quinta-feira, 28 de março de 2013

...e nós precisamos falar sobre o Kevin


Christian Carvalho Cruz
Num dia, você vê seu filho de 14 anos eufórico com a chance de ir ao estádio assistir ao time do coração dele enfrentar um grande campeão do mundo. No dia seguinte, você vê seu filho de 14 anos morto sobre a mesa de um necrotério, ensanguentado, com um projétil cravado no olho. Já pensou nisso? Eu não consigo parar de pensar desde a quarta-feira 20, quando a TV anunciou que, no jogo San José x Corinthians, em Oruro, pela Libertadores, um menino boliviano de 14 anos chamado Kevin Espada morrera ao ser atingido por um sinalizador naval disparado por um torcedor corintiano. Não teve briga. Kevin estava apenas fazendo o que a maioria de nós faz num estádio de futebol: via o jogo. Podia ser eu. Ou você. Podia ser meu filho. Ou o seu.
Primeiro torci para que o Corinthians - "sempre altaneiro", diz o hino - aceitasse calado e envergonhado sua eliminação do torneio, o que fatalmente viria. E, não vindo, que pedisse para sair, fazendo (outra vez o hino) do seu presente uma lição. Até sexta-feira, 1º, nem uma coisa nem outra. E, então, incapaz de entender ou aceitar que "futebol é violento mesmo, o clube não tem culpa, não se pode punir toda a torcida pelo crime de um torcedor, etc., etc., etc.", procurei o historiador Hilário Franco Júnior, professor aposentado da USP, grande medievalista e autor de um livro fundamental sobre futebol: A Dança dos Deuses(Companhia das Letras, 2007).
A certa altura, no livro, ele escreve o que me parece ser uma das chaves para compreender a violência nas arquibancadas: "As sociedades ocidentais contemporâneas perderam o efeito tranquilizante do grupo. Para o ser humano o ‘estar junto afetivo’ é sensação reconfortante, e negada quando ele está inserido em conjuntos demasiado amplos e abstratos, como megalópoles, empresas multinacionais. Esse diagnóstico conclui que a formação de clãs futebolísticos e o poder de atração que eles exercem são soluções espontâneas contra o isolamento. Fazer parte de um desses grupos é dotar-se de nova personalidade, é conseguir nova inserção social, que por se tornar estruturante para o indivíduo pode levá-lo a exageros em nome dela".
Propus ao Hilário não uma entrevista, mas um bate-papo em que pudéssemos dividir inquietações. Eu em São Paulo, ele na França, onde mora e prepara novo livro sobre futebol e um sobre utopias na Idade Média. A conversa se deu por extensa troca de e-mails - e sem o vinho, infelizmente.
Oi, Hilário. Viu a morte do menino boliviano no jogo do Corinthians? Isso pegou muitos corintianos de jeito... Eu tenho, ou tinha, prazer de torcer pelo Corinthians na companhia de meus filhos, de 8 e 14 anos também. Hoje mais pela TV do que no estádio... Mas depois do que aconteceu em Oruro eu gostaria de ver o Corinthians se retirar da Libertadores por vontade própria. Questão de dignidade. Pensa: e se o time for campeão de novo? A Fiel vai comemorar?
Olha, a primeira coisa que me chama a atenção é você ver o Corinthians mais na TV do que no estádio. Por quê? Simples comodismo de não ter de pegar o carro, enfrentar trânsito, procurar vaga, aguentar flanelinhas, estar mal instalado nos nossos estádios? Ou, conscientemente ou não, evitar riscos para você e teus garotos? Quer dizer, parece que o futebol passou a ser diversão somente quando profilaticamente isolado na sala da própria casa. Ao vivo, no calor do estádio, o que seria - e é em locais civilizados - boa parte da curtição, o programa familiar tornou-se arriscado e evitado. Assim como andar pela cidade precisou ser substituído por andar pelos shoppings. Também acho que o Corinthians deveria se retirar, mas realisticamente se pode acreditar nisso? A diretoria do clube está mais próxima dos corintianos conscientes, talvez uma espécie de maioria silenciosa, ou do bando de marginais que ocupam parte significativa do estádio a cada jogo do time?
O Frei Betto diz que os shoppings são como as catedrais. Vamos com roupa de missa e experimentamos uma sensação paradisíaca com aquela tranquilidade. Se pagamos à vista, nos sentimos no céu; a crédito, no purgatório; e, se não temos dinheiro pra comprar, no inferno. Mas terminamos todos numa eucaristia pós-moderna, dividindo o refrigerante e o hambúrguer de uma cadeia transnacional de sanduíches saturados de gordura...
E é assim que muitos acreditam que deva ser o estádio modelo para a Copa e o pós-Copa no Brasil. Todos queremos mais conforto e segurança, porém um estádio, ao contrário do shopping, não pode ser algo anódino onde as pessoas se distraem mais com comidinhas e desfile da última camisa do time ou da seleção. Um estádio deve ser, como na Inglaterra, algo aberto, vivo, caloroso. É verdade que antes eles eram horrorosos. O hooliganismo teria mesmo surgido como uma resposta a essas condições: "Quando se tratam os torcedores como animais, eles acabam por se comportar como animais", disse o sargento Graham Naughton, especialista em hooliganismo na Football Intelligence Unit. Mas não basta conforto, é preciso vigilância e repressão - palavra expurgada pelos politicamente corretos - para os faltosos.
Na quarta, o Corinthians jogou sem torcida no Pacaembu. Punição da Conmebol. A morte do garoto foi lembrada no minuto de silêncio e na fita preta na camisa. Mas a alegre comemoração dos gols pelos jogadores aumentou o mal-estar. Como se a noite dissesse: ‘Foi só mais uma morte no futebol; será esquecida, tudo ficará bem’.
Pedagogicamente, a exclusão do Corinthians de toda competição internacional por dois ou três anos é inegociável. Os clubes ingleses foram suspensos por cinco anos depois da tragédia de Heysel, em 1985. Alguém poderia dizer que ali morreram 39 e em Oruro só 1. Óbvio que esse raciocínio é absurdo, em uma só pessoa está toda a humanidade. Ademais, há um agravante em Oruro: a morte não resultou de uma briga como em Bruxelas, com as vítimas podendo se defender ou tentar fugir. Na Bolívia foi homicídio premeditado (se não, por que levar o sinalizador ao estádio?), aleatório (não visava a uma vítima em particular) e gratuito (não tinha motivo). Falando uma língua que os cartolas entendem: se o Corinthians tiver a coragem de se autoexcluir estará realizando uma jogada mercadológica de maior alcance que a contratação do Ronaldo Fenômeno. Isso modificaria a imagem do clube. Além disso, a Gaviões ficaria isolada no conjunto da torcida corintiana, o que seria um bem para o clube e para o futebol em geral. Mas, como essa hipótese é boa demais para ser factível, resta à Conmebol fazer o que a Uefa fez em 1985. Só que o perfil de seus dirigentes não dá margem para otimismo. Talvez a ambição daquela gente restitua um pouco nossa esperança, pois excluir um clube como o Corinthians daria maior força à confederação e ao projeto de alguns cartolas de chegarem à direção da Fifa.
O técnico Tite disse que trocaria o título mundial ‘pela vida desse menino’. Não tenho dúvida de que foi sincero. Mas deixa eu te provocar: o que você faria no lugar dele? Acho que eu pediria pra sair, seria duro demais continuar trabalhando com essa sombra...
Também acredito na sinceridade da declaração dele. Mas neste país as frases vazias são tão frequentes que a do Tite corre o risco de ser assim interpretada, porque todos sabem que o título e a morte são irreversíveis. Não sei o que faria no lugar dele, mas sei que sentimento teria além da indignação: medo. Mesmo tendo dado à torcida o maior título da sua história, o que garante que amanhã, com as vitórias cessando (e uma hora elas vão acabar), o Tite não possa ser visado por aqueles que se definem orgulhosamente como "bando de loucos"? Pedir demissão? Acho que sim. Mas, para que o gesto repercuta deveria ocorrer antes de uma decisão institucional. Tanto o profissional quanto o homem Tite sairiam engrandecidos.
Em nossa primeira troca de e-mails você comentou que o episódio ocorre num momento em que a torcida não está frustrada pela falta de títulos. O que quis dizer?
Muitas vezes se explicava a violência da Gaviões como resultado da frustação social ("Cheiro farinha, fumo maconha / Sou corintiano, maloqueiro e sem-vergonha") e esportiva (falta de títulos internacionais), mas isso não se sustenta quando o episódio de Oruro ocorre poucos meses depois da primeira Libertadores e do Mundial de Clubes. Por contraditório que pareça, o estado de euforia de qualquer torcida provoca excessos, mesmo mortíferos. Um indivíduo psicologicamente frágil tomado pelo entusiasmo ("ter um deus dentro de si", diz a etimologia) coletivo pode tornar-se outro. E, enquanto tal, cometer atos que em condições normais não aconteceriam. Mas não se pode perder de vista que, além da euforia propriamente futebolística, o Corinthians vive uma euforia política que pode criar em certas parcelas da torcida um sentimento de superioridade e impunidade. A grande personalidade política nacional da última década, o ex-presidente Lula, sempre revelou seu lado corintiano. Não somente foi um entusiasta da construção do Itaquerão, que tudo indica ter contado com sua intervenção nos bastidores, como continuou a intermediar as negociações entre a construtora e o clube. Ora, Lula nega ter participado do mensalão, e "peixes menores" é que foram julgados e condenados. De forma semelhante à que a Gaviões parece estar fazendo ao resguardar alguns de seus membros deixando a culpa cair sobre um torcedor menor (na idade e no peso político dentro da torcida). Tanto os condenados do mensalão quanto o torcedor que confessou o crime parecem movidos pelo mesmo sacrifício a uma causa maior que poderia ficar comprometida - o projeto de poder do PT e o projeto Corinthians maior clube do mundo.
Pensando no futebol como parte da formação e expressão, onde foi parar o povo cordial do Sérgio Buarque de Holanda?
Entramos num estádio de futebol levando artefatos que podem matar. Nesse ponto discordo de você. A violência praticada por esses brasileiros (que um indivíduo tenha acendido o petardo não isenta os outros que sabiam da intenção e estavam em torno dele) confirma que somos um povo cordial no sentido de Sérgio Buarque de Holanda, isto é, que tomamos tudo pelo lado afetivo. Essa cordialidade etimológica e brasileira é o oposto de civilidade, como a tragédia de Oruro demonstrou.
Ainda nessa questão da identidade, o que mudou do período em que éramos só uns vira-latas, como dizia o Nelson Rodrigues, para a fartura de cinco títulos mundiais?
Passamos do complexo de vira-latas a uma espécie de complexo de pedigree: "com brasileiro não há quem possa", "o país do futebol". Mas com o tempo fomos intuindo (excluídos os patrioteiros de plantão), a contragosto, que não é bem assim. Depois do tri de 1970 levamos 24 anos, o tempo de seis Copas, para ganhar de novo, e com um estilo e qualidade que nada tinham a ver com 58-62-70. Nosso campeonato nacional teve em 2012 média de público de 12.983 torcedores. O campeonato alemão no primeiro turno (segundo semestre de 2012) 45.124. Na Inglaterra, o clube de menor média de público (Swansea, na verdade galês) apresenta número superior ao brasileiro, 15.507. Continuar a adotar o futebol como expressão da identidade nacional poderia causar nova crise identitária.
O crítico cultural Lee Siegel, ao tratar do massacre de crianças numa escola americana, escreveu no Aliás sobre a despersonalização dos tempos modernos, dos videogames, onde matar um ser humano é tão banal quanto chupar um picolé... No futebol, o que mais despersonaliza as relações humanas?
A despersonalização do Siegel se cruza com a "civilização do espetáculo" do Vargas Llosa, e o futebol é uma boa síntese dos dois conceitos. Se algumas personalidades chamam atenção no mundo do futebol - Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar, Balotelli -, é como exceções que confirmam a regra da despersonalização e alimentam a do espetáculo. O torcedor, por definição um anônimo na massa, quer muitas vezes não somente ver como participar do show. Coreografias, cânticos, gritos de guerra, faixas das torcidas fazem delas atores. Mas atores coletivos, o que pode não satisfazer alguns torcedores que procuram ser protagonistas dentro da massa torcedora e do espetáculo como um todo. É por isso que de vez em quando um torcedor invade o campo nu; outros usam fantasias espalhafatosas nas arquibancadas; e tem aqueles que provocam brigas. Tudo é bom para atrair as câmaras, para ganhar a sensação efêmera de existir. Mesmo se à custa da existência do outro, em casos limites como o de Oruro.
Você vê diferença entre um brasileiro que mata uma criança com um sinalizador e um italiano que joga bananas pro Balotelli? Ou os russos que pedem a saída do brasileiro Hulk do Zenit ‘não por racismo, mas por tradição, pois é cultura do clube só ter jogadores brancos’? Será que o futebol é permissivo demais com certas barbaridades? Por quê?
Há muita diferença entre matar um jovem de 14 anos e ofender moralmente alguém. O ofendido pode voltar pra casa, encontrar os pais, os filhos, os amigos, comer, dormir, fazer amor, desfrutar de prazeres da vida, porque essa não lhe foi gratuitamente roubada. Não se pode é fazer vista grossa para preconceitos, porque eles alimentam o sentimento de que a força do grupo tudo permite e em outro momento pode gerar violência física. Mas não é o futebol que é permissivo, é a sociedade na qual se aceitam fatos assim no futebol, como se esse esporte fosse ou pudesse ser um mundo à parte, desculpável pelos seus excessos.
E a saideira, pra pedir a conta: o fato de a tragédia ter acontecido na Bolívia, um país, junto com o Paraguai, para o qual nós brasileiros olhamos com desdém, merece alguma reflexão?
Acredito que sim. Isso só poderia ter acontecido na América Latina, pois, apesar de "loucos", os torcedores organizados não são bobos. Sabem que na Europa, nos EUA ou no Japão o policiamento seria mais eficiente e as brechas legais bem mais estreitas. Também não acredito que tivesse acontecido na Argentina devido à capacidade de resposta das torcidas locais. Ou seja, tratou-se de ato covarde em todos os sentidos.
  

O show precisa parar...



Para antropólogo, a tragédia de Oruro obriga clubes, torcedores e o governo a repensar o comportamento brasileiro dentro e fora dos estádios: ‘Estamos carentes da discussão de limite’

02 de março de 2013 | 16h 13
Ivan Marsiglia
Antes mesmo que o ex-presidente e corintiano emérito Luiz Inácio Lula da Silva opinasse sobre a punição da Conmebol ao Corinthians, a morte de Kevin Douglas Beltrán Espada já era assunto de interesse nacional. O menino boliviano de 14 anos, torcedor do San José, que teve o olho direito trespassado por um sinalizador lançado por um membro da Gaviões da Fiel, provocou uma comoção que extrapolou os limites do campo. E trouxe à tona a discussão sobre a violência dentro e fora dos estádios de futebol.
Corinthians joga com portões fechados no Pacaembu - Jonne Roriz/Estadão
Jonne Roriz/Estadão
Corinthians joga com portões fechados no Pacaembu
O antropólogo Roberto DaMatta, torcedor do Fluminense e observador de toque refinado da cultura brasileira, considera mais do que legítima a responsabilização da torcida. "Não foi um grupo de turistas passeando na Bolívia que se envolveu no crime. Foi uma coletividade organizada, a Gaviões da Fiel, que viaja atrás do time, com ônibus e hotel definidos", pontua.
Colunista do Estado e autor de Carnavais, Malandros e Heróis (Rocco), obra clássica das ciências sociais no entendimento do caráter nacional, DaMatta identifica no episódio em questão não apenas a marca violenta do passado brasileiro, mas também o presente decisivo que encaramos na modernização incompleta do País. "Há um sentimento perigoso no ar, de que agora que temos liberdade, vivemos numa democracia, eu posso fazer tudo que quero."
No bate-bola a seguir, Roberto DaMatta discorre sobre a centralidade do futebol em nossa cultura - tese defendida com categoria no livro A Bola Corre Mais que os Homens (Rocco) -, explica por que o esporte proporciona à sociedade brasileira "uma experiência de igualdade e de justiça social" e chama a atenção para a importância da tragédia de Oruro no debate político nacional e na sinalização que o País vai dar ao mundo às vésperas da Copa de 2014.
A morte do menino em Oruro mergulhou o País em um debate sobre se o time, a coletividade, deveria pagar por um crime cometido por um indivíduo. Qual é sua opinião?
Primeiro, é preciso definir bem. Não foi uma coletividade qualquer, um grupo de turistas que estava na Bolívia passeando, que se envolveu no crime. Foi uma coletividade organizada, a Gaviões da Fiel, que viaja atrás do time, com ônibus e hotel definidos. Então, a responsabilização da torcida é mais que legítima. A chave do que estamos discutindo aqui é o limite: o que significa torcer. Eu posso fazer o que quiser na rua ou não? Se sou apaixonado, morro pelo Corinthians, tenho o direito de pegar um rojão e não manipulá-lo direito ou deliberadamente usá-lo para agredir o torcedor do outro time? São eventos que nos obrigam a um diálogo com determinados parâmetros sociais do passado.
Parâmetros que se perderam?
Na minha juventude, quando eu ia ao Maracanã ou ao estádio da Rua Álvaro Chaves para torcer pelo Fluminense, ninguém levava rojões. O amor pelo time, essa paixão desabrida que tem levado a arrebentar alambrados, machucar e até matar é o que a gente tem que discutir. Qual é o limite do torcedor? É evidente que isso é a expressão e o sintoma de algo que acontece mais amplamente na sociedade brasileira. Nós estamos carentes da discussão de limite. Algo que já aparecia, por exemplo, no primeiro governo Lula, quando um grupo de manifestantes entrou no Senado Federal e arrebentou tudo. Há um sentimento perigoso no ar, que é o seguinte: "Agora que nós temos liberdade, vivemos numa democracia, eu posso fazer tudo o que quero".
A sociedade brasileira é violenta?
Toda sociedade tem um lado violento. A questão é discutir suas manifestações. No Brasil me parece clara a violência do Estado contra a sociedade que ele controla com mão de ferro por meio de alvarás, leis, licenças e aprovações. Na sociedade, a violência surge do rico contra o pobre e do poderoso contra o fraco. Na casa, do marido contra a esposa e os filhos. Na rua, da autoridade contra o acusado ou apontado como autor de um delito. No esporte, quando um time ganha por muito ou perde de modo injusto. Há formas e tipos de violência mais tolerados em certas sociedades do que em outras. Em nosso país, o escravo de um juiz era mais bem tratado do que o de um comerciante. Bater em criança ainda é válido. Dizem que a mulher gosta de apanhar, etc. E hoje sofremos a violência de um governo de viés despótico e personalista contra um sistema que demanda mais tecnologia, mais modernidade e meritocracia.
Fala-se em ‘nova classe média’ e em inclusão social pelo consumo no Brasil. Como tais fenômenos se relacionam com a incivilidade que se vê dentro e fora dos estádios?
A inclusão pelo consumo implica o controle da incivilidade e o saber usar o que se compra. O caso dos futebolistas com relógios de ouro e brinquinhos de brilhante é um bom exemplo. Se um cidadão compra um carro, ele tem que saber os perigos e as responsabilidades implicadas no ato de dirigir. Um governo eleito pelo voto também não pode planificar uma compra de votos para controlar o Congresso Nacional. Ser consumidor é um papel social que demanda limites e éticas. Como o papel de torcedor. Não é por acaso que quando reunimos num estádio um punhado de gente que dirige como alucinados tenhamos a barbárie.
O Corinthians contesta a punição da Conmebol por considerá-la ‘injusta na medida em que prejudica diretamente o direito de inocentes’. É um argumento válido?
O clube pode alegar o que quiser nos limites do direito esportivo. Há quem considere, talvez com razão, a punição dura demais. Mas e o menino que morreu? E se amanhã, numa nova briga de torcedores, morrerem mais três ou quatro? Como faz? Que o caso seja levado a uma corte desportiva que discuta o tamanho da punição. A gente sabe que o futebol é um esporte de massa, que mobiliza paixões e funciona como uma espécie de metáfora da guerra. A única vez que eu tive a motivação de brigar fisicamente com alguém na vida foi aos 17 anos, em Niterói, por causa de um Fla-Flu. Tudo isso a gente entende. Mas, se o Corinthians faz parte de uma confederação e de uma comunidade esportiva internacional, não pode ignorar o fato de que o que aconteceu em Oruro foi uma tragédia.
O sr. já escreveu que o futebol é um símbolo nacional quase tão forte quanto a Bandeira ou o Hino. Até que ponto o comportamento das torcidas no Brasil espelha o estágio em que se encontra nossa sociedade?
O agenciamento psicológico, emocional e social que o futebol proporciona é muito forte. Sobretudo, dentro de certas camadas sociais que têm reclamações, frustrações, que vivem o drama da desigualdade - e, ao mesmo tempo da igualdade, que o futebol proporciona a eles. É algo que identifico muito claramente nos trabalhos que fiz sobre o futebol: ele proporciona essa experiência de justiça, de igualdade e de revanche. E também, como fica bem claro nesse episódio, uma experiência de agressividade que não passa por agressividade. Feita sob o manto do coletivo.
Essa expectativa de impunidade continua sendo uma marca da cultura brasileira?
Não tenho dúvida. É algo que estamos pagando para ver. O Brasil está em suspenso aguardando o desfecho da condenação de um ex-chefe da Casa Civil e outros envolvidos em um escândalo de corrupção. Toda semana surge um caso qualquer em que as regras são ultrapassadas - casos que aparecem, por outro lado, porque vivemos na era da internet e contamos com meios de comunicação diversificados. Então, há um elemento educacional que não pode ser desconsiderado. Um clube tem de dizer a sua torcida quais são os limites do espetáculo.
O Corinthians recebe R$ 170 milhões ao ano por direitos de transmissão na TV - o maior contrato, junto com o do Flamengo. De que maneira os interesses financeiros inviabilizam uma responsabilização mais ampla?
É uma pergunta difícil de responder. Quanto mais se mobilizam recursos financeiros, mais problemático fica tomar decisões que durante certo período inviabilizem esses ganhos. Por outro lado, a proibição da participação das torcidas é uma espécie de censura. Uma situação delicada, nova. E eu, se fosse dirigente do Corinthians ou de qualquer outro clube capaz de ter essa capacidade maravilhosa de aglutinar pessoas, estaria pensando em como educar essa torcida. Da maneira mais rigorosa possível.
E como começaria esse trabalho pedagógico com os torcedores?
A imagem de um time de futebol deve ser a de um grupo vigoroso, viril, que responde aos desafios, mas não a da violência, da morte, da estupidez. É preciso difundir a ideia de que só existe disputa esportiva a partir de regras. De que os grandes jogadores de futebol foram aqueles que até catimbaram, mas não romperam as regras de maneira visível, clara. De que a jogada limpa, de talento, é a que interessa - não adianta ser campeão com um gol de mão. Essas regras que estão funcionando no campo também têm que funcionar para as torcidas. Trazer para o debate público não só qual é o bom jogador que o torcedor quer ver no campo, mas também o bom torcedor que o jogador quer ver nas arquibancadas.
É difícil dar o exemplo quando temos um Estatuto do Torcedor que não é cumprido rigorosamente em parte alguma do País...
A oportunidade que estamos tendo com este debate é enorme. Para que a gente passe a levar a sério as regras. Esse evento mostra que os torcedores precisam internalizar a noção de limite, de que determinados tipos de comportamento obviamente não são compatíveis com a norma civilizada. Que agredir a torcida adversária com paus e pedras ou agredir no bar o atleta que não jogou bem é inadmissível. Torcer para um time de futebol é entrar num papel social, como no teatro. E que esse papel tem limites, não se pode matar uma pessoa de verdade no palco. A chance é essa.
Um ensaio de sua autoria sustenta que ‘o futebol institui abertamente a malandragem como arte de sobrevivência e o jogo de cintura como estilo nacional’. Ainda há lugar no mundo para esse tipo de jogo?
O Brasil é um centro mundial de produção e reprodução do futebol. Se você tirar o País do mapa, o futebol perde boa parte de sua graça. Nós estabelecemos um padrão de jogo que mudou a face desse esporte, com técnicas de corpo que são metáforas do jogo de cintura e da malandragem nacionais - aquilo que Gilberto Freyre chamava de "futebol dionisíaco", que hoje está presente na forma como se joga em todo o mundo. Foi aprendido lá fora, assim como nós também aprendemos a jogar de maneira mais física. Daí, inclusive, as dificuldades que enfrentamos atualmente dentro de campo. Mas o estilo é a maneira de ser, a identidade, uma espécie de estigma do qual você não se livra. É por isso que o futebol para nós não é apenas um esporte; tem uma importância cultural enorme. Porque quando um menino lá do sul da Itália ouve falar num cara chamado Neymar, vai querer saber de onde ele vem. Então vai descobrir na internet que ele nasceu em Santos e, de repente, aprender que no Brasil se fala português, que somos um país que teve imperadores ou que saímos da escravidão sem uma guerra civil como nos EUA.
O sr. diz que o futebol no Brasil proporciona à sociedade uma experiência de igualdade e justiça social. O desfecho do episódio em Oruro pode ser um divisor de águas na construção dessa experiência ou na sinalização que o País dará ao mundo às vésperas da Copa?
O evento em Oruro é grave porque quando um clube vai jogar fora do Brasil ele representa o País, quer queira, quer não. E a torcida tem que entender que ela representa também o clube, o time que ama e traz para ela essa experiência do pertencimento a um grupo e da liberdade de torcer. Esse é o ponto que temos de trabalhar. Não é um jogo de repressão, nem de punição, mas de disciplina. Aquela disciplina que está no campo tem que passar também para o estádio. O melhor partido que se pode tirar desse episódio é, primeiro, tomar as medidas para que ele jamais aconteça novamente; depois, fazer com que as torcidas metam na cabeça que torcer não é ganhar o estatuto do ilimitado, pelo contrário. É ter a disciplina suficiente para controlar suas paixões.

O corcoveio da estrada, por José de Souza Martins*



Ferida com frequência cada vez maior desde o século 18, a Serra do Mar às vezes perde a paciência e mostra as unhas

02 de março de 2013 | 16h 54
José de Souza Martins*
A briga entre a Serra do Mar e a engenharia é muito antiga. Quase sempre com perdas de vidas e destruições materiais consideráveis, além dos danos ambientais de reparação demorada e problemática. Há alguns anos, previa-se que o reparo dos danos causados pela construção da Rodovia dos Imigrantes não se faria nem em meio século. Há dessa briga notícias desde o século 18. A engenharia perde em algumas vezes e ganha em outras, com obras admiráveis e conquistas reais no estabelecimento da comunicação entre o litoral e o planalto. Mas a serra também se insurge contra as tentativas de impor-lhe o primado dos interesses humanos às suas notórias limitações. A Serra do Mar, sazonalmente, grita sua fragilidade.
Deslizamento na rodovia dos Imigrantes - Werther Santana/Estadão
Werther Santana/Estadão
Deslizamento na rodovia dos Imigrantes
Na verdade, a serra é viva. Há quatro décadas, pelo menos, os técnicos têm dito que a ela se move cerca de meio centímetro por ano e está sujeita a movimentações decorrentes de variações de temperatura incidindo sobre a rocha e o solo - além das chuvas frequentes e abundantes que se infiltram em rachaduras produzidas por essas variações, demolindo conformações que foram alteradas pelo homem. O período crítico é o do fim do tempo das águas, em março e abril, quando o solo saturado e a infiltração das águas provocam escorregamentos, como agora.
Dizia o padre José de Anchieta, em 1555, em carta para os jesuítas de Coimbra, sobre o caminho do mar de sua época, "que é caminho mui áspero e creio que é o pior que há em muita parte do mundo, de atoleiros, subidas e matos". Vindo por ele a Piratininga, o irmão Gregório Serrão dormia à noite, na viagem, "com a camisa empapada em água", sem poder fazer fogo para os misteres da travessia. Duzentos anos depois, o historiador beneditino frei Gaspar da Madre de Deus, que por esse caminho transitou várias vezes, ainda o definia como "talvez o pior que tem o mundo". Em 1781, governava a Capitania de São Paulo o tirano Martim Lopes Lobo de Saldanha, que dava notícia de desastres no caminho de São Paulo ao Cubatão de Santos: nele "não se transitava sem que fosse aos ombros dos índios e sempre em evidente perigo de vida, por se passar por uns apertados tão fundos, nascidos da primeira picada que os primeiros habitantes tinham feito, e tão estreita que não cabia mais do que uma pessoa ou animal, ficando muitas vezes abafados debaixo da terra que com as chuvas desabava, e outros, mortos nas profundas covas que com os pés faziam, o que aqui chamam ‘caldeirões’". A notícia não difere muito de outras divulgadas até hoje, mesmo tendo melhorado muito a competência técnica e científica do homem para lidar com os caprichos da Serra do Mar.
A serra tem sido ferida, com frequência cada vez maior, desde o século 18: a Calçada do Lorena, de 1789, que ainda existe; a Estrada da Maioridade, de 1840; a São Paulo Railway, inaugurada em 1867; o Caminho do Mar, um aperfeiçoamento da Maioridade, em 1913, pavimentado em 1923; a Sorocabana, em 1937; a Via Anchieta, cuja primeira pista foi inaugurada em 1947. E, finalmente, a Imigrantes, inaugurada em 1976. Sem contar a Billings, tubulação que leva água à usina hidrelétrica Henry Borden, em Cubatão, e os trilhos que a acompanham. Uma viagem de Santos ao Planalto de Piratininga, que no século 16 tomava penosos dias, com a Calçada do Lorena reduziu-se a dois dias, com a ferrovia caiu para pouco mais de duas horas e com a Imigrantes para cerca de uma hora.
É evidente que a travessia da serra trouxe vantagens econômicas ao Estado de São Paulo: viabilizou o desenvolvimento da agricultura de exportação, a de açúcar primeiro e a de café depois, viabilizou a industrialização e desdobrou-se em imensos benefícios sociais, criando na região as bases da sociedade moderna. Mas seus efeitos colaterais não têm sido avaliados com o mesmo rigor técnico das obras em si. Em especial, na construção da Imigrantes, várias objeções técnicas foram feitas em relação a opções problemáticas, como a de sobrecarregar o mesmo maciço da Anchieta, ou o impacto das estradas de serviço na vulnerabilidade da serra e a invasão de áreas pela população residual e descartada das obras e a consequente favelização da encosta. Uma combinação perversa de lucrativos propósitos econômicos, ótimos projetos de engenharia, péssimas avaliações ambientais, injustificáveis omissões sociais. O absolutismo das diferentes áreas de conhecimento, a falta de diálogo entre as ciências, o que já não se justifica no estado atual do conhecimento científico, a prevalência do econômico sobre o ambiental e o social, tudo converge para propiciar a ocorrência dos desastres que nos dizem que a certeza do monumental e o fascínio do belo não são suficientes para ditar obras na Serra do Mar.
* JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A APARIÇÃO DO DEMÔNIO NA FÁBRICA