centrão Arthur Lira (PP-AL).

O nome de Maia, Baleia Rossi (MDB), busca unir toda a oposição ao Planalto. Como disse o deputado demista, o movimento pode ser visto como um ensaio geral para o pleito do ano que vem.

O PT, claro, protestou. Gleisi disse que uma coisa não tem nada a ver com a outra, e a agremiação postergou sua decisão para este mês.

É óbvio que o petismo não irá apoiar em 2022 um candidato do grupo de Maia, como João Doria (PSDB-SP). Mas conceder a Bolsonaro a possibilidade de comandar a agenda legislativa nos dois últimos anos de seu mandato, com um apoio tácito a Lira, apenas confirmará a miopia política da legenda.

editoriais@grupofolha.com.br

domingo, 3 de janeiro de 2021

Acre tinha rede densa de estradas entre aldeias antes da vinda de europeus, FSP

 Reinaldo José Lopes

SÃO CARLOS (SP)

Pouco antes da chegada dos europeus à América do Sul, as florestas do Acre eram cortadas por uma rede relativamente densa de estradas, que podiam alcançar alguns quilômetros de extensão e conectavam aldeias construídas em cima de pequenos morros artificiais.

A descoberta, feita por cientistas do Brasil, do Reino Unido e da Finlândia, reforça a ideia de que a Amazônia pré-cabralina contava com população considerável, formada por sociedades que já alteravam a mata de maneira significativa naquela época. No caso acreano, os achados parecem estar ligados a outro mistério arqueológico da região, os célebres geoglifos —grandes desenhos geométricos no solo que vêm sendo identificados por observações aéreas nas últimas décadas.

“Em alguns casos, as aldeias e estradas estão localizadas literalmente ao lado dos geoglifos. Existe alguma interpolação entre as duas coisas”, conta Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Contudo, enquanto a rede de estradas e aldeias tem idades que ficam entre 700 anos e 400 anos, os geoglifos são mais antigos, tendo sido traçados entre 3.000 anos e 1.000 anos atrás.

“Eles [os construtores das estradas] provavelmente sabiam que estavam ocupando paisagens que resultavam de processos mais antigos e centenários”, diz Neves, que é um dos autores do estudo descrevendo as descobertas, publicado recentemente no periódico científico Latin American Antiquity.

Também assinam o trabalho Francisco Pugliese, da Universidade de Brasília, Sanna Saunaluoma, da Universidade de Turku (Finlândia), e Justin Moat, dos Jardins Botânicos Reais de Kew, em Londres.

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Usando uma combinação de escavações tradicionais, análise de imagens de satélite e exploração do terreno com ajuda de drones, a equipe identificou, por enquanto, 18 sítios arqueológicos conectados pela rede de estradas na região do rio Iquiri (veja infográfico). Em geral, as aldeias têm área de até três hectares, ocupando uma área plana e com formato circular ou elíptico.

Esses círculos ou elipses são formados por algo entre 15 e 25 tesos —montículos artificiais, formados pela acumulação de terra—, que podem medir até 25 metros de comprimento e 2,5 metros de altura. No centro da área delimitada pelos tesos ficava uma espécie de terreiro. Cada aldeia antiga é cortada por múltiplas estradas retas, com largura de até 6 metros, e os trechos mapeados até agora sugerem que elas serviam não apenas para ligar um assentamento ao outro como também para facilitar o acesso da população pré-histórica aos cursos d’água da região.

Além disso, parece haver certa conexão entre as estradas das aldeias e as que passavam pelos geoglifos. A diferença entre os dois tipos de construção provavelmente tem a ver com suas funções. As escavações feitas até hoje nos geoglifos encontraram pouquíssimos restos de cerâmica, o que faz os arqueólogos postularem que os desenhos geométricos (quadrados, círculos, losangos etc., demarcados com fossos e valetas) tivessem função ritual, desempenhando o papel de espaços sagrados na região.

Já as áreas marcadas pelos tesos e pela rede de estradas possuem uma diversidade bem maior de cerâmica, em geral para uso doméstico, bem como machados de pedra polida. Tais artefatos vêm dos tesos propriamente ditos, enquanto o terreiro central não costuma trazer achados arqueológicos. Curiosamente, diz Neves, a equipe ainda não achou buracos de estacas ou outros indícios diretos de que os montículos artificiais abrigassem casas ou malocas.

Há certa urgência em documentar essas áreas porque os donos das terras, por acharem que elas serão totalmente embargadas após as descobertas, às vezes acabam optando por destruir os sítios arqueológicos. Além disso, embora vastas regiões do Acre já tenham sido desmatadas, ainda é difícil saber se estruturas ainda mais amplas não estariam ocultas debaixo das áreas que ainda têm mata densa.

Para intensificar a coleta de dados, os pesquisadores pretendem trabalhar em parceria com o projeto Earth Archive (“Arquivo da Terra”, em inglês), liderado pelo arqueólogo Chris Fisher, da Universidade do Estado do Colorado (EUA). O Earth Archive pretende mapear áreas como a Amazônia com a ajuda da tecnologia do “Lidar”, que usa pulsos de laser, disparados de aviões, para captar detalhes do relevo que normalmente são difíceis de enxergar.

É a mesma técnica que ajudou a revelar ruínas da civilização maia ocultas pela floresta fechada na América Central, e ela pode se tornar uma ferramenta importante também para a arqueologia amazônica. ​