terça-feira, 8 de setembro de 2020

Lugar de fala, Pedro Fernando Nery*, O Estado de S.Paulo


08 de setembro de 2020 | 05h00

“Lugar de fala” é o termo que ganhou força nas redes sociais para prestigiar a voz de quem tipicamente é menos ouvido em uma questão que o afeta diretamente. Por exemplo, o homem não tem o lugar de fala sobre machismo no ambiente de trabalho, e o branco não tem o lugar de fala sobre racismo policial. A reforma administrativa foi apresentada na semana passada e suscitou controvérsias, especialmente sobre a flexibilização da estabilidade dos servidores públicos. Na opinião pública, temos ouvido os especialistas e os sindicalistas. Quem tem o lugar de fala?

Duas novas formas de contratação que seriam previstas na Constituição provocaram mais reações. Uma é a possibilidade de servidores sem estabilidade, no caso de não serem de “carreiras de Estado”. A outra é a de contratos temporários.

A estabilidade é um tema difícil no mundo todo. Dá ao servidor o direito de dizer não: seja dizer não a uma demanda de poderosos que não atende o interesse público, seja dizer não a uma tarefa que não o apetece. Os economistas Fernando Meneguin e Mauricio Bugarin, na revista de economia da USP, mostram que onde há mais servidores não estáveis (comissionados), há tanto potencial para mais corrupção quanto para mais inovação.

Muitas democracias, buscando valorizar tanto a eficiência na prestação dos serviços quanto a blindagem do interesse público, optam por um sistema híbrido para diversificar esses riscos. Servidores com o chamado “poder de polícia” (caso de auditores da Receita ou fiscais ambientais) são estáveis, os demais não (como professores ou médicos).

Por ora, no debate brasileiro, a ênfase tem sido principalmente na eventual perseguição que os novos servidores vão sofrer. Mas e quem tem o lugar de fala?

Muitos dos comentaristas da reforma administrativa não são usuários de serviços públicos. É mais fácil glamourizar a estabilidade tendo plano de saúde ou escola particular para os filhos, em vez de usar os serviços gratuitos do Estado onde há a tal estabilidade. Agora imagine a impotência de levar um familiar doente a um pronto socorro, demorar horas para ver o ente querido em sofrimento ser atendido e descobrir que médicos da escala simplesmente não apareceram? E saber que seu filho não vai aprender uma matéria porque o professor cabula a aula?

O debate da reforma administrativa deve incluir o cidadão na porta do hospital, que deve ser perguntado se deseja manter o médico que falta no posto ou se quer poder substituí-lo por outro, assim como a mãe que deve ser indagada se quer dar chance a um novo professor.

É verdade que a estabilidade hoje não é absoluta, mas muitas transgressões são simplesmente custosas de mais para serem sancionadas pelo gestor. Se um servidor que atende ao público sempre apresenta atestados na véspera de feriado, é muito difícil para o chefe comprovar a má fé. Se buscar fazer isso sem cometer ele próprio ilegalidades, perderá muito tempo e recursos que poderia usar em benefício da população.

O diagnóstico dos potenciais benefícios do fim da estabilidade para carreiras que não são típicas de Estado não é novo. Ele estava lá há mais de 20 anos na reforma administrativa de Bresser, hoje um intelectual próximo dos trabalhistas da oposição. Também estava presente no projeto do presidente Lula, de 2007, que permitia a contratação sem estabilidade nas áreas de saúde, ciência & tecnologia, meio ambiente e cultura (não foi aprovado).

A estabilidade também se relaciona com próprio custo da folha salarial do serviço público, em geral maior do que na iniciativa privada: junto com o concurso público, faz com que haja barreiras à entrada e à saída de prestadores do serviço para o Estado. Isso dá ganhos de monopólio aos atuais servidores, com remuneração acima do mercado.

As flexibilizações no desligamento e na seleção poderão reduzir este custo e aumentar o número de vagas disponíveis no futuro: mais oportunidade para os que querem servir ao Estado – outros que deveriam ter lugar de fala nesta discussão.

Estas formas mais flexíveis de ocupação dos cargos podem beneficiar quem hoje não dispõe de tempo e dinheiro para disputar o vínculo tradicional preenchido por concurso. Não à toa, em órgãos de elite chega-se a registrar proporção de pretos entre os estáveis que é somente metade da dos comissionados, e um terço da dos terceirizados.

No modelo atual, as centenas de bilhões de gastos com pessoal não podem ser usadas para programas de emprego público: políticas como o job guarantee discutido nos Estados Unidos contra o desemprego seriam provavelmente inconstitucionais no Brasil. Uma boa reforma administrativa, pelos possíveis benefícios a usuários e trabalhadores, deve ser encarada como esperança para um Estado mais inclusivo.

* DOUTOR EM ECONOMIA 

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