terça-feira, 8 de setembro de 2020

Incerteza e novos hábitos levam o mundo à 'economia a 90%', FSP

 A contração recorde de 9,7% da economia brasileira no segundo trimestre não prendeu por muito tempo a atenção de analistas, mais ocupados em decifrar o ritmo atual de recuperação da atividade produtiva.

É um clichê no mercado se referir ao PIB (Produto Interno Bruto) como um retrato tirado pelo retrovisor, já que o indicador é sempre conhecido com atraso em relação ao período a que se refere.

pandemia do coronavírus acentuou esse aspecto de águas passadas do dado.

Estatísticas divulgadas com maior frequência – como produção industrial, vendas do varejo e consumo de energia – indicam que, após registrarem quedas históricas como a brasileira, economias pelo mundo afora dão sinais de retomada.

Não está claro, porém, quanto tempo elas demorarão a atingir o nível em que estavam antes da pandemia e os prejuízos que essa demora pode acarretar.

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Um indicador criado pela Luohan Academy, centro de pesquisa chinês, para medir o ritmo dessa escalada de volta mostra que, entre 131 países acompanhados diariamente, nenhum retomou o patamar de atividade anterior à eclosão da Covid-19 em seus territórios.

Idealizado por Michael Spence, vencedor do Nobel de Economia, o Pandemic Economy Tracker (PET) aponta para recuperações que oscilam entre um mínimo de 82,4% do nível pré-crise no Peru e um máximo de 98,3% na China.

No meio do caminho, estão Brasil com uma retomada de 95,8%, Alemanha com 94,8%, Estados Unidos com 92%, Itália com 91,4%, Espanha com 91,2%, Reino Unido com 89,4%, Argentina com 89,2%, Índia com 88,4%, entre outros.

Na análise que fizeram para construir o PET, pesquisadores da Luohan Academy descobriram que, durante a pandemia, a mobilidade tem sido um importante indicador do nível de atividade econômica, explicando 75% da variação do PIB em muitos países.

Por isso, um dos componentes do índice é o nível de circulação das pessoas. Os demais são dados que refletem a trajetória da epidemia, como evolução no número de casos e mortes.

“Embora não seja perfeito, esse tipo de indicador tem nos ajudado a ter uma ideia do quanto falta para voltarmos ao nível de atividade anterior à crise”, diz Bráulio Borges, economista da consultoria LCA e pesquisador-associado do Ibre/FGV.

Outras instituições têm feito o monitoramento do percurso de retomada com base em indicadores econômicos publicados com alta frequência –como pedidos de seguro desempregoconsumo de energia, monitoramento de horas trabalhadas e movimento de tráfego aéreo.

“Os dados, de forma geral, indicam que nenhum país, nem mesmo a China, já voltou ao nível em que estava antes”, diz o economista Otaviano Canuto, membro do Policy Center for the New South e do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development, em Washington.

Um índice construído pela Moody’s Analytics em parceria com a CNN Business para os Estados Unidos mostra que a economia norte-americana está perto de 80% do seu nível pré-crise. Uma análise do Financial Times aponta para resultado parecido na China.

Em ambos os casos, os patamares encontrados estão abaixo dos níveis aferidos pelo PET, da Luohan Academy.

Apesar das diferenças, os três indicadores parecem confirmar que o mundo se encontra em um quadro descrito pela revista The Economist, em abril, como “economia a 90%”.

“Em muitas coisas 90% está bem; em uma economia [esse percentual] é miserável”, dizia reportagem de capa da publicação.

O problema, ressaltava a revista britânica, é o que está por trás dos pedaços que faltam para que o 100% seja atingido novamente.

A lista, no caso da crise atual, parece encabeçada por um fator que representa uma espécie de bicho papão da economia: a incerteza.

O medo do contágio pelo vírus faz com que, mesmo com o arrefecimento de sua disseminação e a gradual reabertura das economias, muitos prefiram manter certo distanciamento social.

Até na Ásia, que foi atingida primeiro pelo coronavírus e conseguiu conter sua disseminação com relativa velocidade, os níveis de mobilidade urbana permanecem menores do que antes da pandemia.

O temor de que aumentos pontuais no número de casos –após o arrefecimento inicial do contágio– representem o início de uma segunda onda da epidemia parece explicar parte dessa retração. Especialistas dizem que, até surgir uma vacina, dificilmente isso mudará.

Mudanças mais profundas de hábitos também podem estar ocorrendo.

consumo online ganhou força enquanto as lojas estavam fechadas e, entre analistas, há uma impressão de que essa tendência de substituição do presencial pelo virtual continue.

Isso poderá implicar uma redução no nível de emprego em diversos setores, do transporte ao próprio comércio. Operações online tendem a ser mais enxutas em termos de mão de obra do que os negócios físicos.

Há também relatos de empresas que, forçadas a adotar o trabalho remoto em larga escala, descobriram não apenas que esse esquema é viável, como representa uma economia de custos.

Ainda que seja esperado um retorno gradual das atividades in loco, é possível que a volta seja parcial. Isso pode levar à eliminação de vagas, como as de profissionais que cuidam da manutenção de edifícios e dos que realizam funções administrativas.

Em uma entrevista ao site Yahoo! Finance, Jeffrey Gundlach, presidente da empresa de investimentos DoubleLine Capital, afirmou, em junho, que o trabalho remoto mostrou a ele os talentos de jovens profissionais, mas também a obsolescência de alguns postos de gestão.

“Estou começando a me perguntar se realmente preciso deles”, disse o executivo, em referência a cargos de supervisão e administração.

A temperatura do mercado de trabalho segue entre morna e fria, como mostram as estatísticas de novas ofertas de vagas.

Segundo dados do site indee.com, publicados pelo Financial Times, no fim de agosto, os anúncios de oportunidades de emprego ainda estavam cerca de 20% abaixo do registrado no mesmo período de 2019 em países como Estados Unidos, Brasil e Alemanha.

Em outros, como Índia, Espanha e França, o vale era mais profundo, próximo a 40%.

Embora o desemprego tenha subido na esteira da pandemia, muitos postos de trabalho vêm sendo preservados devido a subsídios oferecidos por governos às empresas que se comprometem a não demitir por um período. Mas a capacidade fiscal dos países de suportar esses gastos extras tem um limite.​

Atila Iamarino Testar testar testar é o caminho, FSP

 

Testar, testar, testar. É assim que fazemos com os alunos. É assim que fizemos para certificar epidemiologistas. É assim que deveríamos fazer para descobrir tratamentos contra a Covid-19 e para coordenar a reabertura.

Temos dois tipos de testes. Os que buscam evidências do vírus no nosso corpo, como o RT-PCR. E testes que checam nossa resposta imune contra ele, como os testes rápidos e sorológicos. Ambos ainda têm muito o que melhorar, já que vamos conviver com o coronavírus por bastante tempo.

O RT-PCR é o teste mais importante. Ele informa o estado corrente da epidemia, já que só dá positivo enquanto temos o vírus no corpo e mostra quem está em condições de transmitir. Mas ainda é caro. No Brasil, custa por volta de R$ 300, além de depender de ingredientes em falta —o que certamente tem contribuído para nosso desempenho ruim.

Não saímos de algumas dezenas de milhares de testes. Deveríamos fazer centenas de milhares.

Por isso tecnologias como um novo teste desse tipo que usa saliva e custa dezenas de reais são animadoras. Usar saliva dispensa o bastão com algodão, que anda em falta, que vai no fundo do nariz. Com o preço menor, torna viável testar muitas pessoas. E testar uma mesma pessoa várias vezes. Como alunos semanalmente. Por enquanto, esse novo teste começa a ser adotado nos EUA. Sua popularização seria ótima para uma reabertura informada. Com RT-PCRs mais práticos e baratos, poderíamos monitorasr escolas e ambientes de trabalho com muito mais confiança, sem precisar monitorar hospitais enchendo.

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Já o teste de resposta imune mostra quem pegou o vírus e se curou. Ele mede os anticorpos que nosso corpo faz contra o vírus, mas essa resposta imune leva tempo. O IgM é um anticorpo inicial, leva de 10 a 15 dias para aparecer após o contato com o vírus. Depois desaparece. O outro anticorpo que mais medimos é o IgG, que leva de 15 a 20 dias para aparecer no sangue e pode continuar presente por anos.

Os testes ainda falham em detectar pessoas que se curaram, os falsos negativos; ou detectam pessoas que tiveram outros coronavírus —do tipo que causa resfriado— mas não o da Covid-19, os falsos positivos. E testes rápidos negligenciam um outro tipo de anticorpo, o IgA, que produzimos e liberamos principalmente nas mucosas, como no pulmão, e tem um papel importante contra vírus respiratórios.

Pacientes que se curam da Covid sem muitos sintomas podem não produzir muitos IgM e IgG no sangue, mas podem fazer bastante IgA. O que indica que o IgA pode ser importante para controlar o vírus no pulmão e que podemos estar perdendo uma parcela importante de curados que testes tradicionais não medem.

Testes mais baratos e mais sensíveis seriam fundamentais para respondermos perguntas importantes que sobraram. Nossa imunidade protege contra infecções futuras? Reinfecção é comum? E a segunda infecção é menos ou mais perigosa? Com mais RT-PCRs poderíamos saber quem volta a ter o vírus presente no corpo meses depois de se curar. Quantas pessoas já pegaram o coronavírus? Testes imunológicos mais sensíveis dariam um número mais próximo do real.

Estamos tratando melhor doentes e saindo da temporada de vírus respiratórios, o inverno. Tudo indica que o Brasil caminha por uma reabertura mais do que necessária pelos próximos meses. Precisamos retomar aulas e trabalhos presenciais e precisamos saber nossa real situação para sair de casa com mais tranquilidade.

O caminho ainda é testar, testar e testar.

Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

Suzana Herculano-Houzel Insegurança e iniciativa em tempos incertos, FSP

 

Não, não somos racionais: não passamos pela vida simplesmente entrando dados numa planilha cerebral que calcula os prós e os contras e cospe facilmente um resultado, atualizado a cada passo que damos. Tampouco agimos simplesmente de acordo com o que está debaixo de nossos olhos. Não: temos memória de bons tempos passados, vislumbramos a sua volta mesmo sob temporal, agimos para soprar as nuvens embora e trazer céu claro. Se nos sabemos em depressão atmosférica, podemos criar nossa própria zona de alta pressão.

Ou, ao contrário, temos memórias de mau tempo, antecipamos a pior tormenta, e já decidimos por antecipação nunca mais por o pé na água, não importa o azul do céu.

A diferença entre a racionalidade e a humanidade é que além do valor azul ou vermelho na planilha, cada coisa que fazemos tem outros dois valores, emocionais e portanto absolutamente personalizados. Como o corpo registra nossos estados mentais varia não ao longo uma só escala que vai do bom ao ruim, mas duas, em paralelo. Uma vai do neutro ao prazer e satisfação; a outra, do neutro ao angustiante, pavoroso e temerário. Por isso, é perfeitamente comum algo ser muito bom... e muito ruim ao mesmo tempo. E aí, para que lado se inclinar?

mulher sentada no chão, abraçada aos joelhos, no canto de um quarto
Tempos incertos, portanto, são um convite à paralisação - stokkete - stock.adobe.com

Em tempos incertos, nosso processo nada racional de decisão é uma faca de dois gumes, ou uma corda bamba de onde se pode cair para dois lados. Temperamento é sempre um grande fator – ou simples constatação de como cada cérebro tende a funcionar. Uns, que dão maior importância à perspectiva de céu claro, são ditos otimistas. Outros não conseguem afastar a ideia de nuvens sempre à espreita.

Mas tendência não é destino, sobretudo quando se tem um córtex pré-frontal e com ele a possibilidade de insight. Tomar as rédeas de nossas angústias e não se deixar trancar atrás da porta é sempre possível —e tudo começa com tomar ciência da situação. Do lado de dentro, o que nos move ou impede; e do lado de fora, a fonte da incerteza.

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Incerteza é falta de garantias; sem garantias, não nos sentimos em controle; sem a sensação de controle, o cérebro se sente impotente, incapaz. Tempos incertos, portanto, são um convite à paralisação – para quem não tem iniciativa.

Que também se aprende, por sorte. Não sermos apenas o resultado de nossas circunstâncias tem lá suas vantagens. Não somos seres passivos, mas potencialmente pró-ativos. Temos iniciativa, por definição a capacidade de iniciar ações apesar da falta de uma corrente que nos leve sem fazermos força. Ou até mesmo apesar de correntes contrárias.

Suzana Herculano-Houzel

Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).