quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O dever dos neutros, Rubens Ricupero, FSP

Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível". Rui Barbosa (1849-1923) pronunciou essas palavras em Buenos Aires (1916) no contexto da Primeira Guerra Mundial. Neutralidade, explicava, "não quer dizer impassibilidade: quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre o direito e a injustiça".

A clareza da distinção pode ajudar-nos a enfrentar o dilema eleitoral na definição do dicionário: situação embaraçosa com duas saídas difíceis ou penosas. Vejamos em concreto se há diferença entre essas saídas.

Não há lugar, creio, para imparcialidade entre quem quer retirar o Brasil do Acordo de Paris sobre clima e quem deseja honrá-lo. Tampouco sou imparcial entre quem defende a proteção dos ecossistemas tal como prescrito na lei e os que atacam suposta indústria de multas do Ibama contra desmatadores ilegais.

Os mesmos que tencionam suprimir o Ministério do Meio Ambiente e subordiná-lo ao da Agricultura em ótica meramente produtivista, sem olhar as consequências de devastação ambiental e da concentração de renda.

Entre os defensores da Constituição, da democracia liberal, da tolerância, da diversidade, da civilidade na vida política e seus detratores, escolho sem hesitar os primeiros. Coloco-me ao lado dos promotores dos direitos humanos, da prioridade de combater a desigualdade, suprimir a miséria; sou contra os críticos de tais posições.

Prefiro diplomacia que preserve o papel construtivo do Brasil como fator de moderação e equilíbrio no continente e no mundo aos que advogam atitudes que nos isolariam da maioria da humanidade. 

Um exemplo é a intenção de Bolsonaro de transferir a Jerusalém nossa embaixada em Israel na ausência de acordo com todos os interessados. Isso nos relegaria a situação ridícula, abaixo do Paraguai, que teve o bom senso de recuar dessa tresloucada ideia.

Entre valores e contravalores não tenho o direito de ser neutro. Darei meu voto ao candidato que encarnar valores absolutos e inegociáveis como os mencionados acima.

Dito isso, penso que o dever dos neutros é ir além do voto e lutar por uma frente democrática que una o mais amplo espectro de opinião possível.

Concordo com os pontos levantados por Celso Rocha de Barros no artigo publicado por esta Folha na última segunda-feira (8). Por definição, uma aliança não deve refletir hegemonia de nenhum partido. Tem de acolher a exigência popular de combate à corrupção, ajuste fiscal, responsabilidade no uso de recursos escassos --o que falta no programa do PT, além da autocrítica.

Não se vai ganhar só com o PT e a esquerda. Reconhecer esse fato obriga a ter um programa de mínimo denominador comum que conquiste os moderados.

E, no caso de difícil vitória, dê garantia a todos de que se terá um governo não sectário, pacificador e unificador da sociedade brasileira. 


Rubens Ricupero
Diplomata, ex-embaixador do Brasil em Washington (1991-1993) e Roma (1995); ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda (1993-1994 e 1994, governo Itamar)

Um PSDB para chamar de seu, OPINIÃO MIGUEL DE ALMEIDA, FSP (definitivo)


Partido deixou vago o espaço do centro político



Miguel de Almeida, em evento em São Paulo em 2013 - Zanone Fraissat - 9.abr.13/Folhapress
Talvez você não saiba, mas você precisa de algo assim como um"¦ PSDB. Pode até negar, torcer a boca em esgar, só que o Brasil, para ser moderno, necessita de um partido de massas de centro. À esquerda, há o PT; à direita, havia o falecido PFL de Marco Maciel, e hoje há uma confusão de mal-intencionados; talvez o Novo possa ocupar o espaço.

A quantidade de votos nulos, brancos e abstenções no primeiro turno(espere só para ver a lambança do segundo) exibe o enorme espaço do centro político brasileiro. Vazio. À espera de ser ocupado por um partido como o velho PSDB de guerra.

Não pelo atual.

O PSDB, dos bons, começou a naufragar em 2002, quando FHC fez corpo mole e preteriram Tasso Jereissati à Presidência da República. O candidato José Serra chegou à campanha com a convicção, quer dizer, sem nenhuma convicção.

Em lugar de defender a estabilidade econômica alcançada por FHC-Malan-Franco-Arminio, os avanços trazidos pelas privatizações, mostrou-se dúbio, inseguro inclusive sobre as próprias ideias. É um caso raro de duvidar de si próprio. Eleitor não gosta de corpo mole.

Em 2006, Geraldo Alckmin foi ao pleito ainda menos convicto. Eram evidentes os benefícios das privatizações (telefonia, estradas, Vale etc), só que os luditas-petistas o assustaram, e lá foi ele se vestir de petrolino. Palhaçada e medo não dão voto.

O fim do velho PSDB ocorre com Aécio Neves (toc, toc), em 2014. Enfrentou Dilma Rousseff com a convicção de quem entra num outlet da Osklen. Você revê suas entrevistas e percebe por que acabou derrotado. Teve milhões de votos porque buscava-se desesperadamente um anti-PT.

Aécio será ele mesmo, sem marketing, nos diálogos olhos-nos-olhos com Joesley Batista. Naquela sua linguagem boca de fumo.

Ano passado, o futuro do PSDB de novo passou pelas mãos de Tasso Jereissati. Mas o partido não quis guilhotinar Aécio, preferiu fechar com Temer, manteve uns carguinhos (Aloysio Nunes, que vergonha!) e insistiu em Geraldo Alckmin, que jamais condenou publicamente a traição de Aécio Neves.
Tasso seria o dado novo, em 2002 e 2018. Quando Alckmin fala grosso, como Tasso, o eleitor desconfia. Não é de seu feitio.

O final desse PSDB melífluo, oportunista e invertebrado se dá agora sob o comando de João Doria Jr. Coxinhas do partido, como Beto Richa e Marconi Perillo, êmulos do companheiro paulista, ficaram lá atrás pelas urnas.
O discurso malufista de segurança pública foi derrotado em 1998 por Mario Covas, que nunca escondeu o que pensava --mesmo perdendo votos-- e nunca mudou de opinião para ganhar eleição.

O eleitor do centro democrático deseja um capitalismo moderno, não estatizante, mas não concorda com a ideia de autorizar a polícia a matar primeiro e depois perguntar. Deseja a reforma previdenciária, porque afinal as pessoas estão vivendo mais, só que não quer ver espigões subindo em áreas áreas verdes ou de mananciais. O discurso liberal não pode dizimar com a vontade das minorias ou com questões polêmicas, como descriminalização de drogas ou do aborto. O corpo é meu, não do Estado.

Ao dar voz a Aécio, João Doria e Perillo, personagens da velha direita em trajes de tiozinho da Sukita, o PSDB se afastou da agenda modernizadora de centro, capaz de contemplar a economia liberal e a liberação nos costumes. Sem deixar de prever programas sociais, como os criados por Ruth Cardoso e Vilmar Farias e malandramente encampados por Lula. Não podemos esquecer que a escola de Chicago já matou mais gente do que Al Capone.
Miguel de Almeida
Escritor e diretor dos documentários "Não Estávamos Ali para Fazer Amigos" e "Tunga, o Esquecimento das Paixões"

O sistema político levou uma rasteira, mas Bolsonaro não é a causa, Matias Spektor, FSP

A velha ordem política de 1988 levou uma rasteira sem precedente, mas Jair Bolsonaro não é causa da debacle. Ele é seu sintoma.
Durante 30 anos, a velha ordem teve a virtude de prover estabilidade política a um país que, antes dela, ignorava o significado do sufrágio universal e dos direitos básicos de uma democracia.
Ocorre que a Nova República trouxe consigo o germe da própria decadência. Afinal, trata-se de um acordo negociado entre as lideranças da abertura e os representantes civis da antiga elite autoritária. O resultado é um pacto que, nessas três décadas de vida, se criou estabilidade, também demandou doses cavalares de patronagem, clientelismo e corrupção.
Isso ocorreu porque a velha ordem terminou preservando boa parte dos vícios oligárquicos do Brasil autoritário: um Estado facilmente capturado por grupos rentistas, leis à venda ao maior pagador, instituições que se dobram perante quem deveriam controlar e parlamentares que prestam pouca conta ao eleitorado. O tamanho da fatura aparece nas estatísticas de educação, saúde, segurança, saneamento básico e produtividade, atestado mais gritante do nosso fracasso.
Apesar de seus problemas, entretanto, a velha ordem parecia ser muito resiliente. Os sinais do declínio só começaram a vir à tona quando uma crise financeira internacional expôs os mecanismos pelos quais o sistema político atenta contra a produtividade de sua própria economia e golpeia as contas públicas da sociedade cujos interesses, em tese, representa. O resultado foi a explosão do desemprego.
Na sequência, um alerta barulhento disparou quando a Lava Jato disseminou informação inédita sobre os métodos que, neste sistema, presidente e parlamento precisam utilizar para construir a maioria governista e gerar caixa de campanha.
Presa a seus vícios, a classe política da velha ordem foi incapaz de identificar a gravidade do problema a tempo de evitar a queda.
Foi o antes inexpressivo Jair Bolsonaro quem conseguiu surfar a onda da revolta popular contra o sistema. Impulsado pelas redes sociais, ele alavancou sua retórica incendiária para energizar cidadãos indignados com a promessa democrática frustrada.
Em seu ataque contra a velha ordem, ele montou o tripé moralista de família, religião e Forças Armadas, as três instituições que ainda gozam de alguma confiança popular. Sem partido e sem máquina, ficou livre para fazer um compromisso estridente com a mudança.
Agora, o drama dele é entregar ao menos uma parte de sua promessa sem sucumbir à troca de favores que é a instituição informal mais básica do velho sistema. Se fracassar em sua tentativa, a onda popular que hoje surfa irá tragá-lo.
Matias Spektor
Professor de relações internacionais na FGV.
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