terça-feira, 26 de junho de 2018

Universidades e o novo teto do funcionalismo, OESP


Definição do subsídio do governador como salário máximo em SP levou à fuga de docentes

*MARCELO KNOBEL E WAGNER ROMÃO, O Estado de S.Paulo
26 Junho 2018 | 03h00
Causou celeuma a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 5, de 2016, pela Assembleia Legislativa de São Paulo. A PEC fixa o subsídio mensal dos desembargadores do Tribunal de Justiça como teto dos vencimentos do funcionalismo público paulista.
Os principais argumentos contra a PEC estão relacionados às legítimas preocupações com o impacto orçamentário da mudança em tempos de grave crise econômica. Entendemos, no entanto, que a resolução da crise não se pode dar em prejuízo do serviço público. Muito menos dos docentes e funcionários das universidades públicas paulistas, que, pela produção e difusão de conhecimento altamente qualificado, desempenham papel social extremamente relevante.
Em primeiro lugar, é necessário distinguir a elevação do teto salarial da justa crítica aos chamados “supersalários”. Estes são distorções que devem ser combatidas e a nova emenda constitucional reforça o marco legal para extingui-los. A aprovação da PEC repara situação que diminuía a remuneração do funcionalismo de São Paulo – o Estado mais rico e com o maior custo de vida do País – ante todos os Estados da Federação. Apenas o Espírito Santo apresentava teto mais baixo que o paulista. Nos últimos anos, em São Paulo, o teto – dado pelo subsídio do governador – vinha sendo arbitrariamente mantido em níveis muito mais baixos que o teto federal, causando disparidade em relação à remuneração dos trabalhadores das outras universidades públicas do País, incluídas as que se situam no próprio Estado de São Paulo. Além disso, o teto instituía uma anomalia, pois regulava uma carreira de Estado pelos vencimentos de alguém que exerce mandato político.
Vale destacar que a PEC não introduz aumentos, mas suspende o corte salarial que atingia os servidores públicos, principalmente os que se encontram no estágio final da carreira. Não haverá impacto orçamentário no primeiro ano, e sim um escalonamento para que quem tiver direito possa alcançar o limite do subsídio mensal dos desembargadores nos próximos quatro anos.
Uma carreira diz respeito a toda uma vida dedicada ao serviço público, com previsibilidade quanto às regras de ingresso e progressão salarial. Exige-se dos docentes das universidades públicas uma longa trajetória de formação desde a graduação, passando pelo mestrado, doutorado e pós-doutorado. São anos de formação necessários para ingressar na carreira. Nas três universidades públicas paulistas, esta é constituída por seis níveis no magistério superior. A passagem do segundo para o terceiro nível se dá por concurso de livre-docência e do quinto para o sexto, por concurso público para professor titular. Tais concursos exigem alta qualidade do trabalho acadêmico e relevância científica das pesquisas empreendidas pelos servidores.
Desse modo, a ascensão na carreira se dá ao longo de 20, não raro 30 anos de trabalho ou mais. A definição do subsídio do governador como teto remuneratório fazia com que a carreira dos professores mais antigos fosse comprimida, em termos salariais (mas não em termos acadêmicos), para apenas quatro níveis.
No caso da USP, da Unesp e da Unicamp, o antigo teto provocou grave desestímulo aos docentes com extensa trajetória universitária e de dedicação ao serviço público. Esses docentes, que tiveram décadas de contribuição social, tiveram seus salários cortados justamente no auge de sua produção científica e de sua capacidade de formação de novos pesquisadores. Tal situação levou a aposentadorias precoces e à frequente fuga desses profissionais para universidades federais, universidades privadas e universidades no exterior, ou simplesmente ao abandono da carreira universitária em prol de ocupações mais bem remuneradas na iniciativa privada. Além disso, fez diminuir consideravelmente a atratividade das universidades paulistas para os jovens talentos, tão importantes para a manutenção futura da excelência duramente conquistada.
O sistema de ensino superior público paulista é uma das principais forças do Estado e um patrimônio que a sociedade precisa defender.
É preciso que haja vontade política para manter a qualidade e os novos desafios por que passam a USP, a Unesp e a Unicamp. Mesmo em crise de financiamento, as três universidades estaduais paulistas respondem por cerca de um terço dos artigos científicos produzidos no País. Entre 1995 e 2018, o número de estudantes matriculados na USP, na Unesp e na Unicamp praticamente dobrou. Hoje elas têm, juntas, cerca de 190 mil alunos matriculados em seus cursos de graduação e de pós-graduação. Essa expansão se deu em meio a um grande esforço de financiamento próprio das universidades, com a criação de novos câmpus e sem a prometida ampliação orçamentária.
A situação previdenciária é muito pior do que em 1994, quando se fixou o repasse de 9,57% do ICMS às universidades. Além disso, pelo menos no caso da Unicamp, é fundamental ampliar o repasse da Secretaria da Saúde para o financiamento da área de saúde, responsável pelo atendimento de alta complexidade de mais de 6 milhões de usuários.
O caráter estratégico das universidades deve ser considerado pela sociedade paulista e por seus representantes na Assembleia Legislativa, de modo que a ampliação de suas fontes orçamentárias permita a efetiva valorização de seus funcionários e docentes recém-contratados, e também a permanência de uma política segura de expansão e democratização do ensino superior no Estado.
A defesa da universidade pública requer profissionais reconhecidos e valorizados. Sem eles perde toda a sociedade, pois a universidade pública é imprescindível à criação de alternativas para o desenvolvimento e o enfrentamento dos graves problemas sociais que nos afligem.
*RESPECTIVAMENTE, REITOR DA UNICAMP E PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DE DOCENTES DA UNICAMP (ADUNICAMP)
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segunda-feira, 25 de junho de 2018

Prédio que desabou em São Paulo simboliza ruínas do modernismo, Ilustríssima, FSP

Ana Ottoni
[RESUMO]  Autora afirma que o prédio que desabou em maio no largo do Paissandu (São Paulo) entrou no hall das grandes ruínas simbólicas do modernismo, cujos maiores representantes são um conjunto habitacional nos EUA e as Torres Gêmeas.

Desleixo, descaso, hipocrisia, ausência do poder públicoexploração da pobreza. Esses foram só alguns dos termos associados, nas últimas semanas, à monstruosa imagem do edifício Wilton Paes de Almeida, um puro-sangue da arquitetura modernista, despencando em chamas em pleno centro da cidade de São Paulo.
O papel alegórico da ruína como símbolo de corrupção e mau governo remonta ao livro sagrado do catolicismo: imagens de flagelo urbano inspiradas nos prédios de Roma povoaram a Bíblia de Lutero, representando a decadência moral católica.
Desde então, o imaginário de ruínas vem ganhando diversas conotações, como a recuperação do clássico no Renascimento e da nostalgia no período romântico. Na arte contemporânea, ruínas passaram a ter um sentido crítico sobre a paisagem herdada do modernismo e da industrialização, são "ruínas reflexivas" —termo cunhado pela pesquisadora Svetlana Boym em "The Future of Nostalgia" (Basic Books, 2001).
As imagens do incêndio e da queda da "torre de vidro" no largo Paissandu, registradas na madrugada do último 1º de maio, imediatamente resgataram o sentido bíblico. Elas se tornaram símbolo da falência do poder público e da sociedade em cuidar minimamente —na cidade mais rica do país— da vida de seus habitantes mais pobres.
 
Paradoxalmente, a arquitetura modernista surgiu, em grande parte, exatamente como resposta a essa demanda. As populações das cidades europeias explodiram no século 19 com a migração do campo devido à industrialização. A qualidade de vida dos operários, aglomerados em moradias precárias —prédios e ruas completamente insalubres—, provavelmente foi uma das piores da história.
Não à toa, Le Corbusier, o maior ícone do modernismo europeu (e tão influente no brasileiro), defende, em "Por uma Arquitetura" (Perspectiva, 1973), que apenas a substituição das antigas construções por uma arquitetura serial, industrializada, viabilizada pelas novas tecnologias do concreto e do ferro, poderia evitar a revolução de classes.
A inspiração do arquiteto Roger Zmekhol para a pele de vidro do edifício Wilton Paes de Almeida foram os arranha-céus norte-americanos de Mies van der Rohe, descritos por Giulio Carlo Argan em "A Época do Funcionalismo" (que integra o livro "Arte Moderna", Companhia das Letras, 1992) como "os primeiros elementos da cidade futura" —caixas de vidro em torno de uma estrutura central de serviços que permite a leveza da caixilharia das fachadas.
O prédio paulistano foi um dos representantes mais notórios do extremismo racionalista miesiano na cidade e, por essa razão, havia sido tombado em 1992, com apenas 24 anos de vida.
Prédios modernistas que se tornaram imagem da falência do poder público no Brasil não faltam, começando pelos óbvios exemplos das ruínas de Brasília. Mais desapercebidos passam os enormes esqueletos brutalistas encomendados pelas diferentes instituições do estado e da Prefeitura de São Paulo e abandonados antes sequer de serem acabados, nossas legítimas "ruínas do futuro".
Nenhum exemplo, porém, poderia ser mais significante do que a torre de cristal de São Paulo, pela expressividade progressista contida nessa arquitetura, pelo uso que passou a ter nos últimos anos, pela forma cinematográfica como caiu levando uma figura heroica do acidente —o morador Tatuagem—, por questão de segundos.
O prédio do Paissandu entrou no hall das grandes ruínas simbólicas do modernismo, cujos dois maiores representantes são o conjunto habitacional de Pruitt-Igoe, construído na década de 1950 em Saint Louis, Missouri, e implodido em 1972, e claro, as Torres Gêmeas do World Trade Center.
O momento da implosão do conjunto habitacional —15h32 de 15 de julho de 1972—, televisionado para todo o país, foi declarado pelo arquiteto Charles Jencks como o marco do final da arquitetura modernista.
predios desabando
Implosão do conjunto habitacional Pruitt Igoe, em 1972 - Getty Images
O complexo de 33 prédios de moradias de baixa renda era um premiado projeto do arquiteto Minoru Yamasaki, completado em 1956, mas que acabou se tornando famoso pela pobreza, segregação racial e violência. Era odiado por seus próprios residentes que, em 1971, pediram a destruição como única saída para resolver seus problemas. Para Jenks e outros pós-modernistas, o fracasso da construção se deu pelo autoritarismo de sua arquitetura e pela indiferença aos desejos das pessoas.
Por uma triste coincidência, o arquiteto Minoru Yamasaki foi também o autor das Torres Gêmeas do World Trade Center. Mas foi poupado de assistir à segunda destruição: morreu de câncer no estômago em 1986, aos 73 anos.
torres gemeas caindo
Torre sul do World Trade Center é atingida por avião enquanto a norte exala fumaça negra durante ataque terrorista em Nova York (EUA). - Sean Adair/Reuters
O primeiro emprego do arquiteto em Nova York foi no Shreve, Lamb & Harmon, escritório responsável pelo projeto do Empire State Building —outra pequena obra do acaso, se lembrarmos da piada que se fazia antes do 11 de Setembro, sobre as Torres Gêmeas serem as caixas de embrulho do Empire State e do Chrisler Building, os dois representantes mais admirados da arquitetura art déco nova-iorquina.
A construção das duas torres também não foi bem-vinda pela comunidade local, que nem foi consultada. A realização foi considerada fruto da arrogância e dos desejos pessoais do diretor da Autoridade Portuária e do presidente da Associação Lower Manhattan, o banqueiro David Rockefeller.
Yamasaki e o engenheiro estrutural Leslie Robertson desenvolveram uma estrutura inovadora, que concentrava as cargas de sustentação nas fachadas, similar a uma asa de avião —nada mais coerente com arranha-céus dessa grandeza.
Isso permitiu que os espaços internos dos andares fossem livres de pilares e ajudou também a explosão cinematográfica da construção pelo choque com as aeronaves, gerando teorias conspiratórias de céticos que desacreditavam que as torres poderiam simplesmente cair assim, como se tivessem sido implodidas.
O escritor T.J. Clark, em "O Estado do Espetáculo" (publicado no livro "Modernismos", Cosac Naify, 2007), diz que esse foi o maior sucesso do ataque. As imagens foram repetidas ininterruptamente pelas televisões, fazendo com que os terroristas se apropriassem da lógica do espetáculo do inimigo —o capitalismo acumulativo— para derrotá-lo, e o fizeram "espetacularmente".
Os dois maiores projetos de Yamasaki tiveram o fim mais inesperado: duas explosões intencionais cujas imagens não poderiam ter se tornado mais paradigmáticas de uma espécie de era das desilusões.
A primeira acabou se caracterizando mais como o fim dos extremismos que a arquitetura modernista alcançou no pós-guerra do que do modernismo em si.
A segunda se tornou evidência dos insucessos do capitalismo globalizado, cujas assustadoras consequências temos presenciado, e um palmo de terra a mais sobre o projeto racionalista.
O arquiteto e escritor russo Vladimir Paperny, ao descrever o ataque, escreveu: "os terroristas que destruíram as Torres Gêmeas podem ter sido modernistas melhores que Yamasaki. Eles basicamente redirecionaram duas forças da modernidade, mirando uma contra a outra: o avião mais poderoso do mundo (o resultado da fascinação modernista por voar) e os edifícios mais altos do mundo (o resultado da fascinação modernista com a verticalidade e a altura)". Em outras palavras: o feitiço virou contra o feiticeiro.
Paperny levanta uma questão: "O modernismo tem um mecanismo de autodestruição interno?". Num certo sentido sim, responde, a arrogância e generalização modernistas criaram seus próprios inimigos e detratores.
Mas completa: "A arquitetura moderna morreu em 1972, como proclamou Jenks? Longe disso. Uma nova geração de modernistas aprendeu a superar os excessos dos mestres, trazendo inovação, vitalidade e respeito ao genius loci [espírito do lugar]".
O que nos dirão as imagens dos escombros do Paissandu no futuro? 

Ana Ottoni, fotógrafa e arquiteta, é doutoranda pela FAU-USP com a pesquisa "Nostalgia reflexiva e a ruína modernista: o abandono na produção imagética contemporânea.