segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Edição de Sábado: O Estado sou eu! MEIO

 


Por Flávia Tavares

Maior, melhor, incrível, magnífico, histórico, sem precedentes, extraordinário, fantástico. É vasto o vocabulário de superlativos e adjetivos do ex e próximo presidente dos Estados Unidos, Donald J. Trump. Essas e muitas outras expressões autocongratulatórias figuraram em seu discurso da vitória, na noite de terça-feira, dia 5 de novembro. Foi mesmo uma vitória notável. Condenado e conhecido, ainda assim ele varreu os sete estados-pêndulo e, na fúria de seu triunfo, garantiu maioria no Senado e deve levar a Câmara para o seu lado também. Trump começou sua fala com a afirmação de que o seu movimento, o Maga, ou Make America Great Again, “francamente”, deve ser “o maior movimento político de todos os tempos”. Não mencionou o Partido Republicano uma única vez. Nem precisaria. Trump já tragou o que um dia foi um partido para seu movimento — que, como ele e todos a seu redor sabem, é ele mesmo. Permitiu que orbitassem em torno de si, naquele palco, algumas figuras, presencial ou nominalmente: JD Vance, seu vice; Elon Musk, seu fiador; Dana White e Joe Rogan, seus brothers. E encerrou os vinte e tantos minutos de fala com o que jurou que será seu lema: “Promessas feitas, promessas mantidas”.

No caso de Trump, elas nem foram tantas — mas foram ambiciosas. Passam por implementar o mais ostensivo plano de deportação de imigrantes ilegais já concebido, se vingar e perseguir inimigos políticos até com forças de segurança, “drill, baby, drill", exterminar o identitarismo, acabar com a burocracia estatal, devolver empregos aos americanos, consertar a economia, coisas assim. Nos discursos erráticos de campanha, tantas vezes agressivos e ultrajantes, essas propostas pareciam nem ter tanto perigo, soavam desarticuladas. Seriam só parte dos devaneios habituais do homem. Mas não. As promessas que Trump fez e pretende cumprir estão ordenadas e detalhadas em um documento de mais de 900 páginas: o Project 2025.

Esse é o apelido do texto-guia. Seu nome completo, não coincidentemente, é Mandate for Leadership — The Conservative Promise. Quem o organizou foi a Heritage Foundation, um think tank conservador fundado na década de 1970. Mais de 100 outras entidades conservadoras ajudaram a formulá-lo, emprestaram cerca de 400 experts e financiaram sua produção com US$ 20 milhões. Entre esses 400, muitos ex-funcionários de Trump. O Project 2025 não é o primeiro Mandate for Leadership que a Heritage Foundation publica. Ronald Reagan, eleito em 1980, tomou posse em janeiro do ano seguinte com o calhamaço deles na mão. Desde então, a cada ciclo eleitoral, a organização edita um novo manual para um presidente republicano. A fundação se gaba de Reagan ter adotado 60% de suas “sugestões” e Trump, em seu primeiro mandato, 64%. Só que a extensão do que o documento e a teia de associações conservadoras querem promover desta vez é, como diria Trump, histórica e sem precedentes. E, para um político que já considera que um presidente deve ter praticamente poder total, um documento que ensina o caminho para fazer isso é mais que um manual. É um oráculo.

Quem é a estrela de quem

Um dos principais colaboradores na formulação do Project 2025 é o CPI, o Conservative Partnership Institute, espécie de dissidência da Heritage. O fundador do CPI é Jim DeMint, ex-senador pela Carolina do Sul. Ele ficou conhecido em Washington por insuflar os republicanos uns contra os outros, sempre pelo lado mais radical. DeMint foi presidente da Heritage, assumindo em 2013, e deixou a fundação mais tradicional da direita americana quando tentou impor mudanças que tornavam a organização menos intelectualizada e mais lobista e os outros membros do conselho ainda resistiam em embarcar no trumpismo. Numa reportagem da New Yorker, um ex-membro da Heritage narra que muitos no lado conservador viam em Trump o “cavalo em que poderiam cavalgar para a vitória” em 2016. DeMint era um deles.

Em 2017, ele fundou o CPI não como um think tank, mas como uma incubadora e multiplicadora de outras células ultraconservadoras. Ofereceu financiamento e aconselhamento legal a ex-membros do governo Trump que se viram sem morada a partir de 2020, e fundaram seus próprios grupos. Os prédios do CPI são uma espécie de WeWork do radicalismo de direita nos Estados Unidos e boa parte da transformação do Partido Republicano se deu em suas salas. O mundo girou, Trump se fortaleceu, e a Heritage Foundation sucumbiu ao CPI de DeMint.

Russel Vought, outro ex-Heritage, fundou o Center for Renewing America e foi chefe do gabinete de Gestão e Orçamento de Trump. Sua entidade faz parte do sistema solar do CPI. Ele assina o capítulo sobre como o Poder Executivo deve retomar o poder no país, que o Congresso foi delegando à burocracia federal, por meio das agências. “O grande desafio que um presidente conservador enfrenta é a necessidade existencial pelo uso agressivo dos vastos poderes do Poder Executivo para devolver o poder — incluindo o poder atualmente detido pelo Poder Executivo — ao povo americano”, Vought escreve. Quem conhece Trump consegue imaginar que ele vá retomar o poder de um lado e redistribuí-lo de outro?

Na constelação do CPI está também a America First Legal, cujo vice-presidente é Gene Hamilton, que foi do Departamento de Segurança Nacional e do Departamento de Justiça de Trump e escreve o capítulo no Project 2025 sobre como submeter o DOJ direto ao poder presidencial. O presidente da America First Legal é Stephen Miller, formulador da política anti-imigrantes de Trump e autor de seus discursos (quando Trump se digna a lê-los).

Quem preside a Heritage Foundation atualmente é Kevin Roberts, que se proclama o idealizador do Project 2025. Acompanhar essa mutação da fundação é flanar sobre o processo de radicalização dos conservadores como um todo. Roberts lançou recentemente um livro em que defende “uma queima longa e controlada” de variados alvos, incluindo o FBI, o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, o New York Times, “todas as faculdades da Ivy League” e até os Escoteiros. Quem escreve a apresentação do livro é JD Vance.

É difícil cravar quem cavalga quem a essa altura. Está claro que Trump atende a um propósito de muito mais gente e muitos mais grupos do que os seus próprios. É bastante claro, também, que o ego de Trump não conhece fronteiras. Questionado sobre o Project 2025, ele vem tentando se afastar dos seus autores, na medida do possível, chegando a tachá-los de extremistas. Mas a CNN apurou que ao menos 140 pessoas que trabalharam no primeiro mandato de Trump estão envolvidas no documento. Oficialmente, sua campanha disse que o único texto que a representava era a Agenda 47, que, inclusive, tem muitos pontos em comum com o Project 2025. Mas há quem aposte que ele só fez isso para, primeiro, reduzir o custo eleitoral da associação a um texto tão minucioso e, realmente, extremista. E, segundo, porque abomina a ideia de que a percepção pública sobre ele seja a de alguém que recebe ordens de outros.

O exército e as armas

Uma das premissas básicas na elaboração do Project 2025 é a de que, quando assumiu o poder em 2016, o trumpismo estava despreparado, pouco equipado e não tinha gente qualificada o suficiente para ocupar os cargos governamentais. Ou qualificada o suficiente para fazer nesses cargos somente o que Trump desejava, inclusive infringir a lei. Um estudo da Brookings Institution mostra a exuberante rotatividade de pessoal do alto escalão em seu governo. No primeiro ano de gestão, a taxa ficou em 35%. Para se ter uma ideia do estrago, passe os olhos nas taxas de seus antecessores: Obama, 9%; Bush, 6%; Clinton, 11%; Bush pai, 7%; Reagan, 17%. Trump demitiu e demitiu muito. Como nos tempos de TV. Entre as causas dessas demissões, segundo fontes contaram à New Yorker, estavam a resistência de assessores de, por exemplo, bolar um plano de invasão ao México ou de chefes de agentes da fronteira em ordenar que se atirasse a esmo em imigrantes que atravessavam o Rio Grande.

Bem, isso tudo está prestes a mudar. Se Trump ama fazer campanha e ganhar eleição, ele certamente nutre bem menos entusiasmo por governar. Então, ainda que queira resistir a uma lista de nomes oferecida pelo Project 2025, vai ser difícil escapar da tentação de ceder ao LinkedIn conservador com milhares de nomes de pessoas já testadas em seu grau de lealdade ao chefe. (A intenção original da Heritage era selecionar e treinar ao menos 20 mil candidatos para cargos variados da administração federal). O processo de treinamento desses selecionados se dá na Presidential Academy e a ProPublica obteve alguns vídeos da retórica agressiva, que inclui a orientação de que ninguém fale com a imprensa tradicional.

Os conservadores baseiam essa estratégia de ocupar o governo federal apenas com trumpistas — chamada de aparelhamento quando é o outro lado que faz — num grande argumento: a ideia de que o Estado Administrativo, como eles nomeiam no documento, está inflado demais, tomado pela esquerda radical e contaminado de cima a baixo com ideias identitárias, ou woke no termo em inglês. Estado Administrativo, na linguagem conspiratória (que também está presente no texto), é o Deep State. É basicamente a burocracia estatal. “Olhe para a América sob o comando da elite cultural hoje: a inflação está devastando os orçamentos familiares, as mortes por overdose de drogas continuam a aumentar e as crianças sofrem a normalização tóxica do transgenerismo com drag queens e pornografia invadindo as bibliotecas escolares. (…) Além disso, comunidades de baixa renda estão se afogando no vício e na dependência do governo. As elites contemporâneas até reaproveitaram os piores ingredientes do ‘radicalismo chic’ dos anos 1970 para construir o culto totalitário conhecido hoje como ‘The Great Awokening’”.

O que acontece é que o Project 2025 chama de “woke” absolutamente qualquer pauta de diversidade e igualdade promovida pelo governo, qualquer agenda pró-meio ambiente, tudo que represente uma dose mínima de progressismo. Não se trata apenas de condenar ações descabidas ou exageradas dos grupos de esquerda. Uma ação de educação de militares para ficarem menos violentos: identitarismo. Burocratas que falam de inclusão de crianças trans nas escolas: identitários. Então, qual a solução? Acabar com a burocracia de Estado.

Ao ler as 900 páginas do Project 2025, o tom do que é aceitável para um “burocrata” vai ficando límpido. E também qual a identidade que lhe é permitida defender. Meio ambiente e direitos reprodutivos estão no alvo.

São quatro as grandes promessas conservadoras. Abre aspas:

1. Restaurar a família como peça central da vida americana e proteger nossos filhos.
2. Desmantelar o Estado Administrativo e devolver a autogovernança ao povo americano.
3. Defender a soberania, as fronteiras e a generosidade da nossa nação contra ameaças globais.
4. Garantir os nossos direitos individuais dados por Deus de viver livremente – o que a nossa Constituição chama de ‘as Bênçãos da Liberdade’.

Fecha aspas.

Na primeira, sobre a família americana, o texto decreta, de saída, que não é o governo que une uma sociedade. São o “casamento, a família, o trabalho, a igreja, a escola e o voluntariado”. Não há na lista a opção de viver em comunidade para quem não frequenta igrejas. O texto segue para cravar que “não existe nenhum programa governamental que possa substituir o buraco aberto na alma de uma criança pela ausência de um pai”. Em momento algum, trata-se da responsabilidade eventual de um pai ausente.

Mas, em seguida, sugere-se que, para proteger a sociedade dos “guerreiros culturais woke”, eliminem-se os “termos orientação sexual e identidade de gênero; diversidade, equidade e inclusão (DEI); gênero; igualdade de gênero; equidade de gênero; consciência de gênero; sensibilidade ao gênero; aborto, saúde reprodutiva; direitos reprodutivos e qualquer outro termo utilizado para privar os americanos de seus direitos da Primeira Emenda de todas as regras federais, regulamentação da agência, contrato, concessão, regulamentação e legislação existentes”. Uma reação e tanto ao identitarismo.

Como todo texto que opta por reinterpretar a Declaração de Independência e a Constituição dos EUA de uma só vez, ambos documentos paridos sob a luz do liberalismo nascente e do iluminismo, o Project 2025 não está livre de contradições. Então, ao mesmo tempo em que defende que “os direitos dos pais como educadores primários dos seus filhos devem ser inegociáveis em escolas americanas”, define que “permitir que pais ou médicos ‘redefinam’ o sexo de um menor é abuso infantil e deve acabar”. Ou seja, a liberdade dos pais sobre os filhos acaba exatamente no limiar das questões de gênero e identidade.

Ainda na promessa familiar, o texto declara que a pornografia deveria ser proibida. E diz que as plataformas das big techs são uma fábrica de abuso infantil — a ver como o bro Elon Musk se sente com esse pedaço.

Transgredindo um pouco a ordem, a promessa da soberania tem como pilar a defesa de que tudo que foi construído pelos Estados Unidos é feito por e para os americanos. “We the People”, como comanda a Constituição. E que todo e qualquer projeto que abrigue estrangeiros ou ideais “globalistas” tem como objetivo final destruir o povo americano, começando, claro, pela unidade familiar — mas passando pela sua fé cristã também. Soa como olavismo, caminha como olavismo, cheira como olavismo, mas é Steven Bannon-ismo.

A quarta promessa se utiliza de uma literalidade da Declaração de Independência para destinar o direito à liberdade e às suas bênçãos somente aos tementes a Deus. E essas liberdades passam por uma variedade de coisas, como a posse e o porte quase irrestrito de armas. Mas não tanto pelo direito à livre manifestação ou à liberdade de imprensa.

Permeando as outras três, está a promessa de desmantelar o Estado Administrativo. É com esse pretexto que se constrói praticamente todo o manual de políticas públicas sugeridas a Trump. Para ele devolver ao povo americano o poder que lhe foi tomado pelo Deep State, só mesmo reconfigurando a coisa toda, quiçá destruindo órgão por órgão.

Tática comum de quem quer minar a democracia, o documento recorre à Constituição americana para declarar que ela está sendo usurpada. Afinal, ela determinaria que, de todos os Poderes, o Congresso é o maior. (Isso é uma distorção, claro. Lá como cá, há a noção de independência e harmonia entre os poderes e de um sendo contrapeso do outro.) Mas no argumento dos autores do texto o que acontece é que os parlamentares, em troca de dinheiro e benefícios, abrem mão de legislar e ajudar o Executivo a governar, cedendo espaço a mais e mais agências. E que elas, por sua vez, gastam demais e esses gastos são “a força vital do Great Awokening”. “Quase todos os centros de poder mantidos pela esquerda são financiados ou apoiados, de uma forma ou de outra, por meio da burocracia do Congresso”.

A solução para isso não seria aumentar a eficiência das agências. Mas eliminá-las. Totalmente. Seja a agência que regula o uso da água, a que monitora as epidemias, a que protege consumidores, fiscaliza mercados. Como diria um trecho do capítulo sobre fronteiras, afinal, “hoje, quase todos os presidentes das universidades de elite dos EUA ou gerentes de hedge funds de Wall Street têm mais em comum com um chefe de Estado socialista europeu do que com os pais num jogo de Ensino Médio em Waco, Texas”. Vai ser curioso ver como esse argumento de menos Estado vai se sustentar quando Trump precisar mobilizar mundos e fundos para construir o muro ou os campos de imigrantes ilegais. Ou como as bolsas americanas vão reagir quando parte da força de trabalho das empresas, com seus imigrantes ilegais, começar a ir embora do país.

Desejar menos Estado é bandeira comum a políticos americanos, a liberais, progressistas ou não, e à direita no mundo todo. Mas não é sobre isso. Ao colocar todos os agentes de Estado, da academia, da mídia e até do mercado financeiro como marionetes da esquerda, o que o Project 2025 propõe é entregar a um homem só todo o poder. O mesmo homem que tem — ou tinha, pelo menos — 91 acusações em quatro processos criminais está sendo instado a tomar todo o governo, incluindo as agências e os burocratas que poderiam conter seus ímpetos tirânicos, de assalto. Para si. Não há quem duvide que ele certamente gostaria desse tipo de poder. Trump, em tese, não poderia se reeleger, porque a Constituição americana não permite um terceiro mandato, consecutivo ou não. Só não parece que, a essa altura, ao contrário do que propagam, esse seja o documento mais importante na cabeceira de Trump.

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