Você se lembra da "adultização"? A discussão levantada pelo youtuber Felca, seriíssima, parou o Brasil no início de agosto, e no mês seguinte foi promulgada uma lei para "proteger crianças e adolescentes na internet". Parece que passou.
Na segunda (3), a polícia divulgou o que seriam os perfis dos mortos na Operação Contenção, nos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio. Os jornais transmitiam as informações sem muito filtro nem reflexão, e a capa da própria Folha estampava: "Mortos são homens de 14 a 55 anos, e metade tinha mandado de prisão". Foi só o Felca virar as costas e lá estavam "homens de 14 anos".
Leitores criticaram o tratamento aos jovens, protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, embora os textos não os citassem nominalmente. Um leitor externou sua preocupação lembrando que "a Constituição Federal, em seu artigo 227, determina que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente proteção integral e prioridade absoluta, o que inclui o tratamento adequado na comunicação social."
A polícia, segundo o jornal, informava que o menino "era investigado por ‘fato análogo ao crime de estupro de vulnerável’", talvez chancelando, assim, a ideia de que não fosse mais menino. O fato é que o jornal comprou a ideia, ao menos num primeiro momento. Depois mudou o título.
Esse não era o único problema do perfilzão. A Folha citava, sem maior surpresa, o caso de um rapaz de 18 anos sem anotações criminais que estaria sendo considerado suspeito porque "suas redes sociais não exibiam postagens desde 2022, o que, para os agentes, indicaria ‘apagamento de perfil’ para eliminar possíveis provas". Nos comentários do jornal, o leitor Rafael Marques apontou: "Aparentemente, ser low profile agora [é] fazer parte do crime organizado".
(Isso quer dizer que eram todos inocentes ou que não estariam empunhando fuzis?, pergunta o comentarista. Não, nem o seu contrário; quer dizer que faltou crítica à cobertura.)
O questionamento do documento policial veio três dias mais tarde, e não pela Folha. Na quinta (6), a BBC News Brasil publicou texto sobre o que seriam "detalhes da lista". O material foi republicado pela Folha na sexta (7).
A BBC relata ter buscado a Secretaria Estadual de Segurança Pública do RJ, "que pediu que a reportagem contatasse a Polícia Civil". A reportagem informava que a polícia não respondera e reproduzia nota segundo a qual a lista "não encerra" a investigação".
"A Polícia Civil também disse tratar os mortos na operação como criminosos ligados ao crime organizado. ‘Essa mínima fração de narcoterroristas neutralizados que não possuíam anotações criminais nem imagens em redes sociais portando armas ou demonstrando vínculo com facções não significa nada’, diz o secretário da Polícia Civil, delegado Felipe Curi, na nota."
Antes do texto da BBC, no dia 4, a Folha informava que "Curi é aliado e pupilo do também delegado Allan Turnowski, preso duas vezes sob acusação de colaborar com o jogo do bicho e receber propina da contravenção".
"Nos bastidores da Polícia Civil e do governo, o nome de Curi tem sido apontado como possível pré-candidato à sucessão do governador Cláudio Castro (PL)." O jornal afirma que procurou o delegado, mas não obteve resposta.
O leitor Dante Fernandes puxou, em outro comentário, tema que remete à discussão da "adultização". "Muitos [dos mortos] não eram nascidos ou eram crianças na operação de 2010. Agora mesmo tem um monte de crianças lá. Vamos ter alguma política pública para elas ou vamos esperar pegarem em fuzil?"
E aí vinha outro pedaço do perfilzão: 1/3 dos mortos, na formulação da Folha, "tem pai ausente".
O dado chama a atenção, sem dúvida, mas o jornal deveria informar o que significa "ter pai ausente" num contexto como esse.
A própria expressão parece mal empregada, já que o caso era de ausência de registro paterno. Nesse sentido, a turma com "pai ausente" deve ser maior ainda: além dos que não tinham o registro, estariam contemplados aqueles cujos progenitores se pirulitaram, morreram ou se abstiveram do dever do cuidado. Dados do Censo atestam que "houve aumento no número de lares com mulheres sem cônjuge que vivem com filhos, as chamadas mães solo, chegando a 13,5% ante 12,2% em 2010".
Já no Brasil que ainda tem pai, mostrou a Folha, "lobby de indústria e comércio atuou contra licença-paternidade, e benefício foi limitado a 20 dias". Era um bom furo da negociação sobre o pleito de 30 dias de licença. Mas ainda falta ao jornal tratar com maior gravidade questões como essa, que não são laterais.
A sorte é que há colunistas como Deborah Bizarria, Priscila Bacalhau e Laura Müller Machado, que foram direto ao assunto. Mas essa deveria ser também uma prioridade da reportagem —assim como evidenciar a distância entre as "nossas crianças" idealizadas no discurso e as crianças desprezadas da vida real.

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