sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Jogo de soma zero, Carlos Melo, O Estado de S.Paulo

Os efeitos eleitorais dos planos Cruzado (1986) e Real (1994) foram evidentes. No primeiro, o PMDB conquistou 22 dos 23 Estados em disputa; o segundo fez Fernando Henrique Cardoso presidente da República. Governos adoram acreditar que ganhos econômicos revertam ânimos políticos. Mas o passado nem sempre é comparável ao presente.
Em 1986, a Nova República vinha embalada pelas Diretas-Já e na eleição/agonia de Tancredo. Em 1994, não pesava sobre o presidente Itamar Franco suspeitas que repousam sobre Michel Temer e seu governo. Ademais, nos patamares de então, os ganhos marginais com o fim da inflação eram enormes.
Nos últimos anos, a recessão foi profunda; as marcas resistem: perdeu-se renda e emprego; houve também declínio da qualidade de políticas públicas – basta citar a segurança nos centros urbanos.
Em paralelo, o espetáculo de degradação política que levou ao impeachment e não cessou com o PMDB e o Centrão no poder: parlamentares não podem pegar um voo comercial em sossego; imagens de malas e o sentimento de engodo não se dissipam como lágrimas na chuva de uma melhora econômica ainda relativa.
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Como se fosse dois, o governo Temer é um todo contraditório: o da economia tenta dar conta dos desafios; a equipe é crível, não foi atingida por escândalos. Dificuldades à parte, encaminha imprescindível agenda micro e reformas macro: a inflação recuou, os juros caíram. Mas o governo da política é o desastre conhecido: superfisiologismo e o tacão da Lava Jato; piora dos serviços. Custos que abalam o humor e somam zero com ganhos econômicos. A pesquisa do Ibope grita: 21%, apenas, concordam com a hipótese de que 2018 será mais próspero; para 86%, “corrupto” é a palavra mais adequada para descrever o governo.
A percepção de melhora é mais lenta para o cidadão do que para os agentes econômicos; depende de algo mais que expectativas. Desconhece estatísticas, é indiferente à divulgação de índices. Não mora em tendências; vive no presente. Considerando tudo, natural que pareça distante.
*CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSPER

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Presunção de hipossuficiência, *Almir Pazzianotto Pinto, O Estado de S.Paulo


Como reagirão os juízes do Trabalho chamados a decidir entre o artigo 444 e o novo § único?


30 Novembro 2017 | 03h01
Diz o artigo 1.º do Código Civil: “Toda pessoa é capaz de direitos e obrigações na órbita civil”. E “a personalidade começa do nascimento com vida”, completa o artigo 2.º. Entre o nascimento e a maioridade, adquirida aos 18 anos, o homem passa por duas fases: a da incapacidade absoluta, encerrada aos 16 anos, e a da incapacidade relativa, perdurável dos 16 aos 18.
São incapazes, “relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer”, os maiores de 16 e menores de 18 anos, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido, “os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo” e “os pródigos” (Código Civil, artigos 3.º e 4.º). O artigo 5.º conclui: “A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil”.
Nem sempre foi assim. Segundo o Código de 1916, apenas aos 21 anos a menoridade tinha fim. O passar do tempo e a evolução dos costumes levaram o legislador a admitir bastarem 18 anos para que o cidadão, homem ou mulher, se torne apto a tomar conta da própria vida. A plena capacidade para atos da vida civil poderá ser conquistada, por maior de 16 anos, pela emancipação, pelo casamento, por colação de grau em curso superior de ensino ou pelo estabelecimento civil ou comercial, se o fizer com economia própria (Código Civil, artigo 5.º).
Válidas para a vida civil, as normas de Direito Civil perdem eficácia quando o homem, ou a mulher, passa a participar da vida econômica na posição de empregado. O paradoxo legal é evidente: torna-se capaz aos 16 anos para ser patrão, mas continua incapaz enquanto empregado.
A expressão hipossuficiente não é encontrada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), pois se oculta no interior do artigo 3.º, que traz a seguinte definição: “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. O perigo consiste no termo “dependência”. O dispositivo estaria melhor dizendo: “Empregado é a pessoa que trabalha de maneira não eventual para empregador, mediante salário pago por hora, dia, semana ou mês”.
A CLT, conforme revelado na Exposição de Motivos, adota o princípio da superioridade da ordem estatutária sobre os contratos, “porque a liberdade contratual pressupõe a igualdade dos contratantes enquanto o Direito Social reconhece, como um fato real, a situação desfavorável do trabalhador e promove a sua proteção legal”. Levando ao extremo a visão tutelar do mundo do trabalho, equiparou os empregadores no artigo 2.º, parágrafo 1.º, e os empregados no artigo 3.º, de tal sorte a não reconhecer distinções “relativas à espécie de emprego e à condição do trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual”. O manto tutelar do Estado cobre os assalariados, independentemente da qualificação, da função, da posição hierárquica e do salário. Houvesse igualdade, prevaleceria o contrato; como a lei presume dependência, predomina a tutela.
Hipossuficiente, segundo o Dicionário Aurélio, “diz-se de, ou pessoa que é economicamente fraca, que não é autossuficiente”. O termo não é privativo de empregado. O microempresário pode ser hipossuficiente, o mesmo sucede com o pequeno agricultor, o profissional liberal, a dona de casa, o aposentado pelo INSS, cujos proventos mal lhe permitem comprar medicamentos. Nem todo trabalhador, entretanto, deve integrar a classe ou categoria dos hipossuficientes, só pelo fato de ser empregado. O diretor empregado de instituição financeira, de indústria automotiva, de estatal ou sociedade de economia mista por certo goza de condições de vida distintas de alguém economicamente fraco.
Conquanto seja invisível no texto, a presunção da hipossuficiência é forte o bastante para influir em milhões de contratos, alimentar a doutrina e fundamentar decisões da Justiça do Trabalho. Muita tinta se gastou no debate sobre a respectiva natureza jurídica, se jurídica, econômica, técnica ou social. Prevaleceu, afinal, a doutrina da natureza jurídica. Na prática, todavia, em qualquer relação contratual as partes adquirem direitos e contraem obrigações. Do mesmo modo que o empregado é obrigado a trabalhar, o empregador tem o dever de lhe pagar e de lhe assegurar o conjunto de direitos previstos em lei ou norma coletiva. Afinal, quem se subordina a quem? Ambos estão reciprocamente ligados por vínculos de direitos e obrigações, sendo incorreto presumir-se a hipossuficiência como estado natural e necessário de todo e qualquer empregado.
A Lei n.º 13.467/2017 adotou dois requisitos para limitar a hipossuficiência trabalhista. Segundo a redação do parágrafo único acrescido ao artigo 444 da CLT, ganha capacidade contratual plena o “empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social” (R$ 11.062,00). Preenchidas ambas as exigências, deixaria de ser hipo e passaria a plenamente capaz, como no Código Civil, habilitando-se à livre estipulação das relações individuais de trabalho. O contrato que celebrar, ou as alterações contratuais que porventura negociar com o empregador, com fundamento no citado parágrafo único, sobrepor-se-ão “às disposições (legais) de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos e às decisões das autoridades competentes”, como prescreve o artigo 444? Estamos diante de radical mudança de orientação legal, aparentemente contrária ao espírito tutelar da CLT. Como reagirão os juízes do Trabalho ao serem chamados a decidir entre o artigo 444 e o novo parágrafo único?
Em Direito, escreveu experiente jurista, nada pior do que o mal definido.
*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho

Agenda do passado, por Celso Ming, O Estado de S.Paulo



Nem o governo nem a indústria de veículos brasileira olham para a frente







29 Novembro 2017 | 21h00
A indústria de veículos do Brasil vive dentro de uma bolha. Viciada em proteção e em reservas de mercado, não consegue competir globalmente.
Prosperou enquanto pôde empurrar seus custos para o consumidor brasileiro e enquanto refestelou-se em subsídios e no espólio da guerra fiscal entre os Estados. Agora, todo o setor passa no mundo por revolução tecnológica, a mais importante depois da invenção da linha de produção em 1913, por Henry Ford. Nem o governo nem o setor sabem para onde ir. E essa indecisão pode levar ao risco de produzir a trombada fatal que prostrará o setor.
O programa Inovar-Auto, decidido durante o governo Dilma, pretendeu incorporar tecnologia. O resultado foi desastroso. O diagnóstico do Banco Mundial divulgado na semana passada mostrou que tudo o que conseguiu foi mais proteção para um setor já superprotegido e mais transferência de custos para o consumidor interno.
O Inovar-Auto não conseguiu relevante incorporação de tecnologia nem aumento da produção e, muito menos, aumento da competitividade. Beneficiou segmentos de luxo, que operam hoje com baixíssima escala de produção. E foi irremediavelmente condenado pelo Organização Mundial do Comércio por concorrência desleal.
O governo discute com a indústria a adoção de novo programa, o Rota 2030, que deveria incrementar a competitividade e trabalhar com motores capazes de garantir as metas ambientais do Acordo de Paris. No entanto, além de esbarrar na falta de consenso, o Rota 2030 desconsidera a necessidade de preparar o grande salto.
Em todo o mundo, as montadoras de veículos preparam freneticamente o lançamento de veículos elétricos ou híbridos; de uso compartilhado ou disponíveis a qualquer um, para aluguéis curtos ou prolongados via aplicativos, como as bicicletas disponíveis nas grandes cidades ou, então, para circularem até sem motorista. Estas não são elucubrações futurísticas. É o futuro que já está aí.
Nem o governo nem a indústria olham para a frente. Não pretendem mais que algum ajuste nas proteções prevalecentes. Quando falam em favorecer a produção de veículos capazes de emitir baixos níveis de carbono, governo e indústria se atêm a algum fator modernizante e ignoram o resto.
Sem exportações não há futuro. Mas, para exportar, é preciso surfar a nova onda. Seria idiotice pretender desenvolver aqui o que já está sendo desenvolvido lá fora ou, então, seria idiotice pretender soluções nacionais para o que será necessariamente global.
Em painel realizado na última terça-feira pelo Insper, o presidente da Mercedes-Benz para a América Latina, Philipp Schiemer, advertiu que a indústria precisa de políticas estáveis porque, observa ele, os ciclos do setor são de longo prazo – no que tem razão. Mas ele próprio e a indústria de veículos só olham pelo retrovisor. Querem a estabilidade produzida pelo protecionismo e pelas reservas de mercado. E, como se viu com o que aconteceu com o Inovar-Auto, nada mais instável e inseguro do que programas eivados de protecionismo, num ambiente em que hoje prevalecem as cadeias globais de valor.
Dentro de 20 a 30 anos, que é o horizonte apontado por Schiemer, o mercado terá mudado substancialmente. Pretender agora assegurar o status quo implica entregar velharias ao final dos próximos 20 a 30 anos. Enfim, essa é a agenda do futuro que quer ser construída com a agenda do passado.
CONFIRA:



» O salto da dívida
O gráfico dá ideia de como avança a dívida bruta do governo central. A velocidade é muito alta. Começou o ano nos 69,87% do PIB e, em outubro, já estava a 74,38%. Isso significa que, no próximo ano deverá chegar aos 80% do PIB, mesmo levando em conta que o PIB deve crescer mais do que neste 2017. Dívida é déficit acumulado e déficit é o tanto que as despesas ultrapassam as receitas. Nos anos 80, o País estava afogado em dívida externa. Hoje, é a dívida interna que mais pesa sobre o brasileiro.