quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Supremo corre o risco assumir o papel de carcereiro, FSP

Tribunal não conseguirá escapar de responsabilidade final por punições no país

Ministros do STF costumam lamentar que o tribunal tenha se afastado aos poucos de seu papel de guardião da Constituição para se tornar uma corte criminal. Ao analisar pela terceira vez em dez anos os critérios da execução de penas de prisão, o tribunal se arrisca a acumular também a função de carcereiro.
As nuances do julgamento, que começou na semana passada e prossegue nesta quinta-feira (24), lançaram ao Supremo a missão de definir quem deve ficar atrás das grades e quem tem o direito de ficar na rua. Em certos momentos, o debate sobre as leis ficou em segundo plano.
"Quando você prende alguém, não é por prazer. É porque você está protegendo pessoas e instituições", disse Luís Roberto Barroso, que defende a prisão após condenação em segunda instância. "É mais bacana defender a liberdade que mandar prender, mas eu tenho que evitar o próximo estupro, o próximo homicídio."
O ministro do STF Luis Roberto Barroso - Pedro Ladeira/Folhapress
As divisões internas e as artimanhas adotadas pelos ministros produziram a contaminação das tarefas do tribunal. A manipulação da pauta do STF para adiar o julgamento da questão, a vinculação irremediável dessas ações com o caso Lula e a desinformação levada para dentro do plenário rebaixaram a corte.
Esse é um dos efeitos do "populismo judicial" citado no voto de Alexandre de Moraes. "Prestar contas à sociedade é obrigação do STF e de todo o Judiciário. Mas isso não se faz covardemente", afirmou o ministro.
Prender quem deve estar preso e soltar quem deve estar solto, além de não ser tarefa simples, torna o STF depositário de injustiças. Seja qual for o resultado agora, o Supremo não conseguirá escapar da responsabilidade final nas punições aplicadas a criminosos no país.
Se o tribunal decidir que uma condenação em segundo grau é suficiente para levar alguém para a cadeia, precisará revisar em tempo justo as contestações a essas sentenças. Caso defina que a prisão vale apenas após o esgotamento de todos os recursos, terá a missão de concluir os casos com a mesma celeridade.
Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Visita ao rinoceronte, Ruy Castro ,FSP

Bolsonaro nunca aproveitou seu circo matinal no Alvorada para dar uma declaração de estadista

Com a viagem de Bolsonaro ao Japão, China e adjacências, Brasília está privada de sua maior atração turística: a saída do presidente do Palácio da Alvorada, todas as manhãs, e os minutos que ele concede aos cerca de cem sujeitos que chegam de ônibus, vindos das mais remotas grotas, e se postam ali desde a madrugada à sua espera. Por volta das 10h, surge Bolsonaro e não os decepciona. Posa para selfies e, para gáudio geral, distribui agressões, afrontas e imprecações contra os inimigos e até contra os amigos. Como tudo é gravado por eles, não pode haver desmentidos.
Mas não há o que desmentir. Bolsonaro usa esse canal para mandar recados. Só não se sabe quem ele atacará, difamará ou fulminará naquele dia --um alvo importante é seu ministro de estimação, Sergio Moro, em cuja face ele aplica frequentes bofetadas verbais, para mantê-lo em seu lugar. O próprio Bolsonaro, em seu português de quinta, foi quem melhor se definiu nessa pantomima: "É o zoológico. Quando você vai no zoológico, você vai sempre na jaula do rinoceronte. Eu sou o rinoceronte da política". Mas logo se corrigiu: "O chifre é no nariz, hein, não é na testa, não!". A plateia teve frouxos de riso.
Bolsonaro nunca aproveitou esse circo matinal para fazer uma declaração digna de um estadista. Nunca disse uma palavra de estímulo sobre o trabalho de recuperação do Museu Nacional. Nunca demonstrou comoção pelos mortos de Brumadinho ou do Ninho do Urubu. Nunca lamentou a perda de símbolos nacionais, como Bibi Ferreira ou João Gilberto. O país não existe.
Reduziu a presidência à função de um vereador. Para ganhar a eleição, precisou do povo, mas, como governante, seu único mérito é o de estar unindo contra si todas as forças conscientes do país. 
Em breve, só lhe restarão os filhos e os cem robotizados que o prestigiam no papel de, segundo ele próprio, rinoceronte do zoológico.

O Nobel e a fé achista, Antonio Delfim Netto, FSP

Como a crise viajou para a Ásia, a reforma da Previdência finalmente foi aprovada no Congresso.
Promoverá uma redução de gasto da ordem de R$ 800 bilhões nos próximos dez anos (2020-29), insuficiente, por sua parametrização, para anular a dinâmica demográfica já dada para o período, como demonstrou cálculo do Tribunal de Contas da União. A “PEC paralela”, ainda no Senado, piora o quadro da União, mas promete incluir estados e municípios, o que é uma necessidade. Os seus sinais vitais, entretanto, são muito preocupantes: há descrença dos entes subnacionais na sua aprovação. Tanto é assim que o Rio Grande do Sul e Goiás já decidiram enfrentar diretamente o problema nas suas Assembleias Legislativas, mesmo conhecendo a dificuldade de convencê-las.
Flávio Bolsonaro e Paulo Guedes no plenário do Senado após a votação do texto-base da reforma da Previdência - Pedro Ladeira/Folhapress
A situação fiscal de alguns estados e municípios é tão desesperadora que praticam, à luz do dia, uma sistemática apropriação indébita: não entregam aos bancos credores as prestações de pagamento dos empréstimos consignados dos seus funcionários, dos quais são fiéis depositários e que, por isso, engrossam a massa dos inadimplentes. É o caso dos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Tocantins e Amapá, além das prefeituras de Aquidauana (MS) e Macapá (AP). 
Esses problemas mostram a distância intransponível entre a mítica coordenação proclamada como “nova” política e o verdadeiro exercício da “velha” política republicana, que foi posta sob suspeita de “corrupção”. As recentes estripulias que envolvem o PSL parecem sugerir que o “tsunami Bolsonaro” recolheu para a praia o material preconceituoso que comprometia a pureza do mar. Hoje está no governo e dedica-se à agenda de “costumes” e à recusa —convicta— de todo conhecimento empírico geralmente aceito.
Não creio que haja exagero em quem vê, no “achismo” de alguns ministros, o registro daqueles preconceitos, o que contrasta fortemente com o comportamento de outros mais esclarecidos, que começam a apresentar resultados concretos, a despeito da desorientação política geral do governo.
Os “achistas” talvez possam salvar o país se, humildemente, se renderem à metodologia de trabalho proposta pelos três ganhadores do Prêmio Nobel de Economia de 2019: que mostra que só pesquisas empíricas bem calibradas podem subsidiar a formulação de políticas públicas eficientes para reduzir a pobreza. É hoje consenso que só trabalhos empíricos cuidadosos podem informar políticas públicas que reduzam a desigualdade e a pobreza. É o oposto do “achismo”! Se não entenderem que é possível conciliar a fé com a ciência, tudo terminará muito mal.
 


Antonio Delfim Netto
Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.