domingo, 27 de janeiro de 2019

O valor do silêncio do general calado, Elio Gaspari FSP

A anarquia militar embaralha generais (da reserva) que falam e não mandam, quando quem manda não fala

eleição de Jair Bolsonaro propagou o vírus da anarquia militar. Aqui e ali ouve-se falar em "núcleo militar" influindo no governo e "desconforto" fora dele. Desde que o presidente disse ao ex-comandante do Exército que "o que nós já conversamos morrerá aqui", disseminou-se a curiosidade em torno do que conversaram.
O fato da vida é que para se impedir a eleição de um candidato do PT, com suas obras e suas pompas, levou-se ao Planalto um capitão de pouca disciplina que em 1988 baldeou-se para a atividade parlamentar.
Ele levou na vice um general de quatro estrelas (da reserva) que anos antes perdera o comando das tropas do Sul por ter feito um discurso político.
 
O general tal acha isso, o general qual acha aquilo. Falta registrar que todos os militares que ocupam cargos civis estão na reserva e comandam apenas poderosas mesas. Chefe militar acha, mas não fala.
Ninguém ouviu uma só palavra do general Enzo Peri, que comandou o Exército de 2007 a 2015. O mesmo se pode dizer de Gleuber Vieira, comandante de 1999 a 2003. Ambos tipificam o general calado. Não falavam antes de assumir o comando nem falaram depois.
O general calado é um enigma em si mesmo. Move-se dentro das normas da corporação. Manda, mas não fala, mesmo em épocas em que falam generais que não mandam ou, pelo menos, não mandam tanto quanto se pensa. Olhando-se para trás, é fácil ver o peso do general calado.
Castello Branco só falou em março de 1964, dias antes da deposição do presidente João Goulart. Emílio Médici foi o silêncio da orquestra e chegou à Presidência sem dizer uma palavra fora das reuniões de generais. Os irmãos Geisel, Orlando e Ernesto, nunca falaram.
O general Euler Bentes, que em 1978 foi candidato a presidente pelo MDB (o de Ulysses e Franco Montoro, não o que está aí), nunca falou enquanto esteve na ativa. Derrotado, retirou-se no seu "Sítio do Pica-Pau-Amarelo" e morreu em 2002. Seu curto necrológio foi publicado abaixo da notícia da morte de "Mocinha", a inesquecível porta-bandeira da Mangueira.
No ocaso da ditadura e da anarquia militar, havia alguns generais falantes, mas ninguém se lembra, por exemplo, de Ademar Costa Machado e de Jorge de Sá Pinho.
Estavam no Alto-Comando que barrou as bruxarias da anarquia e garantiu a eleição de Tancredo Neves (Pode ser verdadeira a história segundo a qual Tancredo pediu para conversar com Costa Machado, a quem queria colocar no governo. Ele pediu que se encaminhasse a solicitação ao Ministério do Exército.)
Para dançar um tango e para alimentar a anarquia, não basta um militar, mesmo que seja da reserva. É indispensável uma vivandeira paisana.
Durante a campanha eleitoral do ano passado, um general organizou uma reunião para ouvir uma palestra de paisano sobre obras de infraestrutura.
Na sessão de perguntas um oficial quis saber qual dos dois candidatos a presidente teria mais qualificações para tocar o assunto. O comandante da guarnição pediu que a pergunta fosse ignorada e que o oficial saísse da sala.
Ouvir o silêncio do general calado é tarefa impossível, mas uma coisa é certa: ouvir as falas dos generais da reserva em funções civis ou mesmo fora delas, como se falassem pelos quartéis, estimula a anarquia, embaralha os problemas e confunde a audiência.

A MORTE DO "MESTRE" OU "LOBISOMEM"

Morreu na segunda-feira o advogado carioca Jorge Serpa. Tinha 96 anos e foi um homem sem sombra no mundo do poder.
No governo de Fernando Henrique Cardoso, passava pelos palácios comboiando marqueses da privataria, expondo ideias grandiosas no atacado e operando no varejo desde coisas da Petrobras e dos fundos de pensão, até interessados na produção de óleo de coqueiro do Pará.
Quando estourou um escândalo com grampos do BNDES, muita gente viu suas pegadas.
Todos os governos são rondados por figuras como Jorge Serpa, mas só Serpa rondou todos os governos. Tinha seu próprio folclore e só era visto andando de táxi, mas o táxi era dele.
José Sarney dizia que chamavam-no de "Lobisomem". No governo Collor esteve no bunker onde se tentava salvar o mandato do presidente. Amigo de alguns barões da imprensa, parecia saber de tudo.
Como Serpa cultivava sua própria lenda, vão aqui alguns exemplos, documentados, dos movimentos do "Mestre" também conhecido como "Cardeal".
Nos últimos meses de 1963, teve pelo menos três conversas com o embaixador americano Lincoln Gordon, que via nele um conselheiro e redator de discursos do presidente João Goulart.
Serpa testemunhou o ocaso de Jango na madrugada de 1º de abril de 1964. Em julho, encontrou-se com o general Golbery do Couto e Silva, estrela da ditadura nascente.
Anos depois, frequentava o gabinete de um coronel da confiança do general Emílio Médici. Em 1969, ao ser nomeado para a Presidência, o general fez um discurso oferecendo-se para praticar um "jogo da verdade" e restabelecer a democracia".
Quem escreveu? Jorge Serpa. (Mais tarde, Médici defenestrou o coronel para liquidar a influência daquilo que o SNI chamava de "Grupo Serpa".)
O poderoso Jorge Serpa baixou à sepultura no cemitério São João Batista na terça-feira. Havia menos de dez pessoas na cena.

ABRIL EM ABRIL

O empresário Fábio Carvalho, que está comprando os salvados da editora Abril, decidiu que pagará todas as rescisões trabalhistas de ex-funcionários da empresa, até o teto de R$ 250 mil.
Com essa medida, sairão do sufoco 1.122 dos 1.154 ex-funcionários da empresa. Deles, 144 são jornalistas, 299 são gráficos e 679 trabalhavam em outros serviços.
Pela sua conta, uma vez sacralizada a compra da empresa, o dinheiro chegará ao bolso das vítimas do processo de recuperação judicial entre o final de março e o início de abril.
A memória de Victor Civita, o fundador da empresa, que nunca atrasou o pagamento de seus empregados, agradece.

TRÍPLICE TEM TRÊS

Até as pedras sabem que o governo Bolsonaro tem um encontro marcado com inquietações nas universidades.
A retórica obscurantista do capitão levava a crer que dele partissem medidas provocadoras. Deu o contrário.
Há professores inquietos diante da possibilidade de serem indicados para as reitorias mestres que não encabeçam as listas tríplices encaminhadas pelos conselhos universitários ao Ministério da Educação.
Como diz o nome, lista tríplice tem três nomes.
Em 2009, o governador José Serra nomeou para a reitoria da Universidade de São Paulo o segundo nome da lista. A qualidade da reitoria do professor João Grandino Rodas é outra história.

QUARENTENA

Parlamentares da oposição já decidiram apresentar um projeto estabelecendo uma quarentena de quatro anos para que ocupantes do primeiro escalão do governo possam ser nomeados para o Supremo Tribunal Federal.
Essa ideia constou do conjunto de medidas contra a corrupção proposto ao tempo em que o juiz Sergio Moro estava em Curitiba.
Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Repetição de tragédias mostra que Brasil tem uma indústria do perdão, FSP

Fiscalizações e multas não existem por capricho ou por desejo autoritário dos governantes

Empresários gostam de se queixar de abusos em fiscalizações e punições aplicadas por órgãos oficiais. Para eles, existe uma “indústria da multa” no Brasil que prejudica os negócios. Catástrofes como o rompimento da barragem de Brumadinho sugerem que o país tem, na verdade, uma indústria do perdão.
repetição de tragédias é um indício de que alguns setores se acostumaram com a boa vontade dos governantes. Companhias continuam rodando com operações inseguras, enquanto o Estado se contenta em fazer inspeções para inglês ver.
A supervisão de determinadas atividades privadas existe não por mero capricho ou por um desejo autoritário dos governantes. Na essência, esse controle é necessário porque contribui para reduzir riscos e prevenir danos graves ou irreparáveis.
As vidas dos funcionários da Vale se perderam para sempre em Brumadinho. Danos ambientais como os observados em Mariana em 2015 não serão recuperados nesta geração.
Jair Bolsonaro disse que seu governo não tem “nada a ver” com a tragédia. A rigor, ele tem razão. Havia muito pouco a fazer em apenas 25 dias de mandato. O episódio, no entanto, deveria acordar o presidente e seus ministros que sonham em afrouxar algumas regras de controle sobre o empresariado.
Os trabalhadores soterrados em Minas e a poluição do rio Doce explicam por que uma fiscalização severa não é só uma bandeira dos "ongueiros" —como o lobby antiambientalista costuma chamar seus rivais.
A redução da burocracia e do controle estatal pode ser muito boa para quem já segue as normas e trabalha com segurança, mas também acaba livrando a cara dos culpados.
Ninguém foi punido até agora pela tragédia de 2015, segundo os procuradores do caso. A Vale era sócia da mineradora que operava aquela barragem. Dois anos depois, um novo presidente assumiu a empresa com o lema “Mariana nunca mais”. Agora, precisou reconhecer: “Como vou dizer que a gente aprendeu se acaba de acontecer um acidente desses?”.
 
Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).
TÓPICOS

O QUE A FOLHA PENSA Estelionato à vista



No que pode ser descrito como um estelionato eleitoral, o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) baixou um decreto para alterar algumas regras de aplicação da Lei de Acesso à Informação. Na prática, as mudanças têm o poder de diminuir a transparência da administração pública federal.
Bolsonaro, como se sabe, baseou boa parte da campanha presidencial num discurso inflamado contra a corrupção. Derrotar práticas políticas tradicionais e abrir a caixa-preta das gestões petistas estavam entre os objetivos alardeados.
Depois de receber a faixa, o mandatário reforçou a mensagem. No dia 7, em cerimônia com os novos comandantes do Banco do Brasil, da Caixa Econômica e do BNDES, afirmou: “Transparência acima de tudo. Todos os nossos atos terão que ser abertos para o público”. 
Entretanto o decreto publicado na quinta-feira (24) rasga essas bandeiras. Assinado pelo vice-presidente, Hamilton Mourão, permite que ocupantes de cargos comissionados classifiquem dados do governo federal como ultrassecretos e secretos, o que os torna sigilosos por 25 e 15 anos, respectivamente.
Pelo texto anterior, a classificação mais restritiva só poderia ser feita por 251 autoridades: presidente e vice, ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas e chefes de missões diplomáticas ou consulares permanentes no exterior.
Com a nova norma, assessores comissionados que estão entre os de nível mais elevado no Executivo detêm o mesmo poder. Assim, agora são 449 pessoas com capacidade de tornar sigiloso por 25 anos qualquer documento federal. 
Além disso, as autoridades podem emprestar o carimbo para dirigentes máximos de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista.
Talvez imaginando que suas palavras têm o dom mágico de alterar a realidade, Mourão procurou negar o óbvio. Afirmou que a transparência está mantida e disse que raríssimas informações são classificadas como ultrassecretas.
Parece não lhe ter ocorrido que essa raridade provavelmente decorre do rol exíguo de autoridades aptas a lançar véu sobre documentos.
O decreto ainda embute uma irresponsabilidade. Ao aumentar o número de pessoas habilitadas a usar o carimbo de ultrassecreto, o governo aumenta o número de pessoas que poderão tomar contato com segredos de Estado. Numa gestão repleta de militares, é curioso que ninguém tenha notado essa ameaça à segurança nacional.
Se já não fosse suficiente, o mau exemplo federal pode estimular estados a seguir o mesmo caminho. Seria um retrocesso lastimável.
Para um governo conhecido pela alta quantidade de recuos em poucos dias, voltar atrás em mais esse caso seria a melhor saída. Do contrário, ficará a percepção de que a gestão Bolsonaro apenas quer diluir o desgaste político de decretar sigilo sobre informações que a população deveria conhecer.