quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Na saúde, o STF tem sido melhor que a Suprema Corte norte-americana, FSP

 Daniel Wei Liang Wang

Professor de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP)

Políticas de saúde são controversas porque envolvem questões complexas de ciência e políticas públicas, além de escolhas entre valores e demandas conflitantes. Isso vale para medidas de saúde coletiva que impactam a economia e a liberdade, como a restrição a produtos danosos à saúde. Vale também para alocação de recursos orçamentários, quando beneficiar um grupo implica não usar o mesmo recurso para beneficiar outro.

Por isso, decisões em saúde devem ser tomadas por órgãos especializados, com conhecimento técnico-científico, compreensão da política pública e experiência. Nada disso, porém, garante que se chegará a consensos. Desacordos em torno dos fatos, valores e interesses que levaram a uma decisão são inevitáveis.

Em muitas democracias, é comum que esses desacordos sejam judicializados, colocando aos tribunais o dilema entre ser deferente, respeitando as análises e conclusões de órgãos técnicos, ou fazer a sua própria análise e impor aquilo que entende ser a melhor política.

Recentemente, a Suprema Corte dos EUA optou por ser menos deferente. No caso Loper, ela reverteu o seu próprio precedente no caso Chevron, que já durava quatro décadas. Esse precedente exigia que tribunais respeitassem a interpretação dada pelos órgãos do Executivo às leis em suas respectivas áreas de atuação, desde que tais interpretações fossem razoáveis. Isso diminuía o risco de revisão judicial de regulações e políticas públicas.

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Cartão do Sistema Único de Saúde - Adriana Toffetti/A7 Press/Folhapress

Muitos analistas e os votos vencidos da própria Corte em Loper veem com apreensão um cenário em que, com cada vez mais frequência, políticas de órgãos especializados em temas altamente complexos serão substituídas por decisões de tribunais generalistas.

No Brasil, o STF deu um passo no sentido contrário ao fortalecer a Conitec, o órgão de avaliação de tecnologia em saúde (ATS) do SUS. A ATS faz uso da ciência para avaliar se um tratamento é eficaz e se seu preço é proporcional ao benefício oferecido. Se a resposta for sim, esse é um tratamento que deve ser incorporado pelo SUS. Se for não, sua incorporação é provavelmente um uso inadequado de recursos escassos.

A Conitec, porém, tem sua função esvaziada pelas milhares de decisões judiciais que, baseadas em simples prescrição médica, forçam o SUS a fornecer tratamentos que ela não recomendou. Essa judicialização cria desigualdades ao permitir aos litigantes acessar tratamentos não disponíveis ao resto da população e dispende recursos escassos, ignorando a ciência e as políticas públicas.

Em setembro deste ano, porém, o STF determinou que, em demanda por medicamento, o Judiciário deve considerar a análise da Conitec. Se a Conitec não recomendou a incorporação do tratamento, não cabe ao Judiciário questionar o mérito dessa recomendação, mas apenas avaliar se ela seguiu o procedimento devido, cumpriu as regras legais e está racionalmente fundamentada.

Para tratamentos ainda não avaliados pela Conitec, o pedido precisa estar fundamentado na evidência de mais alto nível, o que deve ser aferido com apoio de órgãos técnicos.

Quanto mais complexa uma decisão, mais importante é a expertise de quem a toma. Essa lição, que a Suprema Corte dos EUA esqueceu, o STF aplicou durante a pandemia ao proteger órgãos técnicos contra a interferência política e, agora, ao reforçar o papel da Conitec diante da judicialização.

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