Comemorando 50 anos no Brasil, a violoncelista americana Gretchen Miller relembra o legado que deixa ao país e as constantes confusões com “a Gretchen do bumbum”
Meu nome é Gretchen. Gretchen Lydia Miller. O nome dela é Maria Odete de Miranda Marques. Eu sou a Gretchen legítima.
Meus pais queriam um primeiro nome incomum porque Miller é um nome bastante comum nos Estados Unidos. Meus ancestrais têm nomes como: Jim, Jack, Mary e Ann. Jim Miller, Jack Miller, Mary Miller. Sem graça! Quando criança eu não gostava do meu nome. Era diferente e eu queria ser igual aos meus colegas. Mas mais tarde percebi que ninguém se esquece de você com um nome tão incomum. Meus pais tinham razão. Comecei a gostar. Só quando cheguei ao Brasil, com 23 anos, e começou a confusão é que de novo eu quis mudar de nome. Se soubesse quanta gozação ia receber a minha vida inteira, teria usado o nome do meio, Lydia. Lydia Miller.
Gretchen é um nome comum na Alemanha, mas é um apelido. É o diminutivo de Margarete. A terminação chen em alemão equivale a inho/a em português. Quer dizer Margaretezinha. Ou, em inglês, ‘Little Daisy’.
Nasci numa cidade chamada Normal, no estado de Illinois, nos Estados Unidos. Isso virou piada: “De onde você é?” “Sou de Normal.” “É normal?”
Ninguém se esquece de você com um nome tão incomum
Meus pais mudaram para o estado do Arizona quando eu tinha três anos, por causa da saúde do meu pai. Os médicos recomendaram ar seco. Ele já não tinha mais capacidade de trabalhar, e faleceu seis anos depois. Compraram uma casa pequena graças à ajuda da minha avó materna. Minha mãe ganhou um piano de cauda de presente de casamento de uma tia rica, pois meu pai era pianista. Tomava o espaço todo da sala de estar. Minha cama era uma mesa colocada embaixo do piano, porque a casa só tinha dois quartos. Começaram anos difíceis.
Meu pai doente, indo e voltando do hospital, e minha mãe saindo para dar aula de piano em domicílio por 1 dólar. Um Natal, a pobreza era tanta que o Exército de Salvação nos doou um peru. Mas o engraçado é que não me lembro da pobreza. As escolas públicas são de graça nos Estados Unidos, tanto para os ricos como para os pobres. Havia comida na mesa, roupa para vestir. Eu achava que todo mundo era assim. Lembre-se de que em 1953 quase ninguém dispunha de uma TV. Não tínhamos contato com o mundo. Nosso bairro era o mundo.
Quando minha mãe percebeu que meu pai não ia melhorar, voltou para a faculdade e se formou em pedagogia. Começou a trabalhar como professora de primeira série. Não era comum uma mulher trabalhar fora de casa naquela época. Só me dei conta anos depois de como foi difícil para ela criar dois filhos, trabalhar e cuidar de um marido doente.
Com exceção da morte do meu pai, senti que tive uma infância feliz. Os Estados Unidos saíram da Segunda Guerra com um crescimento global que se refletiu nas atitudes dos americanos. Achávamos que seríamos capazes de qualquer coisa. O ‘sonho americano’ era realidade. Depois que meu pai faleceu e minha mãe começou a trabalhar, nossa vida financeira melhorou. Entramos na classe média. Tínhamos uma casa boa (já com meu próprio quarto), um carro, comida, roupa e, quando completei 15 anos, minha mãe começou a viajar. Quando parou, aos 95 anos de idade, por incapacidade física, já tinha visitado mais de cem países. Viajar e a religião foram as paixões dela. Depois de se aposentar, ela se tornou professora de ensino da Bíblia, também viajando pelo mundo inteiro.
Minha adolescência foi tipicamente americana. Colégio com amizades que duram até hoje, namoros (como era doce!), os clubes sociais. Eu era tesoureira da classe, frequentava os proms (baile típico americano do último ano de colégio), já dirigia aos 16 anos, ia às festas de escola, da juventude da igreja, fazia aulas de música, tocava em orquestras juvenis, aprendi a esquiar na neve, ia a festivais de música. Comecei a estudar violoncelo no ano em que meu pai faleceu. Música, leitura (sou viciada até hoje), igreja, escola, amizades. Não faltava nada. A vida era boa.
Nos anos 1960 abandonei as saias pelas calças de boca larga
Chegaram os Beatles e os anos 60 trouxeram uma transformação na América. Aproveitei a liberdade daquele momento. Fui feminista antes que o movimento começasse oficialmente, nos anos 1970. Abandonei as saias, até então obrigatórias na escola, pelas calças de boca larga. O cabelo chegou até a cintura. Cursei a faculdade de música, fiz habilitação em violoncelo e, em 1972, fui para a Inglaterra para fazer pós-graduação. Já estava afastada da igreja e decepcionada com a mentalidade americana, apesar de ter aproveitado tudo que essa sociedade tinha para oferecer.
Em Londres, com 23 anos, conheci o Maestro Isaac Karabtchevsky, então regente da Orquestra Sinfônica Brasileira do Rio de Janeiro (OSB). Ele me ofereceu um emprego na orquestra. Eu nem sabia que se falava português no Brasil, mas pelo menos sabia que Buenos Aires era na Argentina e o Rio de Janeiro no Brasil… Aceitei o convite do maestro e cheguei ao Rio em 1973.
Aluguei uma quitinete na Praia do Flamengo, comprei um fusquinha, levantava-me às 8:30 e saía de casa às 8:45 para chegar ao ensaio da OSB na Sala Cecília Meireles, na Lapa, às 9h. Naquela época, o Rio era pacato e primitivo. Ninguém tinha telefone, era seguro andar pela rua à noite. Eu só comia em boteco, o trânsito era tranquilo.
Eu fiquei no Brasil. Conheci o artista plástico Cyro del Nero, então diretor de arte da TV Globo, e o resto é história. Moramos três anos no Rio antes de mudar para São Paulo. Viemos em 1976, três anos antes da estreia da “Gretchen”. Enquanto eu vivia no Rio, era musicista da casa na TV Globo. Apresentei-me com todos os artistas daquela geração: Tom Jobim, Elis Regina, Clara Nunes, Paulo Gracindo, Luiz Gonzaga, Moacyr Franco, Roberto Carlos, Milton Nascimento…
Em São Paulo, havia uma lacuna de violoncelistas. Ee eu vivia de cachê. Fazia de tudo… todo mundo me conhecia. Sem saber que uma dançarina/cantora com nome artístico igual ao meu estava prestes a se lançar.
Maria Odete Brito de Miranda Marques lançou a canção ‘Freak le boom boom’ com o disco “My name is Gretchen”, em 1979. Escolheu Gretchen como nome artístico depois de ver, em uma marquise de cinema, no Rio Grande do Sul, a propaganda de um filme chamado “Aleluia Gretchen”. Um filme daquela época sobre uma menina que morava com os pais alemães no Sul do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. O filme não tinha nada a ver com Maria Odete, nem sei se ela chegou a vê-lo, mas o nome a atraiu. Durante os 40 anos seguintes, ela será conhecida como a “Gretchen do Bumbum”
Gretchen, mas não aquela que rebola
Trabalhei 17 anos na Escola Municipal de Música de São Paulo como professora de violoncelo e regente da Orquestra Sinfônica Infanto-Juvenil (que eu criei) e da Orquestra Sinfônica Jovem Municipal. Antes de se matricular pela internet, os candidatos iam à Escola para registrar o instrumento para o qual iam fazer o teste. Uma das funcionárias me contou que chegou um candidato que viu meu nome na lista de professores e perguntou: “A Gretchen dá aulas aqui?”. “Sim”, respondeu a Cida. “Mas ela dá aula de dança ou de canto?”. “Ela dá aula de violoncelo.” Surpreso, o candidato exclamou: “Nossa! Ela toca violoncelo também?”
Ia viajar para o Rio de Janeiro e liguei para reservar ingressos para um show. Dei meu nome. A pessoa no telefone não comentou nada, mas quando cheguei ao teatro para pegar as entradas, havia uma multidão me esperando. A tal bilheteira tinha avisado boca a boca que a “Gretchen” viria assistir ao show.
A produção da Hebe Camargo convidou um grupo de violoncelistas para tocar a famosa Ária das Bachianas no.5, de Heitor Villa-Lobos, com a soprano Maria Lúcia Godoy. São oito violoncelos e soprano. Organizei o grupo, ensaiei e fomos lá para o programa. A Hebe apresentou Maria Lúcia, falou um pouco com os integrantes do grupo e depois me apresentou, em rede nacional, como “a Gretchen, mas não é aquela que rebola”.
Viajando de fusquinha numa rodovia do interior de São Paulo, um guarda me parou por excesso de velocidade. Pediu-me a CNH e a identidade. Quando viu meu nome imediatamente se espantou: “Você é a Gretchen?”. “Sou Gretchen, mas não aquela Gretchen.” Ele olhou de novo para mim e disse: “Nossa, como a TV distorce a imagem. Você não parece nada com ela”. Insisti: “Mas não sou ela!”. Ignorando meu comentário, ele sugeriu: “Se você cantar para mim, não tem multa!”.
Durante 30 anos, quando eu preenchia um cheque, fosse em lojas, supermercados ou postos de gasolina, sempre vinha o comentário “Você é a Gretchen?“.
Mesmo depois de quase 40 anos na praça, a Gretchen do bumbum continua na mídia, fazendo vídeo com a Kate Perry. O que é que ela tem de especial que a mantém ainda sob os holofotes? Sorte dela, azar meu!
Fui à Sala São Paulo um dia para ensaiar com meu Quarteto Só Saia. Deixaram meu nome na portaria para poder entrar pela porta dos fundos. O gerente da Osesp, Xisto Alves Pinto, foi me procurar no ensaio para saber quem era esta “Gretchen”.
Sou cellista, regente e professora universitária. Trabalho com música erudita. Minha coincidência não é tão feliz. Sempre acaba em gozação, piada de mau gosto.
A vida como Gretchen
Estou chegando aos 70 anos. Quando olho para trás e revejo uma vida cheia e rica, penso no meu legado. Passei os primeiros 20 anos criando uma classe de violoncelistas. Quando cheguei ao Brasil não havia muitos professores de violoncelo.
Na década de 90, fundei a Orquestra Filarmônica Infanto-Juvenil (OFIJ), a primeira orquestra sinfônica infantil do Brasil na época. Era difícil encontrar crianças que tocassem algum instrumento.
Em 2003, depois de ter trabalhado dez anos como professora de violoncelo na Escola Municipal de Música, criei a Orquestra Sinfônica Infanto-Juvenil da Escola Municipal de Música (OSIJEMM). Fui convidada a reger a Orquestra Sinfônica de Tatuí e de Atibaia. Nos últimos 15 anos, tenho trabalhado na Faculdade Santa Marcelina, lecionando música de câmara e violoncelo.
Após 13 anos regendo a Orquestra de Câmara Colégio Visconde de Porto Seguro, ela se tornou Orquestra de Câmara Miller. Fui professora substituta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul durante dois anos, enquanto era violoncelista spalla da Orquestra do Teatro São Pedro na capital gaúcha. Mas tenho me dedicado a vida toda à música de câmara. Um de meus primeiros grupos (nos anos 70) chamava-se Trio Femina. Era composto por três mulheres.
Acervo pessoal
Hoje em dia faço parte do Quarteto Só Saia (novamente apenas mulheres). Há cinco anos, criei um encontro de música de câmara para instrumentistas amadores, Amacordas. Um encontro moldado nos festivais de música de câmara em que tenho trabalhado há anos nos Estados Unidos.
A música de câmara é o mais íntimo dos gêneros dentro da música erudita. O diálogo musical entre os integrantes é tão intenso quanto uma conversa entre amigos. É uma ligação entre pessoas que, muitas vezes, não existe na vida real. É uma troca de emoções. É abrir o coração.
Eu não queria a vida da outra Gretchen. A minha não é rica em dinheiro, em fama, em reconhecimento, mas sim, em realizações profundas.
Por que dediquei minha vida toda ao Brasil? Por que adotei este país? Qual foi o ingrediente que me tocou?
Como estrangeiros, escapamos da censura da sociedade. Se falarmos errado, se agirmos errado, o povo sempre pensa “afinal, é estrangeiro”. Com isso, cria-se uma liberdade de que só o não nativo goza. Não nos damos conta de quanto pensamos e agimos conforme as censuras culturais. É tão normal que não nos interrogamos. Vejo isso cada vez que visito os Estados Unidos. No Brasil ninguém questiona meus atos. Nos Estados Unidos, sim. Até hoje. Vivi numa época em que conquistar seu espaço era difícil para a mulher. Como estrangeira, parece que o fato de ser mulher não importava muito. Afinal, eu não era daqui. Desfrutei de uma liberdade que me deu oportunidade de realizar muito mais do que imaginava ser possível. Como não agradecer ao Brasil?
Uma vez, alguém perguntou de mim ao humorista Rafael Cortez: “A Gretchen? Aquela simpática que ri alto?”, disse ele.
Pronto! Deste legado gostei. Que seja!
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