terça-feira, 8 de setembro de 2020

Quanto custa um jardim?, Pedro Fernando Nery*, O Estado de S.Paulo


01 de setembro de 2020 | 04h00

Acabar com o Jardim Europa. Chamou atenção no mês que passou a proposta de Matheus Hector, pré-candidato a vereador pelo Novo. Seu argumento, na verdade, é de que regras que limitam as construções, como as vigentes para os Jardins, excluem os mais pobres das cidades e promovem um “apartheid social”. Também em agosto, Arthur do Val, pré-candidato a prefeito, defendeu ampla revisão do plano diretor para aproveitar o potencial construtivo dos terrenos. Eles estão certos: as regras que regem os desenhos das cidades precisam ser mudadas para reduzir as desigualdades e até para favorecer uma retomada verde após a crise. 

O ponto de partida dessa discussão é bem sintetizado pelo economista Edward Glaeser, de Harvard. Para que as cidades sejam locais de crescimento e inovação, os cidadãos precisam interagir: “Governos locais têm o papel principal de aproximar as pessoas nas cidades.” É exatamente o contrário do que fazem regras que restringem as possibilidades de uso do solo, limitam alturas ou potencial construtivo, ou exigem quantidades mínimas de vagas para carros. Elas espraiam as cidades, jogando para mais longe as pessoas mais pobres. Essas pessoas ficam assim mais distantes de bons empregos, escolas e serviços, e terão de despender mais tempo e dinheiro para conseguir chegar até eles.

Imagine um jovem de baixa renda, que sai da casa dos pais ou que acaba de chegar à cidade. Ele compete por uma moradia com o resto da população, em um gigantesco leilão dinâmico por um lugar para morar. Com pouco dinheiro, tende a ficar por último, morando nas margens da cidade. Precisará gastar mais do seu pouco dinheiro e mais horas do seu dia para chegar nas oportunidades, em geral em zonas mais centrais. 

Imóveis
São as regras restritivas aplicadas a milhões de imóveis que fomentam a desigualdade de oportunidades nas cidades. Foto: Clayton de Souza/Estadão

Cada vaga obrigatória em um prédio o joga metros mais para fora. Cada limite de andar em cada construção o empurra mais adiante. Coeficientes baixos de aproveitamento dos terrenos idem, e o mesmo para as proibições sobre qual uso pode ou não ter cada imóvel. Uma casa vazia que não pode virar comércio ou um ponto abandonado que não pode virar residência têm uma função na cidade: o de afastar pessoas.

É claro que o problema não se resume às casas nos Jardins, áreas centrais. São essas regras restritivas aplicadas a milhões de imóveis que fomentam a desigualdade de oportunidades nas cidades. Ao reduzir também a oferta potencial de moradias, diminuem a renda real dos mais pobres, que pagam mais do que deveriam em aluguel (e passagens).

Arthur do Val pode soar radical: “Tem de acabar com isso, de que para construir um comércio, tem de ter vaga de carro na frente. Temos de acabar com o limite de altura.” Mas essa visão liberal para as cidades também pode ser positiva para o meio ambiente: quanto mais densas as cidades, menor tende a ser queima de combustível fóssil – que alimenta os veículos obrigados a percorrer longas distâncias. O consumo energético das edificações também tende a ser menor quando há mais densidade.

O urbanista Anthony Ling, editor do Caos Planejado, visualiza esse aspecto ambiental de uma forma interessante: basta imaginar uma grande cidade, como São Paulo, vista de uma imagem de satélite. No meio do verde, uma grande mancha urbana. Restrições às construções, que tornam a cidade menos densa e mais horizontal, significam que essa mancha cinza deverá ser ainda maior sobre o verde.

Para responder à provocação do título da coluna: Jardins, enquanto regras restritivas para a cidade, custam caro para a sociedade e para o meio ambiente. 

Evidentemente que uma flexibilização, por exemplo, no Jardim Europa, não povoará o bairro com habitantes das periferias. Contudo, ao longo do tempo, provocará o que Ling descreve como “efeito cascata” na ocupação dos imóveis pela cidade. Novos moradores do bairro deixarão alguma residência anterior, para onde se mudarão novos moradores, que deixarão outra residência, para onde mudarão outras pessoas e assim por diante. 

Quem simpatiza com menos adensamento nas áreas centrais das cidades deve ter em mente ainda que a falta de um adensamento organizado no centro pode acabar virando um adensamento desorganizado nas periferias. Frequentemente em prejuízo de áreas sensíveis como mananciais ou nascentes.

Esse debate tem um chavão: “especulação imobiliária”. Mas ela é uma fonte de progresso, se entendida como o ímpeto construtivista para atender às demandas da sociedade. Trata-se de permitir edificações onde os moradores, consumidores ou trabalhadores direta ou indiretamente demandam que elas existam – com o efeito secundário e virtuoso de permitir que os cidadãos fiquem mais perto, e não mais longe, de oportunidades de renda, educação e lazer. Não adensar é colocar milhões de catracas invisíveis em nossas cidades.

*DOUTOR EM ECONOMIA

Lugar de fala, Pedro Fernando Nery*, O Estado de S.Paulo


08 de setembro de 2020 | 05h00

“Lugar de fala” é o termo que ganhou força nas redes sociais para prestigiar a voz de quem tipicamente é menos ouvido em uma questão que o afeta diretamente. Por exemplo, o homem não tem o lugar de fala sobre machismo no ambiente de trabalho, e o branco não tem o lugar de fala sobre racismo policial. A reforma administrativa foi apresentada na semana passada e suscitou controvérsias, especialmente sobre a flexibilização da estabilidade dos servidores públicos. Na opinião pública, temos ouvido os especialistas e os sindicalistas. Quem tem o lugar de fala?

Duas novas formas de contratação que seriam previstas na Constituição provocaram mais reações. Uma é a possibilidade de servidores sem estabilidade, no caso de não serem de “carreiras de Estado”. A outra é a de contratos temporários.

A estabilidade é um tema difícil no mundo todo. Dá ao servidor o direito de dizer não: seja dizer não a uma demanda de poderosos que não atende o interesse público, seja dizer não a uma tarefa que não o apetece. Os economistas Fernando Meneguin e Mauricio Bugarin, na revista de economia da USP, mostram que onde há mais servidores não estáveis (comissionados), há tanto potencial para mais corrupção quanto para mais inovação.

Muitas democracias, buscando valorizar tanto a eficiência na prestação dos serviços quanto a blindagem do interesse público, optam por um sistema híbrido para diversificar esses riscos. Servidores com o chamado “poder de polícia” (caso de auditores da Receita ou fiscais ambientais) são estáveis, os demais não (como professores ou médicos).

Por ora, no debate brasileiro, a ênfase tem sido principalmente na eventual perseguição que os novos servidores vão sofrer. Mas e quem tem o lugar de fala?

Muitos dos comentaristas da reforma administrativa não são usuários de serviços públicos. É mais fácil glamourizar a estabilidade tendo plano de saúde ou escola particular para os filhos, em vez de usar os serviços gratuitos do Estado onde há a tal estabilidade. Agora imagine a impotência de levar um familiar doente a um pronto socorro, demorar horas para ver o ente querido em sofrimento ser atendido e descobrir que médicos da escala simplesmente não apareceram? E saber que seu filho não vai aprender uma matéria porque o professor cabula a aula?

O debate da reforma administrativa deve incluir o cidadão na porta do hospital, que deve ser perguntado se deseja manter o médico que falta no posto ou se quer poder substituí-lo por outro, assim como a mãe que deve ser indagada se quer dar chance a um novo professor.

É verdade que a estabilidade hoje não é absoluta, mas muitas transgressões são simplesmente custosas de mais para serem sancionadas pelo gestor. Se um servidor que atende ao público sempre apresenta atestados na véspera de feriado, é muito difícil para o chefe comprovar a má fé. Se buscar fazer isso sem cometer ele próprio ilegalidades, perderá muito tempo e recursos que poderia usar em benefício da população.

O diagnóstico dos potenciais benefícios do fim da estabilidade para carreiras que não são típicas de Estado não é novo. Ele estava lá há mais de 20 anos na reforma administrativa de Bresser, hoje um intelectual próximo dos trabalhistas da oposição. Também estava presente no projeto do presidente Lula, de 2007, que permitia a contratação sem estabilidade nas áreas de saúde, ciência & tecnologia, meio ambiente e cultura (não foi aprovado).

A estabilidade também se relaciona com próprio custo da folha salarial do serviço público, em geral maior do que na iniciativa privada: junto com o concurso público, faz com que haja barreiras à entrada e à saída de prestadores do serviço para o Estado. Isso dá ganhos de monopólio aos atuais servidores, com remuneração acima do mercado.

As flexibilizações no desligamento e na seleção poderão reduzir este custo e aumentar o número de vagas disponíveis no futuro: mais oportunidade para os que querem servir ao Estado – outros que deveriam ter lugar de fala nesta discussão.

Estas formas mais flexíveis de ocupação dos cargos podem beneficiar quem hoje não dispõe de tempo e dinheiro para disputar o vínculo tradicional preenchido por concurso. Não à toa, em órgãos de elite chega-se a registrar proporção de pretos entre os estáveis que é somente metade da dos comissionados, e um terço da dos terceirizados.

No modelo atual, as centenas de bilhões de gastos com pessoal não podem ser usadas para programas de emprego público: políticas como o job guarantee discutido nos Estados Unidos contra o desemprego seriam provavelmente inconstitucionais no Brasil. Uma boa reforma administrativa, pelos possíveis benefícios a usuários e trabalhadores, deve ser encarada como esperança para um Estado mais inclusivo.

* DOUTOR EM ECONOMIA 

Alvaro Costa e Silva Mario Frias, um arrivista de Balzac, FSP

 

Por mais que Mario Frias tenha sido colocado na Secretaria Especial de Cultura para não fazer nada e desmoralizar a pasta, ele tinha de servir para alguma coisa. Deram-lhe então uma cutucada, para que começasse a aparecer. Primeiro, recebeu o filho presidencial 04 para uma reunião sobre esportes eletrônicos. Mas nas redes sociais não houve a esperada "polêmica", palavra que hoje quer dizer sucesso.

Aí veio o vídeo da campanha patriótica para celebrar o Sete de Setembro. Uma tosqueira só, da qual, passada uma semana, ninguém mais falará. Não importa, porque cumpriu o papel de agitar as milícias virtuais. O humorista Marcelo Adnet —que fez uma paródia da peça publicitária— foi atacado não só pelo secretário como por batalhões de robôs e até pela Secom. É o governo trabalhando.

A última frase lida no teleprompter por Mario Frias, no entanto, é um ato falho. Diz ele: "A nossa história precisa ser contada". Na Ilustrada de sábado (5), Inácio Araújo, ao analisar a propaganda, já começou a contá-la: "Esse elogio da história como monumento é um elogio da volta ao passado —o da ditadura". No futuro, bastará comparar as palavras do crítico com as imagens da Secom para saber quem estava com a razão.

A pós-verdade, o mundo paralelo, as teorias conspiratórias, a realidade falsificada têm pernas curtas —como a mentira. Tendo o Brasil atual como assunto, não param de sair livros de sociologia, reportagens, perfis, ensaios, depoimentos, diários. E toda uma leva de obras de ficção está sendo elaborada.
Sobre seu romance "Solução de Dois Estados", a sair em outubro, o escritor Michel Laub tuitou: "Qualquer ficcionista no Brasil de hoje tem duas opções: fugir do tema da barbárie política —o que já é um comentário a respeito— ou enfrentá-lo tentando não repetir o óbvio".

O que é o ex-ator Mario Frias, senão um arrivista de Balzac?

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Alvaro Costa e Silva

Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".