sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Como a Faculdade de Direito conquistou um palácio centenário, Jornal da USP

 

Prédio histórico, de 1907, no Largo de São Francisco, que foi sede da Fecap - Foto: Google Earth

Não é todo dia que uma simples conversa entre amigos altera os rumos de uma história de cem anos. Verdade seja dita, o cenário em que o papo aconteceu pode ter influenciado. No centro de São Paulo, um almoço na Padaria Santa Tereza, uma das mais antigas da capital paulista, inspirou dois professores a encarar uma tarefa antes considerada quixotesca, mas que, neste ano, teve um final feliz. 

Após décadas de desejo e tentativas frustradas, a Faculdade de Direito (FD) da USP finalmente conquistou seu gigante, ou melhor, seu Palácio do Comércio, prédio histórico do Conde Álvares Penteado. A construção – tombada em 1992 – foi sede da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap) e está localizada no berço da escola, o Largo de São Francisco. A transferência foi formalizada em 2024 por meio de um decreto de desapropriação assinado pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e pode representar um passo significativo para a revitalização do centro da cidade.

A história dessa realização começou de forma quase casual, durante uma caminhada para o almoço entre os professores Gilberto Bercovici e Fernando Facury Scaff. Ao avistar o prédio da Fecap, a curiosidade os levou a uma visita não anunciada que parou no hall, mas foi suficiente para atiçar um desejo antigo. Sobre essa tarde, Bercovici lembra: “Não pudemos passar da catraca, mas deu para ver que o prédio é bem maior do que parece por fora. Estava bem conservado, bem cuidado”. A partir daquele momento, o anseio antigo de incorporar o edifício à faculdade voltou com força total.

Gilberto Bercovici e Fernando Facury Scaff, professores da Faculdade de Direito da USP - Foto: Divulgação/FD e Cecília Bastos/USP Imagens

Na verdade, essa busca pelo prédio é parte de uma longa história. O apetite pelo palácio erguido em 1907 e de fundação anterior ao próprio endereço atual da Faculdade de Direito, que é de 1934, tem raízes em décadas de tentativas frustradas. Segundo Scaff, diretores anteriores da FD, como o professor Junqueira de Azevedo, perseguiram a aquisição do imóvel por muitos anos. “Consta que o professor Junqueira, há muito tempo, buscava esse prédio”, afirma ele, recordando também o interesse mais recente dos professores Floriano de Azevedo Marques Neto e José Rogério Cruz e Tucci. A curiosidade é que, mesmo com todo esse histórico de desejo pelo imóvel pelo corpo docente, Scaff admite: “Eu mesmo não conhecia o prédio, nunca tinha entrado”.

Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap), recém-construída no Largo São Francisco - Foto: Arquivo Público do Estado SP

E foi depois daquela visita ao acaso que o encontro logo se transformou em ação. “Como vamos fazer?”, foi a pergunta que Scaff e Bercovici se fizeram após o almoço. A partir desse momento, a busca pelo prédio virou uma espécie de cruzada pessoal para os professores, que decidiram investigar a situação jurídica do imóvel. Ao descobrir que o prédio tinha uma cláusula de inalienabilidade – uma condição jurídica que impede que um bem seja vendido, doado ou transferido a terceiros, o especialista não se intimidou: “E o que eu disse ao Edison Simoni [atual reitor da Fecap]: Esse não é um problema, sou advogado, isso eu resolvo. A gente desapropria”.

Ao contrário do que se esperava para um imbróglio em uma das zonas mais disputadas do País, o processo, que envolveu contatos diretos com secretários de estado, avançou de forma admiravelmente rápida. Scaff lembra, com uma ponta de surpresa, que “foram 90 dias, um processo muito rápido”. E o apoio de Guilherme Afif Domingos, secretário estadual de Projetos Estratégicos, foi decisivo. Afif não só conhecia bem o prédio, como tinha uma ligação pessoal com o Largo de São Francisco: “Ele conhecia a Fecap, pois passava por lá rotineiramente com o pai nos últimos 50 anos”, revela o advogado. 

O governador Tarcísio de Freitas assina o decreto de utilidade pública – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A conexão foi o ponto de virada, já que a desapropriação passou a ser vista como parte de um esforço mais amplo para revitalizar o centro de São Paulo. O professor também esclareceu que a desapropriação foi paga com recursos do caixa da Universidade, custando cerca de R$18 milhões.

Áreas externas e internas do prédio - Foto: Almeida Rocha e Divulgação Fecap

Para a Faculdade de Direito, o prédio de 4 mil metros quadrados e mais de 20 salas de aula resolve um problema crônico de falta de espaço, especialmente para os cursos de pós-graduação e permanência dos estudantes. Sobre isso, na Rádio USP, o diretor Celso Campilongo reforçou: “Hoje, 50% dos alunos da USP são cotistas e muitos passam o dia inteiro na faculdade. Termos esse espaço dará muito mais conforto”.

A integração do edifício projetado pelo arquiteto sueco Carlos Ekman ao campus da Faculdade também abre possibilidades para a criação de hotéis-residência, que seriam usados na habitação de estudantes, além de fortalecer a vida noturna na região com cursos no período da noite e maior circulação de pessoas. Dessa forma, o prédio da Fecap se tornará não só um espaço acadêmico, mas também um símbolo de renovação para o Largo de São Francisco, ampliando o papel histórico da faculdade no centro da cidade.

Celso Campilongo, diretor da Faculdade de Direito da USP - Foto: Currículo Lattes

Longe de ser um inimigo imaginário, como os moinhos de vento enfrentados por aventureiros espanhóis, o prédio é um aliado concreto, que marca a paisagem secular do centro histórico e fará parte da formação de inúmeros jovens no futuro imediato. O que antes era apenas um sonho acalentado por gerações de professores, agora se concretizou: “Foi um sonho de muitos professores, e agora está realizado, com um custo baixíssimo e uma integração com o largo, unindo os dois prédios e ampliando o calçadão”, arremata Scaff.

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